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história da arte: coleções arquivos e narrativas org. ANA MARIA PIMENTA HOFFMANN ANGELA BRANDÃO FERNANDO GUZMÁN SCHIAPPACASSE MACARENA CARROZA SOLAR 1 HISTÓRIA DA ARTE: COLEÇÕES, ARQUIVOS E NARRATIVAS Organizadores ANA MARIA PIMENTA HOFFMANN ANGELA BRANDÃO FERNANDO GUZMÁN SCHIAPPACASSE MACARENA CARROZA SOLAR INSTITUIÇÕES ORGANIZADORAS DAS VIII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE COLEÇÕES, ARQUIVOS E NARRATIVAS: COMITÊ CIENTÍFICO André Tavares | Universidade Federal de São Paulo Jens Michael Baumgarten | Universidade Federal de São Paulo Fernando Guzmán | Universidad Adolfo Ibáñez, Chile Paola Corti | Universidad Adolfo Ibánez, Chile Giovanna Capitelli | Università di Calabria, Itália COMITÊ ORGANIZADOR Ana Maria Pimenta Hoffmann | Universidade Federal de São Paulo Angela Brandão | Universidade Federal de São Paulo Elaine Dias | Universidade Federal de São Paulo Isabel Margarita María Alvarado Perales | Museo Historico Nacional, Chile Raquel Abella | Museo Historico Nacional, Chile Macarena Carroza | Centro de Restauración y Estudios Artísticos CREA Marcela Drien | Universidad Adolfo Ibáñez, Chile Apoio: editora urutau ltda rua inocêncio de oliveira, 411 jardim do lago 12.914-570 bragança paulista-sp Tel. [ 55 11] 94859 2426 contato@editoraurutau.com.br www.editoraurutau.com.br editores ana elisa de arruda penteado tiago fabris rendelli wladimir vaz Imagem da capa Dados Internacionais de Catalogação na Almeida Júnior (Itu, SP, 1850 - Piracicaba, SP, 1899) Publicação (CIP)19 A Pintura (alegoria), 1892 (det.) óleo sobre tela, 250 x 125 cm Nogueira, André. Acervo damanifesto Pinacoteca do/ Estado de São Paulo, Brasil. Transferência Museu N778m O lenitivo André Nogueira. -- Bragança Paulista-SP : Editora Urutau, 2015. 208 p.; Paulista, 1947. 14x19,5 cm Crédito fotográfico: Isabella Matheus ISBN: 978-85-69433-00-2 1. Poesia brasileira. 2. Poesia contemporânea. 3. Literatura NOTA DE ESCLARECIMENTO: brasileira. I. Nogueira, André, 1987-. II. Titulo. A revisão dos textos e a autorização para a publicação das imagens são de responsabilidade exclusiva dos autores.CDD: B869.1 CDU: 82-1/9 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Hoffmann, Ana Maria Pimenta; Brandão, Angela; Schiappacasse,Fernando Guzmán e Solar, Macarena História da arte: coleções, arquivos e narrativas / vários autores.Bragança Paulista-SP : Editora Urutau, 2015. 584 p.; ISBN: 978-85-69433-07-1 1. História. 2.História da arte. I. vários autores. II. Titulo. Qualquer pessoa remotamente interessada na política da civilização saberá que os museus são os repositórios dos artigos dos quais a Civilização Ocidental deriva a riqueza do seu conhecimento, que lhe permite dominar o mundo. Da mesma forma, quando um colecionador autêntico, de cujos esforços dependem esses museus, reúne seus primeiros objetos, quase nunca se pergunta qual será o destino final de seu tesouro. Quando os primeiros objetos coletados chegaram às suas mãos, os primeiros colecionadores genuínos – que mais tarde viriam a expor, organizar e catalogar suas coleções (nos primeiros catálogos, que foram as primeiras enciclopédias) – nunca reconheciam o valor real desses artigos. Orhan Pamuk. O museu da inocência. SUMÁRIO 13 | APRESENTAÇÃO COLECIONISMOS 17 | DEL GUSTO PRIVADO A LA INSTITUCIONALIDAD ESTATAL. LAS COLECCIONES PRIVADAS CHILENAS EN EL ESPACIO PÚBLICO DEL MUSEO NACIONAL DE BELLAS ARTES Juan Manuel Martinez Silva 33 | O COLECCIONADOR COMO NOVO PRÍNCIPE José Alberto Gomes Machado 47 | JACOB BURCKHARDT E OS COLECIONADORES NO RENASCIMENTO ITALIANO Cássio Fernandes 61 | COLECIONISMOS: ENTRE JAPÃO E OCIDENTE. Michiko Okano 73 | COLECCIONISMO Y SECULARIZACIÓN EN CHILE DURANTE EL SIGLO XIX Marcela Drien 83 | AS DESCONHECIDAS COLEÇÕES DE ANTONIO ALVES VILLARES DA SILVA:ENGENHARIA E COLECIONISMO EM SÃO PAULO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULOXX Ana Paula Nascimento COLEÇÕES E MUSEUS 101 | ¿GESTA MEMORABLE DEL DESCUBRIMIENTO DE AMERICA? DISCURSOS Y NARRATIVAS EN LA FUNDACIÓN DEL MUSEO DE AMÉRICA DE MADRID Luis Javier Cuesta Hernández. 113 | O ACERVO DO MASP COMO POSSIBILIDADE DE ENSINO, PESQUISA E ANÁLISE DE FORMAÇÃO DA COLEÇÃO. PINTURAS ITALIANAS SÉCULOS XIII-XV Flavia Galli Tatsch 123 | O MANEIRISMO E O BARROCO NA PINTURA RETRATÍSTICA DA COLEÇÃO EVA KLABIN Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho e Ruth Levy 143 | AUGUSTO D’HALMAR Y LA COLECCIÓN DE ARTE CHILENO DEL MUSEO DE BELLAS ARTES DE VALPARAÍSO Amalia Cross 159 | O LUGAR DAS COLEÇÕES MUSEOLÓGICAS NA DEFINIÇÃO DE UM PATRIMÔNIO NO IPHAN Eduardo Augusto Costa 173 | IMAGEN, MATERIA Y MEMORIA: UN ACERCAMIENTO A LA COLECCIÓN DE ESTAMPITAS RELIGIOSAS DEL MUSEO HISTÓRICO NACIONAL Hugo Rueda 185 | COLEÇÃO DE DESENHOS DA PRINCESA ISABEL NO MUSEU IMPERIAL DE PETRÓPOLIS E NO MUSEU MARIANO PROCÓPIO: EXPRESSÃO DE UM SENTIMENTO RELIGIOSO. Maraliz de Castro Vieira Christo 201 | A PROPÓSITO DA COLEÇÃO DO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES DO RIO DE JANEIRO: REFLEXÕES SOBRE A ESCULTURA BRASILEIRA OITOCENTISTA Alberto Martín Chillón 213 | VISCONTI NOS ACERVOS MUSEOLÓGICOS DO BRASIL Mirian Nogueira Seraphin 231 | APONTAMENTOS SOBRE O GÊNERO DO RETRATO, O COLECIONISMO E A PRESENÇA DE ARTISTAS ESTRANGEIROS NAS EXPOSIÇÕES GERAIS DA ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES BRASILEIRA Elaine Dias 239 | CICCARELLI: PAISAGEM EM CONTRADIÇÃO Valeria Esteves e Samuel Quiroga 259 | O COLECIONADOR PORTUGUÊS LUIZ FERNANDES E A DOAÇÃO DE OBRAS PARA O ACERVO DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES DO RIO DE JANEIRO. Maria do Carmo Couto da Silva 269 | A IMPORTÂNCIA DE AGREMIAÇÕES ARTÍSTICAS E DO COLECIONISMO DE PORTUGAL NA CONSTITUIÇÃO DA COLEÇÃO DE ARTE PORTUGUESA DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES DO RIO DE JANEIRO Arthur Valle 281 | AS OBRAS ADQUIRIDAS PELA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES NOS ANOS APÓS A REFORMA DE 1890, HOJE PERTENCENTES AO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES Camila Dazzi 293 | LA EXPOSICIÓN INTERNACIONAL DE BELLAS ARTES DE 1910: LA FORMACIÓN DE UNA COLECCIÓN Y SU LEGADO Carlos Ignacio Corso Laos 305 | UN CALEIDOSCOPIO DE RECUERDOS. APUNTES A PROPÓSITO DE LOS ÁLBUMES PERSONALES DEL MÚSICO ANÍBAL ARACENA INFANTA (1881-1951). Carmen Peña Fuenzalida 321 | PALOTES Justo Pastor Mellado EXPOSIÇÕES E NARRATIVAS 337 | LECCIONES DE CIVILIZACIÓN: LA ILUSTRADA EXHIBICIÓN DE LA PRIMERA MISA EN BRASIL Y LA FUNDACIÓN DE SANTIAGO Patricia Herrera 355 | YOLANDA PENTEADO DA “CAIPIRINHA DE LEME” À ORGANIZAÇÃO DAS BIENAIS Marcos Mantoan 365 | ALDEMIR MARTINS: O CANGAÇO, O JAGUNÇO E A IMAGEM DO SERTÃO Ana Hoffmann 377 | OS SALÕES NACIONAIS DE ARTE EM BELO HORIZONTE NA DÉCADA DE 1980 Ana Luiza Teixeira Neves ARQUIVOS E FONTES 393 | ITABIRISMO: APONTAMENTOS SOBRE O ACERVO DE CORNÉLIO PENNA NO ARQUIVO-MUSEU DE LITERATURA BRASILEIRA/CASA DE RUI BARBOSA André Tavares 407 | ANACRONISMO NO USO DE FONTES HISTORIOGRÁFICAS NA NATIONAL GALLERY DE LONDRES Giordana Rocha Nassetti 415 | DO PECADO DA GULA AO DOUCEUR DE VIVRE: FONTES ESCRITAS PARA UMA NATUREZA-MORTA Angela Brandão 431 | RELATOS SOBRE EL ARTE MODERNO EN LAS BIBLIOTECAS ARGENTINAS. PISTAS HALLADAS EN EL ARCHIVO Y LA BIBLIOTECA DE EDGARDO ANTONIO VIGO Berenice Gustavino 449 | BIENAIS DE SÃO PAULO: ARQUIVO, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO Renata Zago ARTE SACRA: NARRATIVAS E COLEÇÕES 449 | MECENAZGO DE MONSEÑOR EYZAGUIRRE Y LA REFORMA DEL ARTE SAGRADO EN CHILE Fernando Guzmán e Valentina Ripamonti 463 | DA APRESENTAÇÃO ICÔNICA À REPRESENTAÇÃO HISTÓRICA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS Sintia Cunha 473 | LA PARROQUIA COMO ACERBO ARTÍSTICO RELIGIOSO. UN CASO: LA SANTA CRUZ DE TINGUIRIRICA Y SU CRISTO CRUCIFICADO Maria José Castillo 489 | EL PRESTIGIO DE LOS ARTISTAS JESUITAS ALEMANES EN CHILE Y EL SILENCIO FRENTE AL POSIBLE ORIGEN BRASILERO DE ALGUNAS OBRAS. EL CASO DE LA ESCULTURA DE SAN JOSÉ DE LA COLECCIÓN MARÍN ESTÉVEZ Marisol Richter e Fernando Guzmán 497 | ARTEFATOS RELIGOSOS SETECENTISTAS: REFLEXÕES A PARTIR DE ACERVOS PAULISTAS Silveli Maria de Toledo Russo NARRATIVAS, HISTORIOGRAFIA E MEMÓRIA 511 | CONSTRUÇÕES BALÉTICAS: HISTORIOGRAFIA DO BALÉ NO BRASIL E PERCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS Rousejanny da Silva Ferreira 537 | O ARQUIVO MARTA ROSSETTI BATISTA: INDÍCIOS DE UM FAZER HISTORIOGRÁFICO Marina Cerchiaro, Roberta Valin e Morgana Viana 549 | NARRATIVA, CINE E HISTORIA Yanet Aguilera 561 | O SEGREDO DOS SEUS OLHOS: CORES, TEXTURAS E TESSITURAS DA MEMÓRIA Marina Soler Jorge APRESENTAÇÃO A coletânea de textos que o leitor pode ver agora deslizar diante dos olhos, intitulada História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas, é o resultado da seleção de trabalhos produzidos a partir de uma provocação dirigida a diversos pesquisadores. Convidados a refletir sobre as coleções artísticas em suas diferentes concepções, dos tesouros medievais às câmaras de maravilhas, do colecionismo privado aos acervos museológicos, em diferentes épocas e lugares; chamados à refletir sobre os arquivos como abrigos da trama de documentação e fontes escritas, na qual se enredam as obras de arte, e sobre a escrita mesma da história da arte, como narrativa ou negação da narrativa, e os autores generosamente enviaram seus escritos para apreciação. A proposta de fundo, portanto, era discutir a disciplina da história da arte, a historiografia, o fazer e as tarefas do historiador da arte e das instituições que abrigam o fenômeno artístico, sua materialidade e sua textualidade. É oportuno lembrar as palavras de Enrico Castelnuovo, sobre a complexidade dos ofícios da história da arte: (...) existem vários historiadores da arte que exercem funções diferentes, trabalham nos museus, ocupam-se da tutela dos bens artísticos num território particular, ensinam, são peritos cuja competência é procurada pelos colecionadores, pelos marchands, escrevem nos jornais, organizam exposições e assim por diante. Entre eles pode haver diferenças, vários modos de trabalhar, que se devem, entre outras coisas, às tarefas que cada qual escolhe: existem os que catalogam, os que acompanham um restauro, os que ensinam, os que recolhem materiais para uma monografia sobre um artista, os que trabalham numa editora, os que fazem crítica para jornal, e por aí vai. Pode acontecer que aquele que trabalha num museu ou numa área de administração e tem um contato quotidiano, até mesmo físico, com as obras de arte, ironize a estreiteza do universitário, estudioso de gabinete, e que este por sua vez acuse o primeiro de empirismo ou 13 de carecer de uma problemática de conjunto, mas trata-se de coisa de pouca monta, e não de diferentes concepções da disciplina.1” O desejo, ao reunir os textos, era o de criar um diálogo em torno da complexidade da história da arte, a partir de algumas áreas de especial interesse comum: mecenato, colecionismo, museus, exposições, a arte e os documentos escritos a ela relacionados, a produção historiográfica e a crítica de arte. Sem disfarçar a preferência por trabalhos que atendessem à compreensão das “obras”, em algum aspecto de sua materialidade, buscou-se, neste livro, reunir respostas trazidas pelos pesquisadores acerca das instituições, das coleções, colecionismos e colecionadores, dos museus, exposições e arquivos relacionados às artes e de como se processa a transformação da imagem em texto, ou, dito de outro modo: como a arte se acomoda na escrita, em forma de documento, nos arquivos? Como a arte se faz escrita pelos caminhos da biografia, da literatura, da crítica de arte, da historiografia? Até que ponto a produção de narrativas sobre a arte influenciou a atividade artística e a história da arte ou a compreensão que delas se tem? O material que aqui apresentamos em forma de livro faz parte, em sua grande maioria, das apresentações e debates ocorridos durante as VIII Jornadas de História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, no calor de novembro de 2015. Sobre as Jornadas de História da Arte cabem algumas explicações. O Centro de Restauración Crea, o Museo Histórico Nacional e a Universidad Adolfo Ibánez, importantes instituições chilenas com sede em Santiago, propuseram-se, desde 2003, a somar esforços para promover a pesquisa, reflexão e difusão no âmbito da História da Arte, fomentando, desde então, reuniões de especialistas e publicação de textos especializados. Como materialização deste propósito geral surgiram as Jornadas de Historia del Arte, cujo principal objetivo vem sendo o de gerar uma instância de encontro e discussão para aqueles que se dedicam ao estudo da arte a partir de diferentes disciplinas, recolhendo variadas contribuições em torno de uma unidade temática. A incorporação da Universidade Federal de São Paulo como coorganizadora, desde as VII Jornadas de História del Arte em CASTELNUOVO, Enrico. De que estamos falando quando falamos em história da arte? In Retrato e Sociedade na Arte Italiana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 125. 1 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 14 Valparaíso, Chile, em 2014, permitiu consolidar o que havia sido realizado até então, projetá-las internacionalmente e somar novos desafios. Com um ritmo que até então mantinha-se bianual, as instituições envolvidas vinham convocando especialistas da América e da Europa para apresentar comunicações científicas e discutir em torno de um problema. As últimas Jornadas se realizaram no ano de 2012, em Valparaíso, Chile, sob o tema: “Vínculos artísticos entre Itália e América” e, em 2014, também em Valparaíso, com o tema: “O Sistema das Artes”. Em ambas oportunidades se apresentaram comunicações com a participação de especialistas da Argentina, Brasil, Colômbia, Uruguai, Chile, Itália, Inglaterra e México. A partir de 2015, as Jornadas passam a ser realizadas anualmente, alternandose como sedes do encontro as cidades de São Paulo e Valparaíso. Em nossa primeira edição brasileira das Jornadas de História da Arte, as apresentações que resultaram na publicação deste livro conta, igualmente, com textos provenientes de diferentes países de América Latina. O volume está dividido em seis grande temas entrelaçados: colecionismos; coleções e museus; exposições e narrativas; arquivos e fontes; arte sacra: narrativas e coleções e, finalmente, narrativas, historiografia e memória. Cada parte é composta por uma seleção de textos interligados pela mesma temática. “Colecionismos” abre a publicação por apresentar de modo mais geral a ideia e a concepção do que são as coleções, como são ou qual o destino das coleções de objetos artísticos. A segunda parte “Coleções e Museus” discute, de forma mais específica, a formação dos museus a partir de coleções privadas, os acervos dos museus e seus significados. O tema “Exposições e Narrativas” reúne textos que problematizam aspectos e sentidos das exposições de arte, como forma de construção de narrativas e, de que modo as obras ou as coleções de arte assumem formas temporárias. Já o quarto grupo temático, “Arquivos e Fontes”, traz reflexões sobre os documentos escritos e suas possibilidades de “arquivamento”, das quais o historiador da arte procura extrair suas narrativas. O quinto bloco aborda o tema mais específico “Arte Sacra: narrativas e coleções” para tratar de como as obras de arte religiosa estabeleceram formas peculiares de concepção de narrativas, de mecenato e de apropriação por meio do colecionismo. A coletânea encerra-se com um grupo de reflexões sobre as construções de narrativas por meio da historiografia e do cinema. Aqui leremos, finalmente, o resultado textual das VIII Jornadas de História da Arte de São Paulo, de 2015 – tanto daquilo que sonhamos Apresentação 15 quanto do que foi de fato possível realizar, o que nos faz, de uma forma ou de outra, fortalecer o vínculo entre as instituições chilenas e o Programa de Pós-Graduação em História da Arte, junto ao Departamento de História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. Guarulhos, novembro de 2015. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 16 colecionismo Del gusto privado a la institucionalidad estatal. Las colecciones privadas chilenas en el espacio público del Museo Nacional de Bellas Artes. Juan Manuel Martínez Historiador del Arte Curador e investigador independiente Del gusto privado a la institucionalidad estatal. Las colecciones privadas chilenas en el espacio público del Museo Nacional de Bellas Artes.1 Los netsuke no pueden circular desprotegidos por un salón o un estudio, se pierden, se caen, se ensucian, se astillan. Tienen que estar a recaudo, de preferencia con otros bibelots. De aquí la importancia de las vitrinas. Y, en mi viaje, hacía los netsuke, esas cajas de cristal (vitrinas de Museos), me empiezan a intrigar cada vez más. Las vitrinas existen para que veamos los objetos sin que podamos tocarlos; enmarcan las cosas, las suspenden, tientan mediante la distancia. Pero, al contrario que la caja de cristal del museo, la vitrina es para ser abierta. Y el momento en que la puerta de cristal se abre, el ojo elige, la mano se extiende y retira, en un momento de seducción, de encuentro eléctrico entre esa mano y el objeto.2 De esta forma el escritor británico Edmund de Waal, en su notable y apasionante novela-ensayo La liebre con ojos de ámbar, una herencia oculta Esta presentación inédita es parte de una reflexión presentada por el autor, en el día Internacional de los Museos, celebrado en el Museo Nacional de Bellas Artes el 16 de mayo del 2014 y de algunos aspectos del proyecto de investigación: “ Del gusto privado a la institucionalidad estatal. La colección Álvarez Urquieta en el espacio público del Museo Nacional de Bellas Artes.” apoyado por el Fondo de Apoyo a la Investigación Patrimonial de la Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos, en la versión del año 2014, cuyo autor es co-investigador. Se agradece el apoyo prestado por Marianne Wacquez, Investigadora principal de dicho proyecto. 1 2 DE WAAL: pág..78. 17 explica el compulsivo deseo de un coleccionista por atesorar y poseer los objetos que finalmente componen su colección. No es una anécdota el comenzar citando esta experiencia, que explica la diferencia entre la vitrina o escaparate de un espacio privado, con la vitrina o caja de vidrio exhibidor de un museo en un espacio público. La historia ha demostrado que gran parte de las colecciones se han originado en un espacio privado, las que posteriormente han transitado a uno público, como un destino inherente de gran parte de las colecciones. Fue precisamente al comienzo de la edad moderna, que en la esfera privada se asentó la noción de la colección. La kunstkammer identificada muchas veces con el polvoriento gabinete de curiosidades, donde los objetos y cada uno de ellos, fue singularizado precisamente por su propia curiosidad. Es la curiosidad, como gesto, la que ha movido a los coleccionistas a poseer y atesorar objetos que representan belleza, poder, estatus o simplemente placer y deleite al contemplarlos. La constitución de las colecciones ha sido un proceso gradual. En primer lugar ligadas al poder real y religioso, donde sirvieron como expresión de un dominio áulico terrenal o espiritual, convirtiéndose en una distinción y marca social. El ejercicio del coleccionar nos remite irremediablemente al pasado, en este sentido el coleccionismo solo puede comenzar cuando el pasado asume una forma coleccionable, definición que se funda en la desarraigada abstracción del objeto respecto al pasado. Este desarraigo se explica, una vez perdida la vida del objeto en su contexto original, pasando a sumir el poder de un espectro, el objeto en una colección brilla por la mortandad del pasado.3 Un punto de inflexión lo otorgó la importancia del coleccionista y como este construye la valoración de su colección. Claramente es la curiosidad, como gesto, la que ha movido a los coleccionistas a poseer y atesorar objetos que representan belleza, poder, estatus o simplemente placer y deleite al contemplarlos. Ya lo explica en detalle en la primera mitad del siglo XX el filósofo alemán Walter Benjamin en su Ich packe meine Bibliorthek aus (Desembalo mi biblioteca): 3 MALEUVRE: pág. 280. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 18 El más profundo embeleso del coleccionista es el de incluir lo individual en su círculo de poder, donde se queda inmóvil mientras aún lo atraviesa el último escalofrío – el escalofrío de ser adquirido- . Todo lo que se ha recordado y pensado, todo lo que se ha hecho consciente, se convierte en zócalo, en marco, en plinto y en cerrojo de su posesión. La época, el paisaje, el oficio y el propietario de los que procede se concentran, para el auténtico coleccionista, en cada una de sus posesiones para formar una enciclopedia mágica cuya esencia es el destino de su objeto.4 En Occidente y con el desarrollo de las monarquías en la época moderna, las colecciones en palacios cobraron un nuevo significado, estas sirvieron como emblemas de los gobernantes y sustento no solo de sus riquezas o poder temporal, sino de su conocimiento, sensibilidad y placer por la vida. Un cambio fundamental lo dio la Revolución Francesa y el comienzo del ciclo de la fundación de los grandes museos en Europa y posteriormente en América, abriendo las puertas de las colecciones al gran público. El lugar ideal donde las colecciones se depositaron en la época moderna fueron los museos. El museo proporciona un lugar del distanciamiento entre el sujeto y el objeto. Por ello las obras de arte parecen en el museo distante, alejadas, extrañas, por sobre todo intocables. Es así que el museo proporciona un ejemplo de un ojo contemplador en un mundo de objetos inalterados por la presencia humana. 5 Ya en el siglo XIX, especialmente en Europa y los Estados Unidos de América, la importancia del coleccionista fue clave. En este sentido los museos fueron especialmente un vehículo de gran interés por parte del poder, ya que sus colecciones se podían constituir como mundos simbólicos que facilitarán la comprensión de hombre y su medio, es así que: Los museos satisfacían las necesidades de una historia y una mitología nacionales, sobre todo porque las piezas expuestas podían organizarse una y otra vez para acomodarse a las ortodoxias dominantes.6 En este sentido el museo fue la vía más evidente y el ámbito propicio, donde se generó la transformación de colecciones o museo privados en algo público. El paso del propietario aristocrático a la administración profesional 4 Traducido y citado en BLOM: pág. 273. 5 MALEUVRE, Op. Cit.: pág. 210. 6 BLOM, Op. Cit.: pág. 148. Juan Manuel Martínez 19 y, finalmente, a la propiedad estatal reflejaron un proceso que tuvo lugar en toda Europa y tiene su correlato en el establecimiento del estado moderno: Los museos eran empresas nacionales y tenían que desempeñar un papel en la formación y el perfeccionamiento del país.7 En esto radica la importancia de los relatos que se generaron y se generan a partir de las colecciones de los museos, ya que no son solo el acopio informe de objetos. Toda colección se debe a una cuidadosa selección cuyas motivaciones residen en visiones de mundo y evidentemente en gustos personales permeados por el medio social especifico. Por esta razón en el Museo; La nación pasó a ser la vestal legítima de la memoria y de las ruinas del pasado.8 En el caso chileno el Museo estatal que se fundó para conservar, educar y difundir el arte nacional, fue el Museo Nacional de Bellas Artes. Creado en 1880, en parte de las dependencias del nuevo edificio del Congreso Nacional en Santiago,9 Para su formación el gobierno había creado el Consejo de Bellas Artes, institución que organizó el Museo y la que se hizo cargo de reunir obras artísticas en poder del estado chileno, como también de adquirir las primeras piezas, conformando una primera colección de ciento cuarenta obras. Esto fue un punto de partida en la formación de la colección del Museo Nacional de Bellas Artes. Su gestión inicial estuvo a cargo del escultor José Miguel Blanco, apoyado por el coronel Marcos Maturana, este último un gran coleccionista de pintura, quienes preocupados por la dispersión del patrimonio artístico chileno y con el apoyo del gobierno, lograron reunir las primeras obras de artistas chilenos y extranjeros que permitieron inaugurar el Museo Nacional de Pinturas el 18 de septiembre de 1880. La creación de un Museo estatal de arte, se debió entre otras aristas 7 BLOM, Op. Cit.: pág. 164. 8 MALEUVRE, Op. Cit : pág. 19. El Palacio del Congreso Nacional se realizó basándose en los planos del arquitecto francés Claude Françoise Brunet de Baines, contratado por el gobierno chileno en 1848. Brunet de Baines falleció en 1855, asumiendo el encargo el Lucien Hénault en 1857. Solo en 1870 se continuaron las obras, ahora bajo el arquitecto chileno Manuel Aldunate, pero quien finalizó las obras fue el arquitecto italiano Eusebio Chelli, inaugurándose bajo la administración del Presidente Federico Errázuriz Zañartu el 1 de junio de 1876. 9 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 20 a la instalación de un mercado del arte, dinamizado por salones oficiales y privados desde mediados de siglo. La elite nacional, compuesta de ricos terratenientes y por una burguesía comercial en ascenso, requería del arte como un elemento suntuario y de distinción social. Un ejemplo de ello nos lo entrega en un texto irónico Vicente Grez: Las habitaciones de M. Adolfo G. eran verdaderos museos de arte. Las murallas estaban cubierta de pintura al óleo, de buenos i malos autores, las buenas eran copias, las malas orijinales; veíanse también acuarelas, sépias, grabados, daguerrotipos, fotografías, dibujos a lapluma i al lápiz atribuidos a celebridades. Bronces que representaban a Fausto, …10 Ante un viaje del hipotético personaje, se produjo la liquidación de su colección: Los salones de M.Adolfo G. fueron abiertos al mundo elegante i la venta principió. En un solo día las habitaciones quedaron vacías. Todo se vendió a precios fabulosamente bajos; fue aquello una quemazón. Un Ticiano original, se compró en setecientos pesos, un Rembrandt en quinientos, un cuadro de batalla de Horacio Vernet, que tenía el mérito de ser la tela más pequeña que había pintado ese artista, se vendió en ochocientos, i así sucesivamente. 11 Pero es sin duda Benjamín Vicuña Mackenna, que en 1858, dio cuenta de manera más nítida la importancia de la pintura en el país, desde una mirada de la elite, la que determinaba los gustos, lo que se podía considerar artístico, como también la funcionalidad del social del arte: Pero es preciso también que el pueblo, los artesanos, los rotos, las beatas, los chiquillos de la calle se inicien de algún modo en el mágico atractivo que el arte posee. La Sociedad de Instrucción Primaria abrirá en breves sus salones por un precio ínfimo, y entonces la muchedumbre asistirá por primera vez a un espectáculo desconocido, pero que herirá vivamente sus sentidos y le dejará un recuerdo, menos grato tal vez a su espíritu que la luz de azufre de los voladores y de los fuegos de plaza, pero que será siempre una semilla civilizadora arrojada en su inteligencia. Hemos observado que los peones y car10 GREZ: págs..121-122 11 Ibid: págs..121-122 Juan Manuel Martínez 21 gadores ocupados del acarreo de los cuadros, únicos hombres del pueblo que hasta hoy han visitado la exposición contemplaban con singular encanto muchos de los más bellos modelos de los salones.12 Fue precisamente la funcionalidad del arte lo que estuvo al centro de variadas discusiones en el contexto de la fundación de la república posteriormente a que Chile logrará su independencia del Imperio español. Si bien para la elite, el arte era un consumo suntuario de distinción social, para el pueblo debía ser un elemento de formación y de cohesión social. Con una naciente República en estado de organización, se hizo necesario que la educación artística fuera de carácter oficial por parte del Estado. Este fue el contexto en que se generó la Academia de Pintura, creada bajo el Gobierno de Manuel Bulnes en 1849, cuyo primer director fue el pintor italiano Alessandro Ciccarelli. La formación de la Academia de Pintura y la acción formativa de los primeros maestros, Ciccarelli y Kirchbach, significó la construcción de las bases de una institucionalidad instructiva en lo artístico que marcó a los pintores nacionales del siglo XIX. Sin duda, la Academia fue la primera impulsora de la visualidad como un elemento pedagógico.13 Este impulso de la Academia, produjo un importante acervo de obras realizadas tanto por los artistas egresados, como por aquellos que obtenían becas de perfeccionamiento en el exterior, cuyas obras debían ser enviadas a los profesores de la Academia para que éstos evaluaran su perfeccionamiento. Profesores europeos que enseñaban un tipo de arte destinado a satisfacer la demanda social de la burguesía o del poder político, lo que se acrecentó por un circuito del mercado del arte cuya finalidad era la satisfacción del coleccionista y del encargo privado, así como del estatal.14 En este proceso, entre viajes al extranjero, benefactores particulares donaban copias y obras originales al Estado, las que eran distribuidas en los edificios públicos. En la historia cultural de Chile el coleccionismo de arte, ha sido un pilar fundamental en su desarrollo histórico. Este supera un tema de carácter personal de un artista o un período determinado, convirtiéndose con el tiempo en una memoria colectiva de una nación, un elemento central de la 12 VICUÑA MACKENNA: págs..430-431. 13 MARTÍNEZ: pág. 70. 14 MARTÍNEZ: pág. 69 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 22 historia de un arte nacional. Este proceso configura un sistema de las artes, con comitentes y un mercado especifico. 15 Es precisamente que el coleccionista de arte, se constituyó en una pieza fundamental de este engranaje del sistema de las artes en Chile en la segunda mitad del siglo XIX. En el catálogo de la exposición de pinturas de 1877, en el Palacio del Congreso Nacional,16 las obras exhibidas en gran parte pertenecían a colecciones de privados, constituyéndose en una larga galería, que se ordenaba en los diferentes salones del recién inaugurado palacio legislativo. La lista de los coleccionistas era extensa, entre los cuales se encontraban nombres como: Celerino Pereira, Jacinto Nuñez, Enrique Cood, Carlos Antúnez, Santiago García Mieres, Ramón Balmaceda, María Ignacia Tocornal, Recaredo Ossa, José Tomás Urmeneta, Víctor Aldunate Carrera, Gonzalo Bulnes, Guillermo Ovalle, Ángel Custodio Gallo, Eduvíges González de Antúnez, Augusto Orrego, Coronel Marcos Maturana, Manuel Amunátegui, Giovanni Mochi, José Miguel Váldes de la Carrera, Domingo Toro Herrera, Enrique Sanfuentes, Emeterio Goyenechea, Eduardo Séve, dueño de un Corot y del acaudalado Claudio Vicuña, propietario de uno de los palacios más suntuosos y exóticos de Santiago en ese entonces. La lista continua y las obras exhibidas en esa ocasión representaban el gusto de la época, pintura de paisaje, bodegones, pintura de historia en sus diferentes versiones; religiosa mitológica y de hechos históricos, como también retratos y copias. Esta exhibición y los salones, como las exhibiciones de arte en las exposiciones internacionales, fueron el punto de partida en la formación de la colección del Museo Nacional de Bellas Artes. Patrimonio que fue incrementado con donaciones y compras a coleccionistas privados. Un paso importante fue el trasladó en 1887 del Museo Nacional de Pinturas al Partenón de la Quinta Normal, tomando el nombre de Museo de Bellas Artes. En 1885, la Sociedad “Unión Artística” organizada por Pedro Lira construyo el edificio de el Partenón, para celebrar exposiciones anuales, posteriormente en 1887 el edificio fue comprado por el Gobierno de Chile, a fin de instalar ahí el museo de pinturas. En diferentes ciclos, el Museo Nacional de Bellas Artes, comenzó a estructurar su colección en función de colecciones privadas, mediante do15 CORTES: pág. 199. 16 CATÁLOGO DE PINTURAS, 1877. Juan Manuel Martínez 23 naciones, legados y compras. Esto correspondió a los objetivos del Museo; el enriquecimiento del patrimonio nacional y el cumplimiento de un objetivo educativo. Lo que implicaba una construcción cultural por parte, en este caso, del Estado y de los grupos dirigentes. Con las celebraciones del Centenario de la Republica en 1910 y la inauguración del Palacio de Bellas Artes en el Parque Forestal, pinturas y esculturas tuvieron finalmente un domicilio conocido y la colección se amplió con la adquisición de obras provenientes del extranjero, como de donaciones y legados. Crecimiento que se verificó posteriormente, con la inclusión en el acervo del Museo de las colecciones: Wittgenstein, Santiago Ossa Armstrong e Ismael Valdés, entre otras. En este contexto es pertinente citar dos ejemplos de este fenómeno de transito de colecciones entre la esfera privada a la pública, en el ejercicio de la integración de una colección al Museo Nacional de Bellas Artes. El 8 de julio de 1910, falleció Eusebio Lillo y Robles, quien fuera un destacado poeta y por lo demás autor del Himno Nacional, dejando en su testamento su colección de pintura al Museo Nacional de Bellas Artes: (Fig. 1) 6° Encargo a mis albaceas que entreguen a la Biblioteca Nacional los libros de mi pertenencia y al Museo de Bellas Artes mi galería de pinturas, después que don Vicente Reyes haya elegido los cuatro cuadros que fueren de su agrado. 9° Nombro albacea y tenedor de mis bienes a don Vicente Reyes y en segundo lugar a don Elías Lillo.17 Legado que no estuvo exento de polémica, ya que la Comisión de Bellas Artes no quiso recibir en su totalidad dicha colección, que contaba de 124 obras. El conflicto fue seguido por la prensa de la época. El Mercurio de Santiago informó que el 15 de diciembre de 1910, lo herederos pusieron a disposición del Museo la colección para su selección debido a que el Museo estaba facultado legalmente para aceptar o rechazar donaciones. Nuevamente, El Mercurio informó que el 28 de julio de 1911, el Museo de Bellas Artes solo aceptó 15 obras, meses después el 20 de noviembre 17 SILVA: pág.147. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 24 del mismo año el periódico daba cuenta que había aceptado otras 20 más.18 Finalmente, en 1911 se recibió la totalidad de las obra, una parte de ella fue exhibida y la otra almacenada o enviada a la Escuela de Bellas Artes. En 1929, una parte de esta colección fue enviada a Talca, para formar parte de la colección fundacional del Museo O’Higginiano y Bellas Artes de la ciudad. Muchas de estas obras fueron compradas presumiblemente por Eusebio Lillo en Europa, y eran parte de su colección que poseía en su casa de la calle Chacabuco en Santiago, que se convirtió en un centro de reunión social e intelectual a comienzos del siglo XX. En un reportaje realizado en 1905 se describía de esta manera su casa: (Fig. 2) Recorrimos todavía otras salas todas llenas de telas valiosos, cuadros de escuela holandesa, italianos de la escuela de Tiépolo, franceses modernos, españoles discípulos de Fortuny y algunos chilenos, entre los cuales recordamos “La Perla del Mercader”, obra maestra de Valenzuela Puelma.19 Eusebio Lillo fue uno de los integrantes de la comisión que se creó en 1887 para la formación del Museo de Bellas Artes en el Partenón. La elección de Lillo, se debió a que era de conocimiento público su afición por el arte y su quehacer como coleccionista que alimentaba su galería de pintura. También fue conocido en círculos sociales de Santiago, al asesorar a Luis Cousiño en el alhajamiento de su palacio en la calle Dieciocho. Según René Silva Castro, Lillo poseía “el gusto necesario para la formación de una galería pública.” La imagen patriarcal de Lillo trasuntaba en su gusto de coleccionista, como se afirmó en quizás una de sus últimas entrevistas: Y poniéndose de pié nos guió a través de aquella sala y de otras y otras, en todas las cuales había cuadros al óleo, acuarelas, pasteles, un verdadero museo formado por un amateur de un gusto esquisto, por un viajero refinado, por un artista con un sentimiento profundo del arte, de lo bello, de las plácidas emociones que causan aquellas obras.20 El 18 de noviembre de 1929, el Museo de Bellas Artes pasó a de18 Ibid: pág. 147. 19 SILVA VILDASOLA: 1905. 20 Ibid: 1905. Juan Manuel Martínez 25 pender de la Dirección General de Bibliotecas, Archivos y Museos, lo que hoy corresponde a la DIBAM. Al año siguiente, en conmemoración del cincuentenario de la institución, se realizó una exposición extraordinaria de arte chileno donde se mostró la colección Luis Álvarez Urquieta. Álvarez Urquieta, nació en Valparaíso 1877, fue educado en el Colegio de San Ignacio, posteriormente trabajo en el Banco Hipotecario de Chile, hasta su jubilación como tesorero de la institución. Fue un gran coleccionista de arte, especializándose en pintura nacional, además de historiador. Miembro de la Academia Chilena de la Historia, publicó artículos sobre la historia del arte en nuestro país, entre los que se cuentan; La Pintura en Chile durante el período colonial, además de una serie de monografías sobre los artistas José Gil de Castro, Monvoisin, Manuel Antonio Caro, Carlos Wood y Charton entre otros. También se dedicó a la pintura, en especial el paisaje de temática urbana. Falleció en Santiago en 1945. Richon-Brunet, escribió a fin de presentar esta colección en 1928: DESDE AHORA PARA CONOCER TODA LA HISTORIA Y TODA LA EVOLUCION DEL ARTE CHILENO, NO ES SÓLO AL MUSEO DE BELLAS ARTES QUE HABRÁ QUE ACUDIR, SINO A LA GALERÍA ALVAREZ URQUIETA, QUE MERECÍA SER NACIONALIZADA EN EL INTERÉS NACIONAL Y PÚBLICO. No solamente no falta nada en esta colección ya que están representados por obras importantes todos los artistas chilenos o extranjeros radicados en Chile y por lo tanto chilenizados, desde hace algo más de un siglo, sino que, en su mayor parte, dichas obras son de primer orden y verdaderamente hermosas, dentro de sus escuelas y épocas respectivas, produciendo el conjunto de las salas una impresión de arte más serio y elevado.21 Estas palabras y el movimiento que causo la muestra pública en un Museo estatal, motivó la compra de este corpus de 378 pinturas y dibujos, por la suma de 350.000 pesos, cuyo coleccionista entregó personalmente el 21 de noviembre de 1939. La colección, si bien se integró a la colección del Museo, no se pudo exhibir hasta que las salas ocupadas por las colecciones del Museo Histórico Nacional no fueran entregadas, situación que se hizo efectiva en la década siguiente. Esta nueva colección, de pintura nacional, 21 ÁLVAREZ, Op. Cit.:pág. 8. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 26 desplazó las colecciones que hasta esa fecha se mostraban, constituidas básicamente por los envíos de los pensionados en el extranjero, pintura nacional y pintura europea, como además de copias. Con la compra de esta colección ingresaron obras, que actualmente se han convertido en pinturas emblemáticas en la colección del Museo, como es el caso del huaso y la lavandera de Rugendas. (Fig. 3) No corrieron la misma suerte las colecciones Cousiño y especialmente el legado de Eusebio Lillo, los que fueron disgregados. En cambio, la colección Álvarez Urquieta, como conjunto, no se diluyo al ingresar a la colección general del Museo, y esta ha estado en términos generales en un gran porcentaje dentro del Museo y en su exhibición permanente, la que se convirtió en un referente en los estudios y en la construcción de un relato de un Arte Nacional, en especial, el que construyó Antonio Romera. Una colección que entrego las bases para la construcción de una historia del arte local, con la paradoja de ser una colección construida no por el estado, sino por el gusto de un coleccionista. Referencias bibliográficas ÁLVAREZ U., L: “La pintura en Chile: colección Luis Álvarez Urquieta”. Imprenta La Ilustración, Santiago de Chile. 1928 BLOM, PH.: “El coleccionismo apasionado, una historia íntima.” Anagrama, Barcelona. 2013 CATÁLOGO DE LAS OBRAS EXHIBIDAS EN LA ESPOSICIÓN DE PINTURA ORGANIZADA EN EL PALACIO DEL CONGRESO, SETIEMBRE 1877. Imprenta de la República, Santiago de Chile.1877 CORTES, G.: Apogeo y crisis del coleccionismo chileno: la colección de pintura de Pascual Baburizza, Varios autores: “Arte y crisis en Iberoamérica, Segundas Jornadas de Historia del Arte.” RIL, Santiago de Chile. 2004, págs. 199-206. GREZ, V.:“La Vida Santiaguina”. Imprenta Gutemberg, Santiago de Chile. 1879 MARTÍNEZ. J.M.: ”El Poder de la Imagen, 3 Miradas Arte en Chile.” Tomo I. Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago de Chile, 2014 Juan Manuel Martínez 27 MALEUVRE, D.:”Memorias del Museo, Historia, tecnología, arte.” CENDEAC, Murcia, 2012 SILVA CASTRO, R.: “Eusebio Lillo (1826-1910).” Editorial: Andrés Bello, Santiago de Chile, 1964. SILVA VILDASOLA, C.: “Una entrevista con el respetable anciano, político, periodista y poeta, autor de la Canción Nacional en su retiro de la calle Chacabuco. Con fotografías y bocetos tomados al natural. Entrevista a Baldomero Lillo.” Revista ZIg-Zag, Santiago de Chile, 17 septiembre de 1905. VICUÑA MACKENNA, V: “Una visita a la exposición de pintura de 1858.” Revista del Pacifico, Santiago de Chile, 1858 WAAL , E., de : “La liebre con ojos de ámbar. Una herencia oculta.” Acantilado, Barcelona, 2012 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 28 Figura 1 Fotografía de unos de los salones de la casa de Eusebio Lillo en la calle Chacabuco, Santiago de Chile, Revista Zig-Zag, 1905. Juan Manuel Martínez 29 Figura 2 Alfredo Valenzuela Puelma La perla del mercader o Marchand d’ esclaves, 1884. Óleo sobre tela 215x138 cm. Surdoc 2-36 Museo Nacional de Bellas Artes História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 30 Figura 3 Juan Mauricio Rugendas El huaso y la lavandera, 1835. Óleo sobre tela 30x23 cm. Surdoc 2-15 Museo Nacional de Bellas Artes Juan Manuel Martínez 31 colecionismo O coleccionador como novo príncipe José Alberto Gomes Machado Professor da Universidade de Évora – Portugal Desde o Renascimento, o coleccionismo constitui uma das mais importantes marcas de referência da cultura ocidental. A acumulação de objectos raros, buscados pela sua beleza, pelo seu carácter excepcional ou até por outro tipo de qualidades intrínsecas, de cariz mágico ou curativo, foi apanágio de ricos e poderosos que, desde cedo viram o potencial de quanto adquiriram para a projecção da sua própria imagem, fama e prestígio. O Quattrocento e depois o Cinquecento propiciaram uma conjuntura única de fomento, produção e acumulação de obras de arte que instalou a Itália num pedestal único, quer de modernidade (até ao século XVIII), quer de património. Pequenos senhores, condottieri, tiranos locais ou banqueiros recém enriquecidos cedo descobriram o imenso potencial da arte para a consolidação do seu poder, para além dos efeitos propagandísticos que a sua posse permite. Hábeis parvenus como os Sforza ou os Médicis alcançam o poder e tornam-se príncipes. Ainda hoje são lembrados, sobretudo, pela arte que souberam promover, encomendar e reunir. A chegada do Barroco, com o apogeu da monarquia absoluta vai ser marcada por um coleccionismo de novo tipo. O século XVII será a época de ouro do coleccionismo régio. Filipe IV de Espanha, Carlos I de Inglaterra (coetâneos e cunhados) e, na geração seguinte, Luís XIV de França e o arquiduque Leopoldo Guilherme de Habsburgo (primos um do outro e sobrinhos dos anteriores) amassarão milhares de obras de arte, muitas das quais saídas já de Itália, num movimento que marca o início do desfazer e redistribuir das colecções renascentistas. É este o caso da famosa colecção dos Gonzaga, duques de Mântua, vendida em bloco a Carlos I Stuart e que pouco tempo permaneceu em Londres, sendo dispersa, em grande parte, após a execução do seu desditoso possuidor. 33 O século XVIII é marcado pelo coleccionismo aristocrático, por clara emulação com os soberanos. É o período do Grand Tour, em que jovens de alta posição social e económica deambulam pelo continente, com destaque para a Itália, onde contactam com um património artístico único, onde se fazem por vezes retractar junto de ruínas clássicas e de onde importam para os seus países de origem (nomeadamente a Inglaterra) numerosas esculturas, pinturas e objets de vertue. Aqui radicam as numerosas colecções da nobreza britânica que, no seu conjunto, constituem, nesse período, a maior acumulação de arte em mãos privadas em toda a Europa. A Revolução Francesa e a era napoleónica, que se lhe seguiu, promoveram uma deslocação maciça de obras de arte, fruto de venda, espoliação e saque, que abre uma nova época, marcada por um duplo fenómeno: a criação dos museus nacionais e a emergência da burguesia como principal detentora privada de bens artísticos. O primeiro marca a apropriação pública do que eram essencialmente bens privados, de natureza dinástica ou aristocrática; o segundo marcará todo o século XIX e boa parte do século XX. Na história do coleccionismo, os setenta anos que medeiam entre 1870 e 1940 são uma época de ouro, que assiste a um movimento de transferência maciça de obras de arte da Europa para os Estados Unidos, para engrossar as colecções privadas de milionários, industriais e banqueiros que tomarão o lugar dos príncipes e aristocratas de outrora, a quem buscaram imitar através da posse de objectos de prestígio, muitas vezes, os mesmos objectos de prestígio. Esta identificação, consciente ou subliminar, é o fulcro deste trabalho. Robber Barons, Self Made Millionaires, cavalheiros de indústria, donos de fábricas e ferrovias, senhores de fortunas fabulosas sofriam de um tremendo complexo social de inferioridade, sobretudo no confronto com a velha Europa, com seus códigos e hierarquias sedimentados na longa duração. No salão de um velho château francês, no living room de um manor isabelino, ou até no relativo relaxamento de um Spa ou Kurhaus da Europa central, o dinheiro não supre as boas maneiras nem garante mais que uma aceitação interesseira, seguida de um olhar condescendente ou um comentário sarcástico pelas costas. Levou várias gerações até o poder do dólar conseguir transplantar e substituir os valores do velho continente. Nesse processo, a arte desempenhou papel relevante. E o coleccionismo revelou ser o agente mais eficaz de elevação social e branqueamento de raízes tantas vezes obscuras, que só o dinheiro por si não permitia iludir. Aliás, esse processo de História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 34 social climbing efectuava-se a dois níveis: interno, num movimento de oeste para leste, desde a frágil San Francisco até alcançar New York e integrar os famosos 400 da elite; e externo, culminando numa série de espectaculares casamentos transatlânticos, conduzindo uma larga série de virginais herdeiras de fortunas americanas aos píncaros da aristocracia europeia, nomeadamente britânica. 1Para muitos desses multimilionários parvenus, a posse de uma colecção de arte constituía o meio seguro de alcançar respeitabilidade em vida e imortalidade, rodeando-se de objectos que, pela sua antiguidade, valor, beleza e proveniência ilustre, transpunham para os seus novos donos algo da fragrância secular de reis, príncipes e cardeais, que ilustraram com seu nome tantas páginas da história europeia. Não faltam exemplos numerosos dessa via tão dispendiosa de alcançar sucesso nos meandros tortuosos da vida social, em que ser rico não chega, só por si, para conferir admiração e respeitabilidade. É justo, contudo, reconhecer em vários dos protagonistas desse processo, que iremos referir, um genuíno gosto e até paixão pelos objectos de arte que perseguiram e adquiriram, por vezes com grande esforço. As viagens constantes à Europa, a visita sistemática de museus e monumentos, a frequência de artistas e intelectuais contribuíram poderosamente para esse processo, que teve por consequência a última grande florescência do fenómeno coleccionista em grandes dimensões, até à emergência actual dos novos potentados árabes, russos e chineses. Essas décadas entre 1870 e 1940 estão balizadas simbolicamente pela fundação dos dois primeiros e veneráveis grandes museus dos EUA (Metropolitan Museum of Art em New York e Boston Museum of Fine Arts) e pelo aparecimento do último dos grandes museus mundiais, a National Gallery of Art em Washington (inaugurada em 1941). Todos estes (e muitos outros, como o Philadelphia Museum of Art ou o Art Institute of Chicago), nascidos do espírito filantrópico e da ambição social e capacidade aquisitiva de numerosos “príncipes – mercadores”, cujos nomes estão hoje associados, muito mais à arte que acumularam do que ao sucesso que alcançaram nos seus negócios. Assim, recordamos hoje Henry Clay Frick pelo seu maravilhoso museu privado na Fifth Avenue, a Frick Collection e Sendo o exemplo mais notório Consuelo Vanderbilt (1877-1964), duquesa de Marlborough entre 1906 e 1921. Devia o seu pouco comum nome espanhol à sua madrinha cubanoamericana, Consuelo Iznaga (1858-1909), ela mesma protagonista de enorme sensação e escândalo na geração anterior, ao desposar o futuro duque de Manchester. 1 José Alberto Gomes Machado 35 não tanto pelas lutas que travou contra os sindicatos, no processo de acumulação da sua enorme fortuna. E Andrew Mellon, será lembrado sempre como o fundador da NGA, mais do que como secretário das Finanças de sucessivas administrações americanas da década de 1920. H. C. Frick (1849-1919) e A. Mellon (1855-1937), contemporâneos e amigos, contam-se entre os maiores coleccionadores dos tempos modernos. Foram sócios em importantes negócios.2 Viajaram juntos na Europa, visitando museus. Formaram as respectivas colecções nas primeiras décadas do século XX, tendo perseguido e acumulado tesouros verdadeiramente principescos.3 Tal como para tantos outros coleccionadores, a proveniência das suas obras de arte transformou-se num elemento fundamental. Para além do valor estético intrínseco dos quadros e esculturas, o facto de terem antes integrado colecções prestigiosas foi um elemento fundamental para a respectiva aquisição. O pedigree das peças alcançava o seu ponto mais alto de excelência quando podia ser reportado a algumas das mais fabulosas colecções principescas e régias do passado. Ter integrado a famosa colecção dos Gonzaga de Mântua, a de Carlos I de Inglaterra, que comprou a anterior, ou a fabulosa colecção dos duques de Orleães, ramo mais novo da família real de França ( a qual foi dispersa em blocos em Inglaterra nos anos da Revolução Francesa) formava o nec plus ultra da proveniência histórico-artística. Em 1930 e 1931, Andrew Mellon beneficiou do privilégio extraordinário de poder adquirir discretamente alguns tesouros do Hermitage, provenientes da lendária colecção de Catarina II. Ele e o milionário arménio do petróleo Calouste Gulbenkian puderam adquirir para as respectivas colecções quadros que ainda hoje fazem a glória do Museu Gulbenkian de Lisboa4 e da National Gallery of Art de Washington, respectivamente. Em Dezembro de 1936, Mellon escreveu ao presidente Franklin D. Roosevelt, oferecendo à nação a sua colecção de arte: “My dear Mr President: Over a period of many years I have been acquiring important and rare paintings and sculpture with the idea that ultiEnquanto banqueiro, Mellon financiou vários dos empreendimentos de Frick, relacionados sobretudo com a indústria carbonífera. 2 Dos 137 quadros legados à Frick Collection pelo seu instituidor, apenas 10 foram adquiridos antes de 1900. Cf. Timeline of Acquisitions in collections.frick.org 3 O Retrato de Velho e a Palas Atena de Rembrandt, bem como o Retrato de Hélène Fourment, mulher do artista, de Rubens. 4 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 36 mately they would become the property of the people of the United States (…) for the purpose of encouraging and developing the study of the fine arts5.” A oferta foi aceite pelo Congresso dos Estados Unidos. Entre as 115 pinturas europeias legadas pelo fundador à nova instituição, contavam-se 21 obras primas provenientes da colecção imperial russa, tais como a Adoração dos Magos de Botticelli ou a Madonna da Casa de Alba de Rafael. Sendo embora homens taciturnos, reclusivos e pouco demonstrativos, os dois velhos amigos de Pittsburgh, Frick e Mellon, não podiam deixar de ser particularmente sensíveis ao facto de sobre eles recair o manto dos grandes coleccionadores régios do passado, cujo afã aquisitivo souberam emular e de quem “herdaram” a posse de numerosas obras. Essa posse comum dos mesmos objectos preciosos, com alguns séculos de permeio, permitia um efeito de identificação retroactivo. Novos príncipes, os milionários da finança, do carvão, do petróleo ou dos caminhos de ferro, buscavam os mesmos sinais de distinção que ornaram os monarcas do passado. Objectos de raridade e beleza que ornamentaram os paredes do Alcazar de Madrid, do palácio de Whitehall ou do Hermitage czarista acharam-se de súbito em apartamentos e mansões de Washington ou New York, antes destas mesmas se transformarem em museus, ou de migrarem para o grande edifício em mármore rosa do Tennessee, a National Gallery of Art. Os próprios retratos régios propiciavam o máximo dessa satisfação de posse, sobretudo se assinados por grandes mestres. Joseph Duveen, o mais extravagante e bem sucedido comerciante de arte das primeiras décadas do século XX, vendeu um Filipe II de Ticiano a Mary Emery, de Cincinnati e um Filipe IV de Velázquez a Benjamin Altman de New York6. Henry Clay Frick comprara o seu próprio Filipe IV de Velázquez à firma Knoedler em 1911. O retrato da rainha de Inglaterra Henriqueta Maria com o anão Jeffrey Hudson foi vendido por Duveen ao magnata da imprensa William Randolph Hearst (em quem se inspirou Orson Welles para criar Citizen Kane) em 19287. Anos mais tarde, em 1952, o mesmo quadro8 foi vendido por Knoedler à Kress Foundation, instituída por Samuel Kress, sob cuja 5 In WALKER, 1995, p. 31. 6 No Cincinnati Art Museum e Metropolitan Museum of Art (NY) respectivamente. 7 Cf. LEVKOFF 2008. 8 Hoje na NGA de Washington. José Alberto Gomes Machado 37 égide se formou a maior colecção de arte jamais formada nos EUA, hoje dispersa pela National Gallery of Art e por numerosos museus, de Seattle a Honolulu. A ser verdade9, ocorreu mesmo em 1913 um duelo surdo por uma obra de arte entre um monarca e um coleccionador milionário. Nesse ano, Duveen estaria disposto a pagar uma elevadíssima quantia por uma tela de Leonardo, a Madonna Benois, que se encontrava na colecção homónima de São Petersburgo, com o intuito de vendê-la a H.C. Frick. Nos termos da lei russa, o próprio czar poderia exercer o direito de opção, adquirindo-a por igual quantia, para integrar o Hermitage. Ao contrário do que Duveen esperava, atendendo à altíssima quantia em causa, Nicolau II exerceu mesmo o seu direito e o quadro ficou no grande museu russo. Muito se pode especular sobre as motivações psicológicas e mecanismos inconscientes por trás da paixão de coleccionar. A paixão da beleza, o desejo de ascensão social, o impulso de acumular, a compensação de frustrações afectivas através da posse de objectos, a busca da imortalidade, a identificação com grandes figuras do passado constituem decerto algumas dessas razões. É um dos casos mais notórios em que o ter prolonga e robustece o ser. Para vários coleccionadores, há uma real identificação com a época dos objectos que buscaram possuir e os personagens que a povoaram. Anna Thompson Dodge (1871-1970), que formou uma importante colecção de arte decorativa setecentista, legada em parte ao Detroit Institute of Arts, fez-se retratar à moda da época que tanto amava, personificando Mme de Pompadour, num quadro de Gerald Kelly10. Entre os objectos que coleccionou, alguns haviam pertencido a Catarina a Grande (entre os quais um famoso colar com 389 pérolas orientais) e a Maria Antonieta. Marjorie Merriweather Post (1887-1973), herdeira da General Foods e que chegou a ser considerada a mulher mais rica da América, formou uma colecção fabulosa de arte de proveniência russa, que recheia ainda hoje a O episódio é narrado na biografia de Duveen por S. N. Behrman, de 1951, mas tratado na mais recente e sólida Duveen de Meryle Secrest (2005), omitindo a referência a Frick. 9 Retrato de corpo inteiro documentado por fotografia na Detroit Historical Society com o nº 2014.002.076. O mesmo Kelly, pintor da moda entre a alta sociedade americana, pintara antes o retrato póstumo de Henry Clay Frick na West Gallery da sua mansão, de charuto na mão e tendo por trás o retrato régio de Velázquez antes referido (hoje no Frick Art & Historical Center, Pittsburgh). 10 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 38 sua casa de Hillwood (Washington DC), transformada em museu privado. Para além de alguns famosos ovos de Fabergé, Post comprou numerosos outros objectos de arte ligados aos Romanov. Legou à Smithsonian Institution de Washington o diadema que Napoleão ofereceu a Maria Luísa.11 Mais perto de nós, Barbara Hutton (1912-1979), herdeira da fortuna Woolworth, para além de coleccionar maridos (7) e Canalettos (2, magníficos, legados à NGA de Washington), ornou-se também de jóias históricas, como o colar de 53 pérolas naturais que pertenceu a Maria Antonieta, ou um conjunto de esmeraldas pertencentes à celebrada grã-duquesa Vladimir, tia do último czar, as quais Barbara fez montar num diadema (!). Nestes casos, tratando-se de jóias, percebe-se mais facilmente o poder de identificação que carregam, já que são objectos de uso (embora com inestimável valor económico e histórico), que acabaram por ficar também ligados às milionárias contemporâneas, elas mesmas comparadas frequentemente a princesas, pelo estatuto conferido pelos milhões que herdaram e delapidaram. Uma noção de responsabilidade quase dinástica atravessa algumas famílias de coleccionadores, prolongando entre irmãos, ou mais comummente de pais para filhos, essa tarefa de legar à posteridade um nome e uma obra consolidados pela fama. A Europa fornece, entre outros, dois exemplos especialmente notáveis desta transmissão vocacional familiar: um deu origem à Wallace Collection de Londres: o outro gerou o Museo Thyssen Bornemisza de Madrid. A Wallace Collection constitui o paradigma do museu privado, modelo inovador no tempo em que surgiu, tendo posteriormente servido de inspiração para tantos outros, de Gulbenkian até Getty. O quarto marquês de Hertford (1800-1870) herdou um punhado de significativas obras de arte dos seus antepassados, que expandiu enormemente ao longo de uma vida passada maioritariamente em Paris e marcada pelo gosto pela arte francesa do período o rococó. Aproveitando a dispersão de importantes colecções na Paris do Segundo Império, adquiriu numerosas obras primas, como O Cavaleiro que Ri de Frans Hals, a Dama do Leque de Velázquez ou o retrato de Titus, de Rembrandt. Sendo solteiro e sem herdeiros legítimos, optou por legar os seus imensos bens ao seu filho natural Sir Richard Wallace (1818-1890), a quem nunca reconheceu. Este, 11 Cf. FABER 2012. José Alberto Gomes Machado 39 usando o nome de solteira da mãe, dedicou o resto da sua vida a expandir e completar as colecções paternas, que transferiu para Londres, na sequência das convulsões da Comuna de Paris. Morreu sem concretizar o seu desejo de legar à nação inglesa os seus tesouros e dos seus antepassados. Seria a sua viúva francesa, Lady Wallace a pô-lo em prática, instituindo aquele que é ainda hoje um dos espaços museológicos mais notáveis de Londres, recentemente valorizado por uma importante reforma e rearranjo interno. No palacete de Manchester Square, apropriadamente chamado Hertford House, podem ver-se muitos dos melhores exemplares que as artes decorativas francesas produziram no século XVIII, a par de armaduras medievais e quadros das grandes escolas de pintura desde o Renascimento até aos alvores do Impressionismo. Por disposição testamentária da instituidora, nada pode sair e nada pode ser acrescentado à colecção. Este sentido de responsabilidade familiar transmitido pelo sangue pode ser encontrado também no caso dos barões Thyssen, que forjaram, em duas gerações, ao longo do século XX, a mais importante colecção de arte da Europa, a par da Royal Collection britânica. Magnatas do aço, dedicaram boa parte dos seus lucros milionários adquirindo obras de arte. O pai, barão Heinrich (1875-1947) adquiriu exclusivamente Old Masters da maior qualidade, conseguindo pontualmente inverter a tendência da transferência de quadros da Europa para os Estados Unidos, ao repatriar várias obras importantes, na sequência da crise económica de 1929 e da grande depressão que se lhe seguiu. O filho, barão Hans Heinrich (1921-2002) expandiu grandemente a colecção paterna, alargando-a à modernidade; foi um dos primeiros coleccionadores europeus a comprar pintura norte americana; fez-se retratar por Lucian Freud, tal como um príncipe da Renascença se teria feito pintar por Ticiano; reagrupou a herança artística dispersa depois da morte do pai, resgatando numerosos quadros às irmãs e acabou por legar à posteridade o grosso da colecção familiar, ao vender, em 1993, ao estado espanhol 775 quadros da mais alta qualidade. Os filhos desavindos do grande coleccionador coexistem, melhor ou pior, no seio da fundação que criou. No belo enquadramento do palácio que foi dos duques de Villahermosa, os quadros dão testemunho do gosto requintado de duas gerações de verdadeiros e apaixonados conhecedores, que fizeram obra de príncipes12. Em sentido simétrico, pode referir-se um verdadeiro príncipe, assu12 Sobre a saga desta família, cf. RODRIGUEZ 1997 e LITCHFIELD 2006. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 40 mido como grande coleccionador, na esteira dos seus antepassados: Hans Adam II, príncipe reinante de Liechtenstein (n. 1945), senhor de vasta fortuna, tem-se dedicado a recuperar obras de arte, que o seu pai, Franz Joseph II (1906-1989) foi forçado a vender na sequência da II Guerra Mundial e da expropriação de parte das propriedades da família situadas na Checoslováquia. Embora as principais perdas então sofridas sejam irrecuperáveis13, o actual príncipe tem expandido grandemente a colecção, até há pouco exposta ao público em Viena, nos dois restaurados palácios Liechtenstein. Presença marcante no quadro internacional do mercado de arte, Hans Adam II pagou o preço mais alto até hoje alcançado por uma peça de mobiliário, ao adquirir o famoso cabinet Badminton14, proveniente da colecção dos duques de Beaufort, em 2004, num leilão da Christie’s, por 36 milhões de dólares. É curioso observar que, se alguns coleccionadores actuaram como príncipes do passado na aquisição e ostentação de preciosas obras de arte, nos nossos dias, um príncipe reinante, chefe de estado de um minúsculo território, grangeia enorme notoriedade ao actuar como coleccionador, reagrupando e expandindo o património familiar. Talvez mais do que os contratempos políticos do seu reinado, a história venha a reter dele o facto de ser um dos maiores coleccionadores europeus da viragem do milénio. Passando agora aos Estados Unidos, vamos encontrar algumas “dinastias informais”, em que o prestígio do nome e a paixão do coleccionismo perdurou por duas gerações. William (1819-1894) e Henry Walters (1848-1931), pai e filho, magnatas dos caminhos de ferro, dotaram Baltimore de um magnífico museu, que leva o seu nome, onde podem ver-se as colecções acumuladas durante décadas, nomeadamente de antiguidades gregas e romanas, pintura e artes decorativas, em boa parte procedentes directamente de Itália15. Homens discretos, receosos de que pudessem tornar-se públicos os valores por eles dispendidos em arte, afirmaram-se no seio da sua cidade (como tantos ouEntre os tesouros alienados contam-se o retrato de Ginevra de Benci de Leonardo, adquirido pela National Gallery of Art de Washington e o Willem van Heythuyzen, um dos melhores retratos de Frans Hals, cedido à Alte Pinakothek de Munique. 13 Trata-se de um armário de ébano com incrustações , na técnica de pietra dura, celebrizada pelos ateliês grão-ducais de Florença entre os secs. XVI e XVIII. 14 Em 1902, Henry Walters adquiriu em bloco 1700 objectos de arte, entre vasos gregos, bronzes e pinturas, a Marcello Massarenti, coleccionador romano. 15 José Alberto Gomes Machado 41 tros milionários) precisamente pela colecção que reuniram16. John Pierpont Morgan (1837-1913) foi o maior banqueiro do seu tempo, financiador das principais indústrias americanas. Reuniu uma colecção gigantesca de todo o tipo de objectos artísticos, desde esmaltes de Limoges e incunábulos preciosos até bronzes, cerâmicas e pinturas da Renascença. Comprava indiscriminada e compulsivamente.17 Foi um dos grandes impulsionadores do Metropolitan Museum of Art e do Wadsworth Atheneum de Hartford (Connecticut). A ambas estas instituições foi parar boa parte das suas imensas colecções. Depois da sua morte, um grande número de objectos seus foram dispersos em leilão, tornando-se um sinal de distinção para coleccionadores posteriores possuírem algo que pertencera ao lendário banqueiro. Seu filho John Pierpont Morgan Jr (1867-1943) prosseguiu o legado paterno nos negócios (foi um dos grandes financiadores dos beligerantes da I Guerra Mundial) e fundou, para memória do seu pai, um dos mais requintados museus de New York, a Pierpont Morgan Library, detentora do espólio de preciosidades bibliográficas acumuladas pela família, bem como de algumas pinturas flamengas e da Renascença italiana de grande qualidade e daquela que é uma das mais importantes colecções de desenhos do mundo. Tal como no caso dos Walters de Baltimore, os Morgan assumiram a responsabilidade de honrar a tradição dos antepassados através da disponibilização para o público dos objectos acumulados em tão grande número. Mais de um século decorrido, a JP Morgan é ainda hoje uma das mais notórias entidades bancárias dos EUA. É agora tempo de reencontrar os dois personagens com quem iniciámos este percurso e ver de que modo a sua descendência lhes perpetuou a obra. Quando Henry Clay Frick morreu, em 1919, legou o grosso da sua colecção e a mansão que a abriga, à instituição intitulada The Frick Collection. Este pequeno grande museu situado na Fifth Avenue passou a ser gerido por um Board of Trustees dominado pela filha do magnata, Helen Clay Frick (1888-1984) e que integrava, entre outros, John D. Rockefeller (1839-1937), ele próprio um grande coleccionador oriundo de uma famí16 Sobre os Walters, cf. JOHNSTON 1999. Uma caricatura publicada por ocasião da sua morte, mostra-o às portas do céu, diante de Deus Pai, sentado em majestade. Apontando para o trono do Altíssimo, Morgan diz “That’s a nice chair. How much?”Cf. BEHRMAN 1972, p.74 17 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 42 lia de grandes magnatas, das mais ricas do mundo. Mulher determinada e autoritária, nunca casou e dedicou toda a sua vida a perpetuar e gerir a memória paterna, consubstanciada na preciosa colecção, que ela soube expandir, propondo ao longo de décadas a aquisição de numerosas outras notáveis obras de arte. Em ruptura com a sua própria família, por ter sido enormemente favorecida no testamento paterno, Helen criou a Frick Art Reference Library, precioso repositório de informação sobre arte e o universo das colecções nos tempos anteriores à revolução digital. Hoje a Frick Collection alberga o Center for the History of Collecting, instituição pioneira de pesquisa destes temas. Durante décadas, Helen e Rockefeller, que viriam ambos a morrer com quase 100 anos, igualmente autoritários e incapazes de admitir contradição, travaram uma prolongada batalha em torno da melhor forma de gerir a Frick Collection, que passou por acções judiciais tempestuosas. Helen receava que Rockefeller se quisesse apossar do espírito e do nome da instituição que seu pai legara e tentou, quanto pôde, bloquear a possibilidade ao seu adversário de legar obras suas para a colecção. Tal desiderato foi parcialmente alcançado. Ela não conseguiu, contudo, impedir que, muitos anos depois da morte do odiado amigo do seu pai, viessem a integrar a Frick Collection dois magníficos bustos de Verrocchio e Francesco Laurana, bem como a comovente Crucifixão de Piero della Francesca, como legado póstumo de John D. Rockefeller18. Andrew Mellon tem a distinção de ter sido o homem que esteve na origem da criação do último dos grandes museus públicos mundiais, a National Gallery of Art de Washington. Os seus dois filhos, Ailsa Mellon Bruce (1901-1969) e Paul Mellon (1907-1999) consagraram boa parte das usas vidas a completar a missão paterna, servindo essa instituição, no seio da qual desempenharam um papel único19. A discreta Ailsa fora a grande acompanhante do pai em Washington, durante os anos 1920, em que serviu como ministro das Finanças de três administrações republicanas sucessivas. Em sua honra, veio mais tarde a fundar as Andrew Mellon Lectures in the Cf. SANGER 1998. Esta biografia de Henry Clay Frick, escrita após aturada pesquisa pela sua bisneta Martha Frick Symington Sanger acaba por englobar igualmente a vida e trabalhos de Helen. Apesar da riqueza informativa, é uma obra excessivamente marcada por uma interpretação psicológica, segundo a qual, a morte da mulher teria sido o motor determinante da actividade coleccionista do severo milionário. De forma análoga, na génese da colecção coetânea de Isabella Stewart Gardner , em Boston, estaria a morte do seu filho único – cf. THARP 1965. 18 19 Cf. WALKER 1995 José Alberto Gomes Machado 43 Fine Arts, em que cada ano um distinto académico é convidado. Fora dos olhares da imprensa, Ailsa financiou, pouco antes de morrer, a compra pela NGA do mítico retrato de Ginevra de Benci, de Leonardo, por uma quantia que não foi tornada pública20. Legou, por fim, ao museu em testamento a sua colecção de telas francesas impressionistas e pós-impressionistas de grande qualidade e pequeno formato. Da mesma forma que a irmã, Paul Mellon sofreu o traumático divórcio dos pais. Co-herdeiro da fabulosa fortuna familiar, devotou a sua vida a actividades filantrópicas. Da sua mãe inglesa, herdou uma paixão pela vida rural aristocrática, as caçadas, a equitação e, em consequência, a pintura inglesa de temas desportivos. Foi o primeiro presidente do Board of Trustees da NGA, à qual viria a legar mais de 900 obras de arte ao longo de décadas21. Supervisionou (e financiou, em boa parte, juntamente com a irmã) a construção da East Wing, a expansão do venerável museu, com traço do arquitecto I. Pei. Grande coleccionador, na esteira paterna, doou à sua alma mater, a universidade de Yale, a sua enorme colecção de arte britânica sete e oitocentista, para albergar a qual encomendou a Louis Kahn um edifício de referência. O Yale Center of British Art possui a maior aglomeração de arte britânica fora do próprio Reino Unido. Habitando em Upperville, Virgínia, omde veio a falecer, Paul Mellon serviu também como patrono do Virginia Museum of Fine Arts, em Richmond, o qual foi também beneficiado por numerosas doações suas, em vida e póstumas. Muito atento à vida universitária, financiou vários projectos em Cambridge (cujo Clare College frequentara), e foi um dos promotores da fusão de institutos tecnológicos, de que resultou em 1967 a Carnegie Mellon University, em Pittsburgh, cidade em que a família forjara a sua fortuna. Mais ainda que o pai, Paul Mellon foi um verdadeiro príncipe da Renascença, rodeado de beleza, que promoveu e adquiriu, com um estilo de vida aristocrático em que a fortuna se aliava à distinção e ao ethos do serviço público. Mais do que um simples herdeiro de seu pai, ele expandiu os seus interesses, criou em Yale o seu próprio e único museu, sem nunca deixar de supervisionar o legado paterno no Mall em Washington. E assim como seu pai não quisera (ao contrário de Frick) que o seu nome ficasse ligado às 20 Ver nota 12 acima. 21 As últimas das quais acabam de dar entrada, na sequência da morte, com mais de 100 anos, em 2014, da sua viúva, Rachel Lambert Mellon, que conservava ainda algumas a título vitalício. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 44 obras de arte que coleccionou, antes preferindo subsumi-las num contexto nacional, que pudesse ser apelativo para outros mecenas, também Paul não quis ligar o nome explicitamente ao grande centro museológico e de investigação que criou de raiz na sua universidade. A sua morte, no ano derradeiro de Novecentos, marca simbolicamente o fecho de um ciclo, marcado pela grandeza e também pela generosidade.22 “Art collecting has long been linked to power, whether in the form of patronage or plunder. Popes, princes and monarchs alike sought immortality by amassing masterpieces as a demonstration of their enlightened identification with the finer things in life. (…) It was to be expected therefore, that when the super-rich parvenu made it in a big way, he would head for the art dealer”.23 Esta citação pode bem ser enquadrada na perspectiva sobre o coleccionismo que nos é apresentada por Susan Pearce, numa obra de indiscutível referência, On Collecting24. Neste livro, que abre novas perspectivas de abordagem sobre o fenómeno do coleccionismo, a autora refere os seus aspectos político e poético. No primeiro, incluem-se noções como valor e interesses; o segundo reporta-se a realidades, como espaço, tempo e identidade. Justamente as questões de identidade convocam o passado, na imagem que dele faz o presente. O passado é o tempo em que o presente pode escolher as suas referências, na esperança de poder legá-las ao futuro de modo convincente. O grande objectivo é perdurar. Para este tipo de coleccionador, novo príncipe, porque detentor do novo poder, agora conferido pelo dinheiro, a posse de objectos excepcionais, pela beleza, raridade e sobretudo proveniência, é a mais segura garantia de sobrevivência. No topo da escala social em vida e na crista da onda da memória, após a morte. Deve ainda referir-se a espantosa colecção reunda por Peter (1834-1915) e Joseph Widener (1871-1943), pai e filho, milionários de Filadélfia, na sua enorme mansão de Lynnewood Hall. Os seus Grecos, Van Dycks e Rembrandts, entre tantos outros tesouros de pintura, escultura e artes decorativas, foram legados à NGA de Washington, onde ombreiam com a 22 colecção fundadora de Mellon e com o legado posterior de Kress. 23 GREGORY 1993, p. 133. 24 PEARCE 1999. José Alberto Gomes Machado 45 Bibliografia BEHRMAN, S. N., Duveen, Hamish Hamilton, Londres, 1972 (2ª ed). CANNADINE, David, Mellon: An American Life, Allen Lane, Londres, 2006. FABER, Toby, Os ovos de Fabergé, Editora Record, Rio de Janeiro/São Paulo, 2012. GREGORY, Alexis, The Gilded Age: the Super-Rich of the Edwardian Era, Cassell, Londres, 1993 (with a Foreword by John Kenneth Galbraith). JOHNSTON, William R., William and Henry Walters, the reticent collectors, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1999. LEVKOFF, Mary, Hearst the Collector, Harry Abrams, New York, 2008. LITCHFIELD, David, The Thyssen Art Macabre, Quartet Books, Londres, 2006. PEARCE, Susan, On Collecting: An investigation into collecting in the European tradition, Routledge, Londres/New York, 1999. RODRIGUEZ, Conxa, Los Thyssen, por amor al arte, Ediciones BSA, Barcelona, 1997. SANGER, Martha Frick Symington, Henry Clay Frick: Na Intimate Portrait, Abbeville Press, New York, 1998. SECREST, Meryle, Duveen: A Life in Art, Alfred Knopf, New York, 2005. STROUSE, Jean, Morgan: American Financier, Harper Collins, New York, 2000. THARP, Louise Hall, Mrs. Jack, Isabella Stewart Gardner Museum, Boston, 1965. WALKER, John, National Gallery of Art Washington, Harry Abrams, New York, 1995. colecionismo Jacob Burckhardt e os colecionadores no Renascimento italiano1 Cássio Fernandes Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo O nome do historiador suíço, Jacob Burckhardt (1818-1897), esteve, em grande medida, ligado à fortuna crítica de seu livro editado em 1860, Die Kultur der Renaissance in Italien (A Cultura do Renascimento na Itália). O livro de Burckhardt trazia no título uma identificação entre a Renascença, concebida como época histórica, e a história da cultura, pensada como gênero historiográfico. A partir de então, a noção do Renascimento encontrava um sentido adequado sobre o terreno da cultura, ao mesmo tempo em que a imagem de Burckhardt se constituía como a do historiador que concebera de modo definitivo um modelo histórico-cultural. Com a edição de A Cultura do Renascimento na Itália, ele apresentava uma síntese histórico-cultural da época, porém se desculpava de ao livro faltar uma parte. Na primeira página da obra, Burckhardt afirmava: Nós tínhamos primeiramente a intenção de preencher a maior lacuna deste livro com uma obra especial, consagrada à ‘Arte do Renascimento’; propósito que aqui pôde ser realizado apenas em parte.2 Para ele, uma análise do Renascimento italiano deveria conter um estudo global da arte do período, tarefa que não conseguiu realizar no momento em que concebeu o volume de 1860. Porém, nos anos subseqüentes, com o intuito de finalizar seu projeto, concentra o estudo no campo da 1 Esta pesquisa conta com apoio do Edital Universal 2013/ CNPq. BURCKHARDT, Jacob. Gesammelte Werke. Band III. Basel/Stuttgart: Schwabe & Co., 1978, p. 1. 2 47 história da arte. O primeiro fruto desse trabalho, e único editado em vida, é a obra sobre a arquitetura italiana do Renascimento, publicada em 1867: Geschichte der Renaissance in Italien (História do Renascimento na Itália). As primeiras linhas desse volume diziam o que segue: “A arquitetura italiana, desde o despertar da cultura mais alta, é substancialmente condicionada pela mentalidade individual do comitente e do artista, que aqui se desenvolve muito antes que em outros lugares.”3 A partir de 1867, ainda que tenha realizado outros trabalhos de fôlego, seu projeto de terminar a obra sobre o Renascimento italiano com escritos dedicados à arte do período representava um compromisso íntimo. O estudo sistemático da história da arte aprofunda-se para ele a partir de 1874, quando cria e assume a cátedra de História da Arte na Universidade de Basiléia, cátedra que, após 1893, com sua aposentadoria, será ocupada por seu ex-aluno, Heinrich Wölfflin. Paralelamente a isso, Burckhardt continuara a percorrer a Itália em longas estadias até a década de 1880, e a reunir um vasto material a respeito da pintura no Renascimento. Era preciso terminar a redação do projeto iniciado com o livro de 1860, porém, um problema o afligia: como integrar a arte ao mais amplo universo da cultura renascentista? Como compreender a pintura italiana do Renascimento na chave de seu estudo histórico-cultural sobre o período? A primeira versão desse esforço metodológico aparece no manuscrito intitulado Die Malerei nach Inhalt und Aufgaben4 (A pintura segundo o conteúdo e as tarefas). O texto, conservado inédito até 1992, foi originalmente editado na Itália como parte do indispensável trabalho de Maurizio Ghelardi, da Scuola Normale Superiore di Pisa, sobre os manuscritos de Burckhardt. Ao texto, entretanto, Ghelardi deu o título Pittura: i generi.5 É provável que o manuscrito tenha sido elaborado entre 1885 e o início de 1893, com exceção do último capítulo da edição italiana (apenas nessa versão ele aparece), sobre a pintura dos animais, concebido provavelmente em 1895.6 De todo modo, com esse texto, Burckhardt apresentava um estudo BURCKHARDT, Jacob. Gesammelte Werke. Band II. Die Baukunst der Renaissance in Italien. Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1978, p. 3. 3 BURCKHARDT, Jacob. Die Malerei nach Inhalt und Aufgaben. In: BURCKHARDT, Jacob. Die Kunst der Renaissance. Band 1. München; Basel: C.H. Beck; Schwabe, 2006, pp. 261-391. 4 Burckhardt, Jacob. L’Arte Italiana del Rinascimento. Volume II. Pittura: i generi. (A cura de Maurizio Ghelardi.) Venezia: Marsilio Editori, 1992. 5 6 Sobre isso, ver: GHELARDI, Maurizio. Introduzione. Idem, pp.: XVIII-XIX. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 48 conjunto da pintura italiana do Renascimento, organizado de acordo com o que chamou “gêneros”. Mas não gêneros preceptísticos, e sim “gênero” (Gattung) concebido como função de uma obra de arte em relação a um determinado contexto histórico-cultural. Burckhardt, assim, organizava o amplo universo pictórico renascentista basicamente a partir de dois elementos: a destinação e o conteúdo (ou tema) da obra. Desse modo, seu escrito é organizado em capítulos (em “gêneros”), tais como: Alegoria, A pintura dos conventos, A pintura dos hospitais, Orbis terrarum (a pintura dos mapa-mundi), A pintura histórica profana, A pintura mitológica, entre outros. Em cada um desses capítulos, ele observa a evolução formal das obras no arco histórico do Renascimento italiano. Essa perspectiva permitia ao historiador indagar a obra de arte numa dupla consideração: como forma autônoma e em relação a um determinado contexto histórico-cultural, ou seja, nos indissolúveis e complementares aspectos do processo criativo: o formal e o funcional. De fato, Die Malerei nach Inhalt und Aufgaben inaugurava sua abordagem da pintura italiana do Renascimento, ao mesmo tempo em que dava uma resposta ao problema com o qual ele se debatia há mais de duas décadas, ou seja, aquele da indagação da arte no âmbito da história da cultura. Organizar a pintura italiana do Renascimento a partir dos temas e de sua localização original permitia-lhe primeiramente um diálogo com a disposição sobre a qual tinha construído A Cultura do Renascimento na Itália, seguindo uma ordenação narrativa que unia sincronia e diacronia. Na estrutura geral do livro de 1860, ele seguiu um arco temporal mais ou menos delimitado entre a vida de Dante e o Saque de Roma, e, no interior desses limites, sua visão percorreu o desenvolvimento da poesia, da narrativa historiográfica, da biografia, da autobiografia, do desenvolvimento científico, das descobertas marítimas, da vida religiosa, das construções políticas, etc. Sua idéia era, com isso, apresentar a vida na Itália do Renascimento tal como se apresenta uma imagem, dando, portanto, ao leitor a noção de simultaneidade. O manuscrito sobre os gêneros da pintura seguia de perto essa organização, apresentando agora a arte pictórica no centro da interpretação, dividida, ela também, a partir do duplo critério, sincrônico e diacrônico. A intenção era dar vida a uma indagação que fosse estruturada com base nos gêneros pictóricos considerados essenciais pelo autor. Tal abordagem permite agora a Burckhardt demonstrar em que medida a análise sincrônica Cássio Fernandes 49 das formas pictóricas pode ser exposta e explicada diacronicamente. Desse modo, a pintura italiana do Renascimento é interpretada com base num registro duplo e complementar: de um lado, através de uma reconstrução morfológica que busca revelar as mudanças dos temas representados e as tarefas que o artista tinha sido chamado a cumprir; por outro lado, através das funções, dos meios e das capacidades que estavam presentes num dado contexto cultural. Em geral, a pesquisa se propõe a compreender a proporcionalidade entre conteúdo e função, portanto, a iluminar a relação entre forma e funcionalidade, e, ao mesmo tempo, sublinhar a complementaridade que tal ligação teve para o desenvolvimento artístico do Renascimento italiano. Entretanto, a organização proposta em A pintura segundo o conteúdo e as tarefas não seria a última versão dada pelo autor ao estudo da arte pictórica renascentista. De modo que, em seguida à elaboração do manuscrito sobre os gêneros da pintura, Burckhardt retoma seu vasto material sobre o tema, reordenando-o e aprofundando sua abordagem histórico-artística. A partir de 1893, ele retoma o material sobre a pintura do Renascimento e concebe desta vez um grupo de manuscritos, agora sob uma nova organização. O texto, agrupado entre os inúmeros escritos deixados pelo autor, toma a forma de livro postumamente, em 1898, num volume organizado por Hans Trog sob o título Beiträg zur Kunstgeschichte von Italien (Contribuições à História da Arte na Itália). Trog, professor de história da arte em Zurique, tinha feito parte do grupo dos últimos alunos de Burckhardt e, debruçado sobre a obra de seu antigo professor, reuniu num único livro três manuscritos: “O retábulo de altar” (Das Altarbild), “O retrato na pintura italiana” (Das Porträit in der italienischen Malerei) e “Os colecionadores” (Die Sammler). Esses textos, elaborados entre maio de 1893 e os últimos meses de 1896, documentaram o desfecho do projeto de Burckhardt de abraçar, numa visão de conjunto, a arte e a cultura do Renascimento na Itália. Aqui, ele encontra uma maneira de se aproximar efetivamente do mundo dos artistas. Ou seja, a abordagem apresentada por Burckhardt nos referidos manuscritos privilegiava o conhecimento material das obras de arte, a maneira como tinham sido criadas, colecionadas e avaliadas. Burckhardt recusava a explicação generalizada do fenômeno artístico e partia, ao contrário, da obra entendida como testemunho individualizado de um contexto histórico-cultural. Além do mais, os referidos manuscritos continham o teor História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 50 derradeiro de sua intenção de conceber a pintura italiana do Renascimento, como ele próprio afirmou mais de uma vez, segundo “os temas e as tarefas” (nach Gegenständen und Aufgaben) e “os meios e as capacidades” (nach Mittel und Kräften). Burckhardt chegou mesmo a definir o seu papel no estudo histórico-artístico a partir de uma frase, elaborada no crepúsculo de sua vida: “Die Kunst nach Aufgaben, das ist mein Vermächtnis” (A arte segundo as tarefas, eis o meu legado). Com a frase, o historiador pretendeu revelar exatamente o seu interesse em compreender a arte italiana do Renascimento de acordo com a origem das comitências e com seu papel na idealização das obras. O volume intitulado Die Sammler (Os Colecionadores) é importante nesse aspecto. Aqui, logo no início, Burckhardt afirma seu propósito no livro: O capítulo de história da arte italiana que aqui tem início é muito mais amplo e importante do que se possa pensar. Por decênios, o peso maior da produção artística – não tanto pela quantidade, quanto pelo significado interno – devia à comitência e à possessão privadas. [...] Assim, tudo o que era encomendado pela casa e oferecido à consideração próxima e atenta de numerosas famílias, reivindicava uma execução totalmente particular. De tal modo, formou-se progressivamente um gosto privado que exigia da arte propriamente aquilo que a comitência pública não podia, nem queria garantir.7 Burckhardt, na verdade, trata o colecionismo, ou mais exatamente o gosto privado do colecionador, como uma das “tarefas” que tornaram possível à arte renascentista o aprofundamento de temáticas devocionais e a valorização de novos temas profanos. O colecionismo no Renascimento constitui, para Burckhardt, um dos motivos principais da decisão sobre os conteúdos artísticos, chegando a interferir diretamente até mesmo em seu aspecto formal. Ao indagar sobre a relação entre colecionismo e produção artística, Burckhardt pretende compreender sob quais aspectos uma obra de arte pode ter sido determinada por sua destinação, ou ainda tocar aspectos da evolução de alguns temas e conteúdos artísticos. De fato, nesse texto, Burckhardt atenta para a necessidade de pensar a BURCKHARDT, Jacob. Beiträge zur Kunstgeschichte Von Italien: das Altarbild; das Porträt in der Malerei; die Sammler. In: Jacob Burckhardt Werke. Band 6. München; Basel: C. H. Beck; Schwabe & Co., 2000, p. 291. 7 Cássio Fernandes 51 obra de arte no Renascimento como produto de um acordo entre comitente e artista. Ele pretende sondar as peculiaridades do processo de realização das obras e os meandros da relação concreta no momento de sua idealização. Ainda que em alguns casos fosse difícil reconstituir esse processo, o historiador, entretanto, fazia-se a pergunta e buscava respondê-la. Vejamos um exemplo. A corte de Urbino, na época de Federico da Montefeltro, tornara-se emblema para uma das teses centrais de A Cultura do Renascimento na Itália. No livro de 1860, Urbino apresentava-se como chave para a compreensão de Burckhardt do Estado renascentista como obra de arte, ou seja, como criação consciente, emanada da reflexão, que se impõe sobre um modo de viver que havia declinado. Nesse contexto, Federico é descrito como o soberano ideal, senhor de um Estado modelo, onde a pobreza inexistia e tudo girava em torno de uma corte ordenada e virtuosa. Burckhardt certamente tinha-se valido da biografia de Federico, que compunha o significativo livro de Vespasiano da Bisticci, Vite degli uomini illustri del secolo XV, uma das principais seleções de biografias do Quattrocento florentino. Vespasiano concedera a Federico da Montefeltro uma descrição de grande efeito, e havia inspirado Burckhardt a descrevê-lo, em 1860, como condottiere, senhor de Estado, humanista, colecionador e comitente. Mais de trinta anos depois, no volume sobre os colecionadores, Burckhardt retorna à figura do Duque, para indicar, em sua corte, um colecionismo artístico ligado ao gosto pela pintura flamenga. Um colecionismo que revela, por parte de Federico, um interesse pela construção da própria imagem, tanto por meio da retratística, quanto através de sua atuação na reconstrução de sua cidade, bem como na disposição de objetos de arte escolhidos como emblema de seu caráter. Daí, Burckhardt fazia a pergunta: “Mas, quem decidia sobre o gênero da execução? Em Urbino, era o Duque Federigo da Montefeltro ou alguns artistas?”8 Ampliada aos demais comitentes da arte no Renascimento, esta era uma pergunta de fundo a percorrer o conjunto do volume de Burckhardt sobre os colecionadores. Na verdade, o historiador suíço pretendia perceber, no processo criativo, não apenas os elementos concernentes à biografia dos artistas ou aos estilos individuais, mas era fundamental para ele compreender como a mudança na forma era acompanhada de uma modificação análoga no gosto dos comitentes e dos colecionadores. Foi importante para ele, nesse momento, a edição do livro de Eugène Müntz sobre as coleções dos Medici no 8 Idem, p. 344. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 52 século XV.9 A leitura do livro de Müntz fizera com que Burckhardt, no final de 1896, retomasse a redação do manuscrito sobre os colecionadores, que ele considerava ter finalizado um ano antes. Os inventários das coleções dos Medici confirmavam a importância da ligação entre a “tarefa” ditada pelo colecionador e o “conteúdo” de uma obra. Neste ponto conectavam-se os elementos primordiais para Burckhardt perceber as características do processo criativo na arte florentina do Renascimento, ou seja, relacionavam-se colecionismo e comitência como forma de expressão do gosto privado atuando na realização das obras. Burckhardt percebera que as fontes principais de todas as coleções artísticas na Itália foram condicionadas, num primeiro momento, pelo acúmulo de quadros para devoção doméstica, que, dispostos, sobretudo nas casas abastadas, serviam de consolo e conforto. Ele afirma que tais obras gozavam da devoção mais profunda e que, no início, tratava-se de exemplares da pintura bizantina, que permaneciam na possessão das famílias por legado. No inventário de Cosimo de’ Medici, morto em 1464, encontram-se doze pinturas bizantinas de representações sacras, ornadas em ouro, prata, pedras preciosas e mosaicos, provavelmente oriundas da Grécia, e certamente para finalidade de devoção particular. Entretanto, a partir do estudo do próprio inventário dos Medici, Burckhardt percebe que por intermédio dessa família, no Quattrocento, nasce em Florença um colecionismo originado não apenas do legado familiar, mas também oriundo de aquisições e, não raro, sob encomenda. De modo que, na Florença dos Medici, no século XV, unem-se, em torno da idéia da coleção privada, as tarefas de colecionador e comitente, e, em grande medida, movidas pelo gosto da burguesia local pela pintura flamenga. Surge, assim, um progressivo interesse, em Florença, pela pintura de cavalete, sobre tela ou sobre madeira, em comparação com a tradicional pintura a fresco. Com esse processo, o historiador aprofunda sua compreensão da importância da arte flamenga no ambiente dos Medici, e não apenas do ponto de vista da pintura, mas também da tapeçaria. Burckhardt havia concluído que os flamengos tinham condicionado o desenvolvimento do primeiro colecionismo italiano, em especial, pela capacidade realística da pintura a óleo desenvolvida em Flandres, mas também pela facilidade de circulação dos tecidos, dos tapetes e dos quadros flamengos de pequenas dimensões, fato que antecede a circulação dos próprios artistas nórdicos na Itália. Era este 9 MÜNTZ, E. Les collections des Médicis au quinzième siècle. Paris, 1888. Cássio Fernandes 53 um exemplo emblemático do papel do gosto privado do comitente atuando no desenvolvimento da própria história das formas artísticas, visto que entre comitente e artista intensificava-se uma relação estreita e muito particular. A encomenda para coleção privada adquiria um caráter especial, visto que se tratava da produção de objetos pensados para uma colocação mais íntima, no espaço interno da casa e, muitas vezes, para compor conjuntos dentro de uma coleção pessoal. Nesses casos, pensava Burckhardt, o papel da comitência tornava-se ainda mais importante e central na composição da obra. Deste modo, para Burckhardt, no ensaio sobre os colecionadores, o comitente se torna o centro de um campo de relações que une a produção da arte com o universo que a circunda e que, portanto, é atuante no próprio ato criativo. Através da figura do comitente, ele busca a conexão do artista com o fundo social, poético e humanístico do qual a obra de arte deriva, porém sempre a partir de um contato individualizado, concreto, pesquisado caso a caso. Através da figura do comitente, inserido em seu ambiente cultural, era possível tocar o que Burckhardt chamou “gosto artístico”, e, portanto, passar da obra individual para a cultura artística que a propiciou. Assim, era possível restituir o tecido social em que as obras tinham sido criadas; era possível, assim, inseri-las de novo em seu contexto, em seu espaço, ou seja, no concreto mundo dos artistas, delineando ainda as fases do desenvolvimento estilístico renascentista a partir das relações entre gosto privado e gênero artístico. Os escritos histórico-artísticos da fase final da vida de Jacob Burckhardt, publicados, como dissemos, em 1898, encontraram imediata recepção positiva nas investigações que o estudioso hamburguês, Aby Warburg, realizava nos primeiros lampejos do século XX. Entretanto, diferentemente de Burckhardt, que lançava uma visão de conjunto sobre a arte e italiana do Renascimento, Warburg preferia tocar os meandros da criação artística renascentista com estudos de caso, partindo de uma ou outra obra individual para mergulhar no amplo ambiente cultural que a gerou. Em 1902, no ensaio Arte do Retrato e Burguesia Florentina, texto que se inicia com um prefácio em forma de dedicatória a Burckhardt, Warburg se utiliza de um único afresco para compreender o problema da relação entre cristianismo medieval e paganismo antigo na Florença da segunda metade do século XV. Como ele mesmo afirma, no ensaio de 1902: História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 54 Se dirigirmos toda a nossa atenção, munida também de auxílios da indagação arquivística e literária, sobre um afresco de Domenico Ghirlandaio na Capela Sassetti de Santa Trinità em Florença, veremos diante de nós diretamente, num ponto de vista totalmente pessoal, o fundo contemporâneo como potência que exerce uma ação particular. [...] Será necessário, então, já que as deposições de testemunhos oculares são tão dificilmente referíveis, solicitar ao público sua colaboração por assim dizer mediante prova indiciária (Indizienbeweis).10 De fato, o referido afresco representava, para Warburg, o sinal de um problema encontrável de modo difuso na arte e na cultura florentina da época. Em sua concretude, a obra de Ghirlandaio concentrava de modo específico a concepção de mundo que guiava a ação dos homens naquele contexto cultural. Entretanto, a abordagem de Warburg colocava no centro a relação entre comitente e artista. Como ele próprio afirma: As forças motrizes de uma arte viva do retrato não devem ser pesquisadas exclusivamente no artista; é necessário ter presente que entre retratista e retratado tem lugar um íntimo contato que numa época de um gosto especialmente refinado faz nascer entre os dois uma esfera de relações recíprocas, de freio e de impulso.11 Aby Warburg retornaria ao tema das imagens mentais que deram forma ao afresco de Ghirlandaio ao escrever, em 1907, o belo ensaio sobre Os últimos desejos de Francesco Sassetti, onde analisa o escrito testamentário do mercador florentino, o comitente do referido afresco da Igreja de Santa Trinità. Warburg buscava, através desse documento único (o testamento do mercador), desvendar o significado da psicologia do homem laico culto do primeiro Renascimento florentino. No entanto, os ensaios burckhardtianos editados em 1898 terão ainda importância para Warburg no que diz respeito às relações entre a pintura flamenga e a arte italiana no século XV. É certamente com base nos estudos de Burckhardt sobre o colecionismo italiano que Warburg compõe, ainda em 1902, o ensaio que intitulou Arte flamenga e primeiro Renascimento florentino. Burckhardt não havia tratado de modo unilateral o tema das WARBURG, Aby. Bildniskunst und florentinisches Bürgertum. In: WARBURG, Aby. Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band I. Leipzig; Berlin: B. G. Teubner, 1932, pp. 95-96. 10 11 Idem, p. 95. Cássio Fernandes 55 relações entre pintura flamenga e italiana. Ele acenou para as influências recíprocas entre os dois centros artísticos, malgrado tenha percebido uma direta relação entre a chegada das primeiras pinturas flamengas na Itália e o início das coleções, constituídas não apenas por legados hereditários, mas também por aquisições. Warburg, por sua vez, inicia o texto Arte flamenga e primeiro Renascimento florentino com uma menção, em nota de rodapé, à referida obra de Burckhardt, e as seguintes palavras no corpo do texto: A evidente predileção pelos produtos nórdicos, que encontramos nos amantes da arte italiana do primeiro Renascimento, não se devia, em seu início, apenas à compreensão das características íntimas dos quadros flamengos. Ao contrário, eram, em primeiro lugar, os méritos exteriores da pintura nórdica que concederam a ela um círculo de mecenas interessados.12 Segundo Warburg, Giovanni de’ Medici, filho de Cosimo, morto ainda jovem, já se interessara e se empenhara em adquirir tapetes flamengos, que incluía em sua coleção de manuscritos e moedas antigas. Ele teria feito fabricar, em Bruges, um tapete representando o triunfo da morte e da glória segundo a poesia de Petrarca e a partir de um desenho em cartão da mão de um artista italiano. Porém, o interesse dos italianos pela pintura flamenga teria se intensificado ao longo do século XV, com a retratística e com quadro de tema religioso executado para devoção doméstica. Para o rico amante das artes que pretendesse um contato mais íntimo com a pintura sacra do que aquele propiciado pela arte monumental florentina destinada a amplos espaços, a pintura religiosa flamenga funcionava como peça de devoção e, ao mesmo tempo, como objeto de coleção. E de um modo em que o próprio comitente se tornasse o centro de atenção da composição, visto que o objeto refletia o seu gosto pessoal e deveria se harmonizar com o entorno para o qual sua localização fora pensada. Era importante, então, para Warburg, perceber o papel desempenhado pelo gosto do colecionador na concepção do quadro. Ele percebia que a expressão do artista flamengo dialogava com o gosto artístico do comitente italiano. Este comitente, impactado pelos meios de expressão da pintura flamenga aplicados sobre telas de pequenas dimensões, solicitava ao pintor o tema desejado e certamente WARBURG, Aby. Flandrische Kunst und florentinische Frührenaissance. In: WARBURG, Aby. Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band I, op. cit., p. 187. 12 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 56 requeria alguns elementos compositivos e formais de seu agrado, e dessa relação recíproca nascia a obra de arte para culto privado. O interesse de Warburg em compreender as imagens como símbolos de circulações, de migrações de homens e de idéias, seu esforço em perfazer os caminhos das conexões, dos encontros entre elementos distintos, sua determinação em entender a fronteira como o próprio terreno da história, possibilitou-lhe perseguir as relações entre colecionismo italiano e arte flamenga. Para ele, tinha sido resultado da mescla de elementos humanos que se atraem por seu contrário, o produto do encontro entre um mercador de ventura de Lucca e um pintor nórdico, ambos próximos à vida de corte do Duque da Borgonha. Em suas próprias palavras: O mercador de tecidos e o pintor se encontram interiormente no ponto em que a objetividade soberana com que um geria o comércio de objetos de luxo em grandes distâncias e o outro observava com atenção e reproduzia o luxuriante jogo de cores deste mundo.13 Tratava-se do encontro que produziu, em 1435, o retrato do casal Arnolfini, pintado por Jan van Eyck, então pintor oficial do Duque Filipe, o Bom, da Borgonha. O retrato, um testemunho ocular da intimidade doméstica do casal em sua residência de Bruges, refletia, para Warburg, o fascínio do mundo refinado toscano pelos meios de expressar o vivo, trazidos a luz pela arte flamenga. Para Warburg, esta pintura é um exemplo emblemático da compreensão espontânea demonstrada pela burguesia toscana em relação à arte nórdica. Um gosto pela semelhança que encontra a expressão retratística flamenga. Assim, o estilo flamengo, em virtude de sua particular e hábil combinação de íntima devoção e fidelidade realística, oferecia ao colecionador e comitente florentino o ideal e o modelo do retrato de doador. No mesmo instante, diante do “Juízo Final” de Memling, Warburg percebe que as pessoas representadas começam a se destacar do fundo sacro da igreja como personagens individuais. Sobre os dois comitentes, o casal italiano Angelo Tani e Caterina Tanagli, representados de joelho ao lado do tríptico, na Igreja de Santa Maria, em Gdansk, afirma Warburg: Enquanto as mãos dos comitentes mantêm ainda o habitual gesto do homem que, esquecido de si mesmo, implora proteção do alto, 13 Idem, p. 189. Cássio Fernandes 57 o olhar se volta, sonhador ou observador, em direção aos distantes horizontes terrenos.14 Noutro caso, na chamada “Pala Portinari” de Hugo van der Goes, os três pastores tornaram-se modelo direto para os três pastores italianos da “Adoração” pintada por Domenico Ghirlandaio, em 1485, para ornar a capela encomendada por Francesco Sassetti na Igreja de Santa Trinità, em Florença. Para esta afirmação, Warburg certamente tinha o modelo da interpretação de Burckhardt da pintura de Ghirlandaio, no volume sobre O Retrato na Pintura Italiana do Renascimento. Ali, Burckhardt tinha, por sua vez, citado o trecho da Geschichte der Malerei (História da Pintura), de Wörmann e Woltmann, que dizia: “senão pela técnica, certamente pela grandiosidade do realismo, Domenico [Ghirlandaio] possui uma afinidade com a arte flamenga”15 Tratava-se do retábulo que o mercador florentino Tommaso Portinari tinha encomendado a Hugo van der Goes por volta de 1475, para a Igreja de Sant’Egidio, no Hospital de Santa Maria Nuova, em Florença, e que servia para Warburg como emblema da relação direta entre gosto do comitente e execução artística. E mais do que isso, era um exemplo poderoso da influência da arte flamenga sobre aquela florentina, no primeiro Renascimento. Certamente era este um contato de influências recíprocas. Aby Warburg voltaria a este tema em 1905, numa conferência intitulada Intercâmbios artísticos entre Norte e Sul no século XV. Até 1907, quando escreve o ensaio sobre Os últimos desejos de Francesco Sassetti, este foi o foco central de seus estudos. De todo modo, nos últimos anos do século XIX, Aby Warburg percebera o pioneirismo dos estudos de Burckhardt sobre comitência e colecionismo no Renascimento, e seu papel como força motriz da arte renascentista. Warburg tinha notado que o velho historiador suíço havia compreendido as peculiaridades do processo criativo da arte na Renascença e a concretude de sua integração na cultura da época. Warburg havia percebido que os escritos histórico-artísticos do final da vida de Jacob Burckhardt abriam caminho para a interpretação do colecionismo e 14 Idem, p. 205. 15 WOLTMANN, A. e WÖRMANN, K. (org.). Geschichte der Malerei. Vol. III, Leipzig, 1882, p. 132. Citado por BURCKHARDT, Jacob. Beiträge zur Kunstgeschichte Von Italien: das Altarbild; das Porträt in der Malerei; die Sammler. In: Jacob Burckhardt Werke. Op. cit., p. 215. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 58 da comitência como elementos de compreensão da arte italiana no Renascimento. De fato, os estudos pioneiros de Burckhardt apresentavam uma abordagem que seria desenvolvida ao longo do século XX, e não apenas na obra de Aby Warburg, mas em estudos importantes sobre o tema, tais como os de Julius von Schlosser, de Martin Wackernagel, de Francis Haskell, de Krzysztof Pomian. Mas os estudos de Burckhardt deixariam ainda uma janela aberta em direção ao século XIX. Para citar apenas um exemplo, vale ressaltar que além do interesse pela edição dos derradeiros estudos de Burckhardt em vários idiomas nos últimos anos, o recentíssimo livro de Salvatore Settis, editado na Itália em 2010, tem o título Artisti e commitenti fra Quattro e Cinquecento16. Bibliografia BURCKHARDT, Jacob. L’Arte Italiana del Rinascimento. Volume II. Pittura: i generi. (A cura de Maurizio Ghelardi.) Venezia: Marsilio Editori, 1992. BURCKHARDT, Jacob. Beiträge zur Kunstgeschichte Von Italien: das Altarbild; das Porträt in der Malerei; die Sammler. In: Jacob Burckhardt Werke. Band 6. München; Basel: C. H. Beck; Schwabe & Co., 2000. BURCKHARDT, Jacob. Die Malerei nach Inhalt und Aufgaben. In: BURCKHARDT, Jacob. Die Kunst der Renaissance. Band 1. München; Basel: C.H. Beck; Schwabe, 2006. BURCKHARDT, Jacob. Gesammelte Werke. Band III. Basel/Stuttgart: Schwabe & Co., 1978. GHELARDI, Maurizio. Introduzione. BURCKHARDT, Jacob. L’Arte Italiana del Rinascimento. Volume II. Pittura: i generi. (A cura de Maurizio Ghelardi.) Venezia: Marsilio Editori, 1992. MÜNTZ, E. Les collections des Médicis au quinzième siècle. Paris, 1888. SETTIS, Salvatore. Artisti e commitenti fra Quattro e Cinquecento. Torino: Einaudi, 2010. WARBURG, Aby. Bildniskunst und florentinisches Bürgertum. In: WARBURG, Aby. Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band I. Leipzig; Berlin: B. G. Teubner, 1932. SETTIS, Salvatore. Artisti e commitenti fra Quattro e Cinquecento. Torino: Einaudi, 2010. 16 Cássio Fernandes 59 WARBURG, Aby. Flandrische Kunst und florentinische Frührenaissance. In: WARBURG, Aby. Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band I, op. cit., p. 187. WOLTMANN, A. e WÖRMANN, K. (org.). Geschichte der Malerei. Vol. III, Leipzig, 1882. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 60 colecionismo Colecionismos: Entre Japão e Ocidente Michiko Okano Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo No âmbito dos colecionismos da arte nipônica desenvolvidos entre o Japão e o Ocidente, há dois particularmente interessantes, os quais serão tratados adiante. Um deles foi o Japonismo, que ocorreu entre o final do século XIX e o início do XX, em Paris, França. Conduzido por interesses individuais e privados, esse movimento caracterizou-se por uma paixão alimentada pelo sentimento de descoberta do exótico e teve a xilogravura ukiyo-e como principal objeto de desejo. O outro teve lugar no próprio Japão e foi organizado, sobretudo, por três americanos juntamente com um japonês, basicamente na mesma época do movimento ocorrido no continente europeu. O objetivo que os animava era completamente distinto daquele que se apresentava na iniciativa francesa, pois, apesar de a aquisição das peças ser individual e privada, o grupo sediado no território nipônico almejava a formação de uma coleção que pudesse representar o Japão em uma instituição fora do país. Em razão disso, esse acervo foi, mais tarde, levado para os Estados Unidos, onde se tornou a base dos acervos do Museu de Belas Artes de Boston. Os americanos que participaram dessa empreitada viveram alguns anos no Japão e tiveram, nesse período, a aprendizagem da arte japonesa com artistas e críticos de renome, além de contato direto com as obras artísticas. O colecionismo é o hábito de juntar “coisas” que possuem propriedades ou caraterísticas comuns, de forma seletiva e apaixonada, e compreende o exercício de ordenação desses objetos. Considerando as intenções e concepções que orientaram esses dois modelos estudados, é nosso objetivo verificar como eles perfazem a sua coleção e pensar no significado de tais procedimentos. 61 Caso da coleção do Japonismo Sabemos que a coleção da arte japonesa no Ocidente se fez, primeiramente, por alguns objetos que combinam a qualidade técnica artística e a tradição do kogei1: é o caso do charão (laca), no século XVII. No final do século XIX e início do XX, a xilogravura ukiyo-e encantou os impressionistas, bem como, em menor grau, as sofisticadas e detalhadas miniesculturas netsukes ou as guardas de espada japonesa tsuba, produtos da era Edo (1603-1868) japonesa. A era Edo caracterizou-se pelo fechamento dos portos às nações estrangeiras, medida esta adotada pelo governo japonês após um período de catequização patrocinada pelos portugueses. Mesmo assim, a xilogravura ukiyo-e atravessou os mares para o continente europeu. Apesar do isolamento, os holandeses, que eram protestantes, tinham uma especial permissão para entrar no Japão. Além disso, todo o sistema fechado parece mostrar uma brecha no seu funcionamento, o que pode ser verificado pelo caso de Philipp Franz Von Siebold (1796-1866), um médico e botânico alemão, que viajou ao Japão a serviço da Holanda, em 1823. Apesar de os holandeses estarem restritos a permanecerem na Ilha de Dejima2 e, portanto, proibidos de andar pelo território japonês, o caso de Siebold foi diferente. O fato de ser médico fez que ele saísse desse enclausuramento imposto pelo governo local e visitasse os senhores feudais a fim de tratá-los das enfermidades. Como recompensa ao trabalho efetuado, recebia, em muitas ocasiões, objetos de arte. Durante a sua estada de seis anos, entre 1823 e 1829, teve um papel importante no Japão: divulgou a ciência ocidental, foi introdutor da vacina e da anatomia patológica e, em 1824, chegou a ter uma escola de medicina Kôgei (lê-se kôguei) pode ser traduzido como artesanato, mas a autora prefere distinguir esses dois termos porque os contextos culturais tornam as suas semânticas diferenciadas. Kôgei, no Japão, adquire o nível de arte pelo seu refinamento técnico e artístico e recebe equivalente valorização, comprovada pela existência de artesãos considerados Tesouros Nacionais Vivos do Japão. Aliás, um dos fatos importantes detectados pelos ocidentais na época do Japonismo foi justamente a falta de fronteira entre a arte e o artesanato. 1 Dejima, literalmente, ilha de fora, localiza-se na baía de Nagasaki, província de Kyûshû, sul do Japão. Trata-se de uma ilha artificial que, inicialmente, era usada para confinar os portugueses e, posteriormente, para os holandeses estabelecerem contatos comerciais com os japoneses. 2 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 62 em Nagasaki, denominada Narutaki-juku (Cfr. Kouwenhoven, 2000, p.24). No entanto, o seu maior interesse foi o desenvolvimento de uma pesquisa de fauna e flora, publicada, mais tarde, em Leiden, Holanda. A partida de Siebold do Japão está associada ao naufrágio de um dos seus navios e à consequente descoberta do transporte, para a Europa, de várias obras japonesas, inclusive mapas. O fato de possuir mapas do território japonês fez que ele fosse acusado de espião russo e expulso do país. Atualmente, o Museu Siebold e o Museu Nacional de Etnologia, localizados na cidade de Leiden, exibem os objetos etnográficos e artísticos que o médico colecionou durante a sua estada no Japão. Outro caso de brecha encontrado é a entrada dos americanos no porto de Dejima, em navios que portavam bandeiras holandesas, uma exceção concedida na época da Revolução Francesa, quando os navios holandeses deixaram de navegar rumo ao Japão. (Cfr. Tazawa, 2012, p. 26). Salem foi um dos primeiros lugares estadunidenses que teve contato com o Japão, formando, assim, a base do Peabody Essex Museum, que mais tarde seria incrementada com outra leva de obras provenientes do Japão via Boston. Associado a esse fato, verificou-se o borbulhar do interesse pela arte japonesa em Salem e Boston, pela existência de lojas que vendiam as obras de arte e kôgei japoneses. De fato, M. High (Cfr. 2012, p. 19 a 23) registra a viagem, de Massachusetts ao Japão, já em junho de 1871, de Charles Appleton Longfellow (1844-93), que lá permaneceu durante vinte meses. A Exposição Universal de Filadélfia realizada em 1876 foi também um evento que muito influenciou os americanos na sua predileção por artigos nipônicos. Aliás, essas exposições universais do final do século XIX foram capazes de alimentar os olhares europeus para as artes chinesa e japonesa de modo mais concreto, permitindo um contato direto com as obras de arte. Há um caso interessante da participação japonesa na Exposição Universal de Londres em 1862, a qual revela a disseminação da arte japonesa para os europeus por meio de uma coleção individual de um diplomata. Trata-se de Rutherford Alcock (1809-1897), que esteve no Japão de 1859 a 1861 como cônsul geral do Reino Unido, chegando, também, a publicar livros sobre assuntos japoneses. No entanto, o Japão começou a participar oficialmente da Exposição Universal em Paris, em 1867, um ano antes da abertura dos portos. Foi Michiko Okano 63 nessa cidade que a influência da arte japonesa se fez de modo mais intenso, especialmente sobre os artistas impressionistas. O designer e artista gráfico francês Félix Bracquemond havia descoberto o Manga3 de Katsushika Hokusai já em 1858, ainda com o isolamento nipônico, e adquiriu-o no ano seguinte. No mesmo ano da abertura dos portos japoneses, em 1868, Manet já pintava o seu amigo Émile Zola, quadro em que apresenta, no canto superior direito, a combinação de uma xilogravura do Sharaku, de uma gravura em metal de Velásquez e da reprodução da Olympia, do próprio Manet. Isso demonstra que os franceses tinham acesso, de algum modo, à arte japonesa, muito antes de o Japão abrir as suas portas para o mundo. Com a abertura do Japão ao Ocidente, seus produtos inundaram os mercados europeus. Estabeleceram–se várias lojas dedicadas à venda de produtos do Extremo Oriente em Paris. A divulgação da arte japonesa, no início, aconteceu por meio de coleção de artistas, colecionadores e marchands, dentro de um pequeno circuito. Eram realizadas pequenas exposições, muitas vezes, na loja do marchand ou até num café. O marchand parisiense Samuel Bing (1838-1905) foi uma figura chave nesse processo. Possuía, no início da década de 1880, a mais importante galeria de arte japonesa em Paris, a Musée Japonais, na qual expunha vários objetos de procedência japonesa como laca, tsuba e katagami (modelo de estêncil usado para tingimento), entre outros, e onde também realizava exposições. A coleção de Van Gogh e de seu irmão Théo, a maioria adquirida de Bing, somava mais de quatrocentas xilogravuras, que estão no atual acervo do Museu Van Gogh de Amsterdam (Cfr. WICHMANN, 1981. p.9). Foi de Bing também que Monet adquiriu a maior parte das mais de 230 estampas que se encontram hoje no Museu Monet em Giverny (Cfr. MINGARRO, 2010, p. 305). Bing organizava, em Paris, um “Diner Japonais” todos os meses, em que se reuniam, ao redor da mesa, os interessados em arte japonesa, inclusive Hayashi, que, “rico em conhecimentos artísticos até a sua alma, fornecia informações e explicações com incansável paciência e charmosa boa natureza.” (COLLIN, 1913, s/p. T.N.) Tadamasa Hayashi (1853-1906) chegou a Paris para trabalhar na Exposição Universal de 1878 e instalou-se, posteriormente, na cidade, para Manga é uma coleção de 15 volumes de desenhos em xilogravura (preto, cinza e cor da pele), do famoso artista Katsushika Hokusai, publicados a partir de 1814. Os temas incluem fauna, flora, paisagem e cotidiano da vida do povo. 3 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 64 vender os objetos de arte de seu país. Colaborou com artistas e intelectuais como Monet, Goncourt e Louis Gonse nas suas investigações. Apenas em 1890, o que era privado se tornou acessível a um público mais amplo, com a realização de leilões das obras adquiridas pelos primeiros colecionadores de japonismo. Caso da coleção do Museu de Belas Artes de Boston O Museum of Fine Arts of Boston (doravante MFAB), Museu de Belas Artes de Boston, Massachusetts, foi inaugurado em 1876, quando foi também realizada a Exposição Universal em Filadélfia, estado da Pensilvânia. Tal simultaneidade de eventos permitiu um diálogo entre ambos, no que dizia respeito à aquisição, por parte do museu, de obras pouco conhecidas pelos americanos. Certamente, a exposição das obras de arte japonesas como artesanatos em metal, charão e porcelana atraiu a atenção dos visitantes americanos e fez que o Japão viesse a ser, a seus olhos, um país produtor de refinadas obras artísticas. Tal interesse dos estadunidenses deve ter sido também contaminado pela fascinação que os europeus tiveram pelas xilogravuras ukiyo-e, como vimos anteriormente. O museu teve como modelo o South Kensington Museum (atual Victoria and Albert Museum), fundado em 1852, e teve uma concepção ampla e receptiva, para a época da constituição do seu acervo, pois havia, até 1913, no novo prédio construído na Huntington Avenue, uma coleção que tratava, de modo equivalente, as obras gregas e japonesas. (Cfr. NISHIMURA MORSE, 2012, p. 22). Atualmente, o museu possui mais de cem mil peças de obras artísticas nipônicas. Esse interesse dos Estados Unidos pelo Japão consolidou-se em virtude das ações desenvolvidas por três pessoas eruditas, com passagem pela Universidade Harvard: o filósofo e historiador de arte, Ernest Francisco Fenollosa (1853-1908); o médico William Sturgis Bigelow (1850-1926) e o zoólogo Edward Sylvester Morse (1838-1925). Os três chegaram ao Japão entre o final da década de 1870 e o início de 1880 (Morse em 1877, Fenollosa em 1878 e Bigelow em 1881), alguns anos após a abertura do Japão, depois do seu isolamento de mais de duzentos anos. Os três, portanto, pisavam a terra japonesa depois de um longo período de interrupção da conexão com o Ocidente, exceto com os holandeses e num em que o Japão enfrentava uma Michiko Okano 65 enorme mudança: a modernização concomitante com a ocidentalização e a consequente depreciação dos valores tradicionais, inclusive da arte clássica japonesa. Observa-se que a abertura do Japão iniciou-se, curiosamente, pela negociação com os próprios americanos, pelos contatos realizado por Commodore Matthew Calbraith Perry, a bordo de seus “Black Ships” em 1853 e 1854. Imbuídos de encantamento pela observação do diferente, cada um deles cuidou de um campo da coleção de obras. Conforme Morse registrou no seu diário Japan day by day4, Fenollosa cuidaria da aquisição das pinturas, Bigelow, das espadas, tsubas (guardas das espadas japonesas) e charão (laca japonesa) e Morse, da cerâmica. Desse modo, Morse adquiriu uma coleção de mais de cinco mil peças de cerâmica, que foi vendida, posteriormente, para o MFAB em 1892 (Cfr. MORSE apud NISHIMURA MORSE, 2012, p. 15-16). Em verdade, os três chegaram ao Japão no momento certo para adquirir as obras tradicionais, visto que, como os japoneses estavam com o interesse voltado para o Ocidente, elas eram vendidas por uma bagatela. O que se destaca é o refinado senso estético dos ocidentais na seleção dessas obras, adquirido por um estudo aprofundado, sobremaneira, de Fenollosa. Todavia, eles não apenas compraram uma quantidade enorme de peças e levaram-nas para os Estados Unidos, mas também colaboraram para a valorização da arte tradicional japonesa ora realizando palestras, ora dando apoio financeiro a artistas. Morse foi o primeiro deles a chegar ao Japão, em 1877, para pesquisar os braqueópodos, quando foi convidado a dar aula de zoologia na Universidade Imperial de Tóquio. Foi o pioneiro no ensino da teoria de Darwin no Japão, bem como nos estudos de antropologia e arqueologia científica, com enfoque sobre os vasos de cerâmica da Era Jômon (13.000 a.C.-300 a.C.). Fenollosa foi indicado por Morse a dar aula de filosofia e política econômica na mesma universidade, em 1878. O seu encontro com Okakura Kakuzo5, um dos seus alunos, teria sido fundamental para o desenvolvimento do trabalho sobre a arte japonesa. Kakuzo converteu-se O Japan day by day, o diário de Edward Sylvester Morse, encontra-se, atualmente, arquivado no Peabody Essex Museum, Salem, no Estado de Massachusetts. 4 Okakura Kakuzo é muito conhecido como autor da publicação O livro do chá de 1906, originalmente escrito em inglês, o que era muito raro na época. 5 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 66 num grande parceiro do pesquisador nas suas ações durante e depois da estada em Tóquio. Fenollosa permaneceu no Japão por 12 anos e contribuiu muito para a valorização da arte tradicional japonesa, realizando palestras, numa fase em que os olhos dos japoneses estavam voltados para o Ocidente. Foi incumbido, junto com Okakura, de fazer a lista do Tesouro Nacional do Japão e tal fato fez com eles tivessem contato com as obras geralmente inacessíveis, guardadas em templos. É importante lembrar que as aquisições de obras artísticas por Fenollosa não foram acertadas desde o início, pois gosto refinado presente na coleção foi se desenvolvendo aos poucos, após contatos com Kano Eitoku Tatinobu, com quem aprendeu sobre as pinturas chinesa e da escola Kano, da linhagem dos samurais; com Sumiyoshi Hirokata, que lhe ensinou sobre a pintura budista e da Escola Tosa, da linhagem da aristocracia. (Cfr. FENOLLOSA, 1912 p.158). O pesquisador norte-americano encantou-se com a cultura japonesa, vindo a aprender a pintura japonesa nihonga6, e tornou-se budista, recebendo o nome Teishin. Foi um dos primeiros estrangeiros a ser aceito como integrante da linhagem da Escola Kano, recebendo o nome de Kano Eitan Masanobu. Fenollosa tentou buscar um nihonga (pintura japonesa) ideal, em que houvesse um diálogo entre Ocidente e Japão, para o qual fundou, em 1884, uma associação de arte denominada Kaigakai (Associação de Pintura) que diferia do outro grupo existente, Ryûchikai, formado em 1879, que conservava o estilo tradicional. Um artista com o qual teve um contato próximo e que chegou a comissionar foi Kano Hôgai, cujas obras ele conheceu em 1882. Em uma das obras dessa época, Setsuzanbokeizu7 (Window landscape: a ravine), de 1883, que está no arquivo da Freer Gallery of Art em Washington, é possível visualizar o amálgama entre a técnica da perspectiva ocidental e o estilo tradicional da pintura sansuiga (pintura de paisagem, literalmente pintura de montanha e água). Foi aos poucos que Fenollosa conseguiu conquistar Hôgai, torná-lo seu amigo, e convencê-lo a trabalhar na busca de um novo nihonga. Nihonga significa literalmente pintura japonesa e refere-se àquelas obras que utilizam a técnica clássica nipônica, com tintas minerais e vegetais à base de água, pincel, tendo como suporte o papel artesanal washi ou seda. Foi um termo que surgiu na Era Meiji (1868-1912) para contrapor a yôga (pintura ocidental). 6 Setsuzanbokeizu, literalmente, significa “Pintura da montanha e neve ao entardecer”, o que foi traduzido para o inglês, na Freer Art Gallery, como mencionado no texto. 7 Michiko Okano 67 No livro Epochs of Chinese and Japanese art, de autoria de Fenollosa, no prefácio escrito por sua segunda esposa, a escritora e poeta Mary Fenollosa, encontra-se o registro do relacionamento dos dois: “[...] o artista mais inspirador e companheiro de trabalho foi Kano Hôgai, já bem em sua idade mediana, com um espírito esplêndido e rebelde, e o último dos verdadeiros grandes artistas do velho Japão.” (Fenollosa, 1921, p. XV-XVI, T.N.). Fenollosa além de incentivar os artistas, comprava as obras destes, contando com a colaboração financeira do médico americano Bigelow. Foram tais atitudes que fizeram a pintura nihonga reaparecer renovada no cenário artístico, com a utilização das técnicas ocidentais de perspectiva e de luz e sombra concomitantemente com procedimentos clássicos japoneses. Verifica-se que, das nove pinturas de Hôgai existentes no acervo do MFAB, duas foram da coleção de Fenollosa e seis da de Bigelow. (Cfr. Inoue, 2012, p.52) Bigelow, após se formar em medicina pela Universidade de Harvard, foi estudar bacteriologia com Louis Pasteur em 1874, quando vivenciou o japonismo esfuziante de Paris. Efetuou compras com o marchand Samuel Bing e desenvolveu uma coleção de artigos em bronze e charão. Eram objetos suficientes para fazer uma exposição, o que ocorreu após a sua volta à cidade natal, em 1879, no MFAB de Boston. O evento foi considerado a primeira exposição de arte japonesa nos Estados Unidos. (Cfr. M. HIGH, 2012, p.31) Bigelow chegou ao Japão quatro anos depois de Fenollosa, em 1882, para passar as férias, mas acabou permanecendo no país por sete anos, até 1889. No início da sua vida lá, colecionou objetos de arte, sobremaneira espada e charão, mas passou a expandir a sua coleção, incluindo a pintura, a partir de 1882, provavelmente persuadido pelo seu amigo Fenollosa. Todavia, diferente deste, que tinha uma formação clássica das escolas Kano e Tosa, Bigelow tinha preferência pela arte ukiyo-e, talvez influenciado pela sua vivência em Paris. Estudou budismo com o monge Sakurai Keitoku Ajari no Templo Hômyôin em Otsu, província de Shiga, por quem teve muita consideração e afeto. De volta aos Estados Unidos, Bigelow fez doação de cerca de quarenta mil objetos de arte para o MFAB. Nada mais natural que o departamento oriental do MFAB tivesse essas figuras com funções fundamentais em sua organização. Fenollosa, ao retornar às terras americanas, em 1890, tornou-se curador do recémestabelecido Departamento de Arte Oriental do Museu de Belas Artes de História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 68 Boston; Okakura, diretor da divisão de arte asiática, em 1910 e Bigelow, diretor da instituição. O plano já havia sido acalentado no Japão, visto que, já em 1886, Charles Godard Weld comprou a coleção de pinturas japonesas de Fenollosa, que a vendeu sob as condições de que as obras permanecessem no MFAB de Boston e de que o nome dele fosse associado a elas. (Cfr. Fenollosa, 1921, XVIII). De fato, as coleções de Fenollosa e Bigelow atravessaram o oceano e hoje ocupam espaços de importantes museus. A coleção de Bigelow, inicialmente depositada no MFAB de Boston, foi doada para a mesma instituição, em 1922. Considerações finais O colecionismo da arte japonesa pesquisado nas duas localidades do Ocidente apresenta contextos e objetivos distintos. O Japonismo refere-se a uma coleção de um mundo desconhecido, alimentada pela fantasia do exótico. A citação de Oscar Wilde ilustra bem o fato: “O todo do Japão é uma pura invenção. Não há um país assim. Não há pessoas assim. Se você quer ver um efeito do Japão, esteja na sua casa, imerso no trabalho de certos artistas japoneses” (WILDE, 1923, p. 53-54, T.N.). Não significa que fantasias de outros países como China, Índia, Arábia ou, mais tarde, Tahiti, Oceania e África não tenham tido os seus lugares no Ocidente, mas a fascinação pela arte japonesa foi a mais intensa, a mais duradoura e a mais frutífera no universo da arte ocidental. Tal sucesso do Japonismo deveu-se ao encontro do fértil terreno do impressionismo e do pós-impressionismo, que buscavam uma arte para confirmar o estilo artístico por eles proposto, que se contrapunha ao classicismo acadêmico. Camille Pissarro escreve ao seu filho Lucien, em fevereiro de 1893: “A exposição era fascinante. Hiroshige é um maravilhoso artista impressionista [...] esses artistas japoneses comprovam que o nosso modo de pensar não estava errado.” (PISARRO apud TAKASHINA, 1988. p.15, T.N.). Verifica-se, assim, que colecionar arte japonesa na Europa era moda, era paixão, era loucura como dizia Chesneau8, mas também um modo de ver e pensar a arte. Chesneau dizia que o Japonismo “não é mais uma moda, é uma paixão, uma loucura”. (CHESNEAU, apud NAPIER, 2007, p.34) 8 Michiko Okano 69 No caso da coleção institucional, inicialmente guiados por um desejo escópico, estavam os estudiosos obcecados por observar o novo, o diferente. Entretanto, nenhum deles saiu de Boston com a ideia de realizar a coleção. Foi no processo de conhecer o “outro”, o qual levou alguns anos, que tiveram a ideia de formá-la. Talvez tivessem, ao acumular os artefatos, um desejo de satisfazer essa obsessão após voltar aos Estados Unidos, conforme explica M. Hight, [...] a acumulação ou o consumo de artefatos, espécimes e fotografias, são modos de um viajante/colecionador satisfazer a sua obsessão quando voltar à sua casa [...] mostrá-los aos outros após o retorno à sua terra de origem constitui, para esses colecionadores, a validação da sua sofisticação cultural de ter viajado ao Japão.” (M. HIGHT,2011: p.10-11, T.N.). O colecionismo desses americanos remeteria, portanto, à noção de memória (Cfr. Halbawachs, 1990), ou de nostalgia – o objeto colecionado permitiria evocar, reconstruir e reviver o tempo passado no Japão. Justamente por esse motivo, os colecionadores, em geral, tendem a desenvolver um sentimento de afetividade para com os objetos adquiridos. Todavia, no caso estudado, esse desejo não permaneceu na esfera do privado e da afetividade que se associa à possessão dos objetos colecionados. Movidos por um objetivo mais abrangente, os pesquisadores dedicaram-se a mostrar o desconhecido Japão para o público americano, preparando o terreno para, quem sabe, alimentar um novo Japonismo em Boston. Se, conforme Bataille (Cfr. 1987), o hábito de colecionar tem um sentido de permanência, de exteriorizar a vivência em objetos, pode-se entender que os americanos observaram, discriminaram, ordenaram e classificaram as peças artísticas encontradas com o objetivo de perpetuar a experiência dos primeiros ocidentais a pisar no Japão após o longo período de isolamento do país. Constata-se, então, que as primeiras coleções japonesas no ocidente foi gerada por dois tipos de colecionismo muito diferenciados. O colecionismo americano foi marcado pela aspiração de perpetuar, por meio dos objetos, a vida experimentada em meio à cultura nipônica. Todavia, historicamente, o caso da França é mundialmente mais reconhecido pelo fato de ter os artistas como colecionadores, o que proporcionou uma significativa produção de História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 70 novos signos na arte ocidental, inspirada pela coleção – uma comunicação plena desenvolvida por meio de um feliz encontro entre o emissor e o receptor. Bibliografia BATAILLE, G. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. COLLIN, Raphäel; Tadamasa Hayashi. Some refletions. In: Illustrated catalogue of the important collection of paintings, water colors, pastels, drawings and prints collected by the Japanese connoiseur the late Tadamasa Hayashi of Tokyo, Japan. Nova York:1913. FENOLLOSA, Ernest Francisco. Epochs of Chinese and Japanese art- an outline history of East Asiatic design. Nova York: Frederick A. Stokes Company, 1921. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Revista dos Tribunais, 1990. INAGA, Shigemi. 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História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 72 colecionismo Coleccionismo y secularización en Chile en el siglo XIX Marcela Drien F. Professora Universidade Adolfo Ibañez, Chile. Durante la segunda mitad del siglo XIX, el desarrollo del coleccionismo de arte jugó un papel significativo en la formación del gusto público en Chile. Ante la ausencia de un Museo de Bellas Artes, el progresivo aumento en la exhibición de obras pertenecientes a coleccionistas privados ocupó, en gran medida, el rol formativo que debió haber asumido un museo nacional. De este modo, las obras pertenecientes a colecciones privadas, provenientes principalmente de Europa, se transformaron en medios privilegiados para poner a las audiencias locales en contacto con las tendencias artísticas europeas mientras sus propietarios comenzaron a adquirir prestigio como modelos de gusto artístico. En este marco, las exposiciones de arte en que estas obras se exhibieron se transformaron no sólo en puntos de convergencia entre lo público y lo privado, sino en verdaderas vitrinas en que el gusto individual se transformó en uno de los principales referentes para modelar el gusto público. Las exhibiciones visibilizaron la transformación de nociones culturales y artísticas en un espacio público local que comenzaba a adaptarse a una cultura republicana. En el campo de las artes, uno de los aspectos que marcó con mayor claridad los cambios artísticos y culturales del período, fue el lugar que ocuparía la pintura religiosa. En efecto, imágenes cuyo carácter religioso se había vinculado a espacios públicos de devoción durante la colonia, se situaban ahora en el espacio secularizante de la exposición en que el valor estético de la obra eclipsaría su función devocional. Aunque la descontextualización de pinturas religiosas no era una fenómeno nuevo, pues en Europa resultaba habitual encontrar estas obras en galerías para su comercialización, en colecciones privadas o en 73 exhibiciones de arte1, en Chile el desplazamiento de la obra religiosa daba cuenta de profundas transformaciones culturales. En la favorable actitud de coleccionistas hacia obras europeas subyacía no sólo un interés estético, sino la intención de adoptar prácticas que buscaban por sobre todo alinearse con un modelo cultural europeo y marcar un distanciamiento respecto del pasado colonial. La actitud de desdén que demostró la elite cultural respecto de la colonia al llegar la década de 1850, se expresó en gran medida en la ausencia de pintura religiosa colonial en instancias expositivas y su sustitución por obras europeas de temática religiosa -principalmente pintura barroca italiana, española y flamenca- en torno a las cuales comenzarían a predominar consideraciones relativas a las cualidades artísticas, procedencia y autoría. La favorable actitud de los coleccionistas frente a las obras europeas y el rechazo de las obras coloniales se expresó por primera vez en la exposición de pinturas organizada por la Sociedad de Instrucción Primaria en 1856, que marcó la primera aparición pública de obras pertenecientes a colecciones privadas en el país2. La Sociedad había sido creada por un grupo de jóvenes liberales imbuidos de un espíritu ilustrado que consideraba la educación como una de las mayores herramientas civilizatorias, pues la ignorancia, afirmaban, era el mayor de los males de una sociedad, y debía combatirse a toda costa para alcanzar el progreso de la nación.3 Tal como lo afirmaba uno de sus fundadores, Miguel Luis Amunátegui, la educación resultaba fundamental para lograr el desarrollo en todos los ámbitos de la vida nacional, incluyendo la industria, la literatura, la política, la religión, las ciencias y las artes.4 REIST, I.: “Sacred Art in the Profane New World of Nineteenth Century America”. Gail Feigenbaum y Sybille Ebert-Schifferer: Sacred Possessions: Collecting Italian Religious Art, 1500-1900. Los Angeles: Getty Publications, 2011. 1 La exposición de 1856, se enmarcó en un conjunto de actividades filantrópicas organizadas por la recientemente formada Sociedad de Instrucción Primaria para recaudar fondos destinados al fomento de la educación en los sectores populares. “Segunda Reseña. De los trabajos de la Sociedad de Instrucción Primaria leída por uno de sus secretarios en la sesión general y extraordinaria el 28 de Diciembre de 1856”. Colección de documentos relativos a la Sociedad de Instrucción Primaria de Santiago (Cuaderno Primero), Santiago, 1857, pág. 264. 2 3 Sobre el debate en torno a la educación, que dio origen a la Sociedad de Instrucción Primaria, véase EGAÑA, M. L.: La educación primaria popular en el siglo XIX en Chile: una práctica de política estatal, Santiago: LOM, 2000. Cfr. “Discurso pronunciado por don Miguel L. Amunátegui a la apertura de la Sociedad de Instrucción Primaria”. Colección de documentos…: pág. 237. 4 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 74 Fue precisamente el reconocimiento de la significancia cultural de las artes y del rol civilizatorio de las exposiciones5, el que llevó a la Sociedad a organizar exposiciones de arte regularmente.6 Aunque para la exposición de 1856 no se mencionan referencias directas al papel del arte en el desarrollo de la nación, en el contexto de la exposición organizada por la Sociedad en 1858, las alusiones a su rol civilizatorio fueron explícitas. Benjamín Vicuña Mackenna, Secretario de la Sociedad de Instrucción Primaria, insistía en que la educación del gusto era importante no solo para los círculos refinados, sino también para la gente común. Era preciso, afirmaba, “que el pueblo, los artesanos los rotos, las beatas, los chiquillos de la calle” se iniciaran de algún modo en “el májico atractivo” del arte, pues este sería una “semilla civilizadora arrojada en su intelijencia”.7 Las exposiciones, decía, permitían a los visitantes comparar las obras y que, según afirmaba, resultaba esencial para la educación del gusto8. Así, la exposición de 1856, inaugurada en medio de la celebración de las fiestas patrias9, permitiría mostrar el progreso económico y cultural que el país había alcanzado hasta entonces a través de la exhibición de más En este marco, el concepto de “rituales civilizatorios” (“civilizing rituals”) utilizado por Carol Duncan para referirse a la experiencia del museo parece especialmente pertinente para graficar los efectos transformadores atribuidos no sólo al arte, sino a las prácticas exhibitorias sobre sus respectivos públicos durante el siglo XIX. DUNCAN, C.: Civilizing Rituals. Inside the Public Art Museums, New York: Routledge, 2005, pág. 13. Sobre las exposiciones de arte y la idea de civilización en el campo cultural y artístico chileno, véase BERRÍOS, P. et Al.: Del Taller a las Aulas. La institución moderna del arte en Chile (1797-1910). Santiago: LOM, 2009, págs.157-169. 5 Sobre esta y las siguientes las exposiciones realizadas por la Sociedad de Instrucción Primaria, véase RODRÍGUEZ VILLEGAS, H.: “Exposiciones de Arte en Santiago 18431887”. Fundación Mario Góngora: M. Formas de Sociabilidad en Chile, Editorial Vivaria, Santiago 1992, págs. 293-298; BERRÍOS, P. et Al: Op. Cit: págs. 160-166. 6 7 VICUÑA MACKENNA, B.: Una Visita a la Exposicion de Pinturas de 1858. Por uno de los Comisionados de la Sociedad de Instrucción Primaria. Imprenta del País, Santiago 1858, pág. 4. Este texto fue publicado también en la Revista del Pacífico, Tomo I, (Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1858), lo que arroja luces sobre el grado de difusión que alcanzó esta exposición y las ideas de Vicuña Mackenna. 8 Ibidem. La fecha elegida para la apertura de la exposición, utilizada para la mayor parte de las exposiciones realizadas durante el siglo XIX en el país, demuestra el interés de los organizadores por reafirmar el espíritu republicano y cívico que había animado la formación de la propia Sociedad de Instrucción Primaria y que caracterizaría a las siguientes exposiciones de la institución. 9 Marcela Drien F. 75 de 140 pinturas, la mayor parte de las cuales pertenecía a coleccionistas privados.10 La muestra logró reunir 142 cuadros, el grupo de obras de arte más numeroso de pinturas jamás exhibido en el país. Tal como se anunciaba en el diario El Mercurio, se trataba de “la más magnífica exposición de pintura”11 en que “todas las familias de la capital que tenían algún tesoro de este arte se presentaron gustosas”12. Más aún, el propio director de la Academia de Pintura, Alejandro Ciccarelli, había contribuido a destacar la importancia de la muestra, tal como lo consignaba la prensa de la época: “… es sabido que dicha exposición es la más bella i variada colección de cuadros que pudiera formarse no solo en Chile sino en la América del Sud. Tal es por lo menos la opinión del inteligente señor Cicarelli”13. Del conjunto de obras en exhibición, 122 pertenecían a coleccionistas privados entre los que se encontraban Marcial González (1819-1887), que presentó cincuenta y cinco pinturas; Diego Barros Arana (1830-1907), propietario de veinte de las obras; Matías Cousiño (1810-1863) dueño de once obras; Ventura Blanco Encalada (1782-1856), que expuso ocho pinturas y Rafael Larraín Moxó (1813-1892) y Monseñor José Ignacio Víctor Eyzaguirre (1817-1875), ambos con siete obras cada uno14. Otros diez cuadros formaban parte de la Galería Nacional, cinco provenían de la colección de la Academia de Pintura, y las cinco restantes pertenecían a Ciccarelli15. Si bien la variedad de las obras constituyó uno de los aspectos Aún cuando las exhibición de obras de arte no era poco frecuente en el país, como se aprecia en aquellas realizadas en la Academia de Pintura o en las Exposiciones Nacionales, esta muestra fue la primera en exhibir obras mayoritariamente europeas. Véase Catálogo de los cuadros que contiene la Exposición de Bellas Artes de la Sociedad de Instrucción Primaria, Imprenta del Ferrocarril, Santiago, 18 de septiembre de 1856. 10 11 El Mercurio, Viernes 12 de septiembre de 1856. “Reseña (I). De los trabajo se la Sociedad de Instrucción Primaria leída por uno de sus secretarios en la sesión general y extraordinaria el 17 de Septiembre de 1856”. Colección de documentos relativos a la Sociedad de Instrucción Primaria de Santiago (Cuaderno Primero), Santiago, 1857, pág. 258. 12 13 El Ferrocarril, 25 de septiembre de 1856. 14 Catálogo de los cuadros... 15 Aunque la mayor parte de las obras en exhibición pertenecía a colecciones privadas, la inclusión de pinturas de propiedad estatal puede explicarse por el hecho de que la exposición se realizara en la Academia de Pintura, presumiblemente por gestión de su director, quien colaboró en la organización de la exposición y que posiblemente vio en esta muestra una oportunidad para promover su propia gestión a cargo de la institución. Si bien la organización de la exposición estuvo en manos de uno de los fundadores y Vicepresidente de la História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 76 relevantes de la exposición, los géneros pictóricos incluidos en ella resultan especialmente reveladores no sólo del gusto de los coleccionistas y del tipo de obras en circulación en el país, sino de la mayoritaria presencia de la pintura religiosa, de origen europeo. Al menos 40 de las obras en exhibición representaban temáticas religiosas, mientras poco más de 30 correspondían a paisaje y 20 a retrato. Las obras restantes incluían pintura de género y marinas. Sólo dos ejemplos representaban a la “escuela antigua de Quito”, aunque ninguna de estas dos obras, pertenecientes a Marcial González, correspondía a pinturas de temática religiosa, sino mitológica.16 La muestra no sólo dejó en evidencia el marcado predominio de nociones estéticas de influencia europea entre los propietarios de estas obras y el distanciamiento respecto de modelos artísticos coloniales, sino que enfatizó específicamente un aspecto de la obra religiosa, a saber, su cualidad de obra de arte. Sin embargo, la fuerte presencia de obras europeas en el espacio público no significó la desaparición de la pintura colonial, sino más bien, su privatización. El paulatino abandono de las nociones culturales y artísticas que habían marcado el desarrollo del arte religioso durante la colonia, había comenzado a percibirse en la lenta, pero sostenida disminución de encargos de arte religioso visible ya a mediados del siglo XIX. 17 Así, a pesar de esta pervivencia del arte colonial a lo largo del siglo, su participación en el contexto de las exposiciones de arte, será muy reducida. Este fenómeno se Sociedad de Instrucción Primaria, Marcial González, Ciccarelli había ofrecido su colaboración en esta tarea. Notablemente, la estrecha relación entre ambos se expresó no solo en la colaboración y participación de Ciccarelli en la muestra, sino en el hecho de que siete de las obras del artista italiano en exhibición, pertenecían a la colección de Marcial González. De acuerdo al catálogo de la exposición, las obras de Ciccarelli de propiedad de González eran: El Castillo del Huevo (efecto de luna); Vista del Valle de Santiago, efecto de sol tomado de Peñalolén; Dos vistas del Estrecho de Magallanes; Filóctetes abandonado, hoy parte de la colección del Museo Nacional de Bellas Artes; Telémaco i Termosiris y La Venus de las Aguas. Ibid. 16 Según el catálogo se trata de “La infancia de Baco” y “Venus i los amores”. Ibid.: pág. 9. Hasta entonces, y tal como lo señalaba Amunátegui, el arte quiteño había sido especialmente popular no sólo en el ámbito de las instituciones religiosas, sino también en el ámbito privado, debido a su bajo costo. AMUNATEGUI, M.L.: “Apuntes sobre lo que han sido las Bellas-Artes en Chile”. Revista de Santiago, Tomo III, 1849, págs. 44-45. Según Alexandra Kennedy, la comercialización de arte quiteño y su fuerte presencia en Chile durante la primera mitad del siglo XIX y hasta 1870, se debió más bien al asentamiento de artistas quiteños en el país. Sobre la circulación de obras quiteñas en Chile véase KENNEDY, A.: “Circuitos artísticos interregionales: De Quito a Chile. Siglos XVIII y XIX”. Historia, Vol. 31, 1998, págs. 87-111. 17 Marcela Drien F. 77 explica en parte por la apertura de nuevos mercados tras la Independencia, que había favorecido la circulación de obras de arte y artistas en el país. Si bien el carácter secular de las exposiciones de arte contribuyó considerablemente a neutralizar la función devocional de la pintura religiosa, la consideración estética de estas obras debe ser considerada también en el marco del gradual proceso de secularización que se iniciaría en el contexto republicano.18 En este sentido, la exposición de arte tuvo un rol central en la definición del carácter y la percepción pública de la obra religiosa. Así, la preocupación por la dimensión estética de la obra se expresó a través del marcado interés por el dominio de las destrezas del artista. Más aún, la exposición pareció reforzar un argumento que Miguel Luis Amunátegui tempranamente esgrimía para explicar la inferioridad de la pintura colonial. Según Amunátegui, las debilidades del arte barroco colonial y especialmente el quiteño se debía principalmente a las dificultades de los artistas para ajustarse a los principios artísticos europeos: Los Quiteños no saben combinar la luz i la sombra i por eso no producen ningún efecto. Los individuos que colocan en sus lienzos parece que estuvieran tendidos y no de pié; aquel que el pintor ha querido presentar a lo léjos, en el fondo, el espectador lo percibe como quien dice codeándose con el que ocupa el primer término; en una palabra, no tienen perspectiva. ¿I qué decir del modo como dibujan? Salta a los ojos que no han aprendido. No son figuras humanas, son monstruos los que delinean.19 El comentario de Amunátegui, expresado algunos años antes de la exposición, omite consideraciones sobre la función religiosa de las imágenes en favor de asuntos como el uso de la perspectiva y la falta de dominio del dibujo, anticipando el criterio que guiaría a los coleccionistas al momento de seleccionar las pinturas para la exposición, todas ellas de artistas europeos. Junto a la calidad de las obras, el prestigio del pintor, especialmente tratándose de grandes maestros, se transformó en un aspecto determinante en la valoración pública de estas pinturas. En este sentido la obra europea Sobre el proceso de secularización en Chile durante el siglo XIX, el estudio de Sol Serrano resulta especialmente relevante para comprender el lugar que ocupa la religión en el espacio público y los cambios que las relaciones entre religión y política experimentan durante la segunda mitad del siglo XIX. SERRANO, S.: ¿Qué hacer con Dios en la República? Política y secularización en Chile (1845-1885). Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2008. 18 19 AMUNÁTEGUI, Op. Cit: pág. 44. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 78 marcaba también una diferencia sustancial respecto de la pintura colonial, en que la autoría no constituía una preocupación.20 El énfasis en la importancia del artista se apreció también en el hecho de que los comentarios sobre la exposición de 1856, no reflejaran interés alguno por la temática de los cuadros, sino por el prestigio del artista, que con frecuencia iría acompañado por la valoración de las obras, que en muchos casos se asumieron entusiastamente como originales: La Academia de Pintura que dirije el señor Cicarelli está adornada con ciento cuarenta cuadros, de lo mejor que se encuentra en Santiago. Hai entre ellos dos orijinales de Rubens, uno de Murillo, dos de Ribera, uno de Teniers, otros de José Vernet, otro de Rembrand, de Salvator Rosa, de Cárlos Marata, de Sasso Ferrata, de Monvoisin i muchos otros artistas de un mérito distinguido i de gran celebridad.21 Aunque la muestra de 1856 incluyó obras de temática religiosa como las de Ribera, Maratta y Rubens, ello respondió no al interés de los coleccionistas en estos temas, sino más bien al interés por poseer obras de grandes maestros europeos. Posiblemente la única excepción en este sentido fue Monseñor José Ignacio Víctor Eyzaguirre quien logró conciliar en su colección, ambos intereses, es decir, el tema religioso de las obras y el origen europeo de los artistas, aunque su participación en esta exposición sugiere una especial preocupación por el aspecto estético de los cuadros. La preferencia de Monseñor Eyzaguirre por exhibir obras europeas -principalmente italianas- y no obras religiosas coloniales resulta especialmente reveladora de la forma en que la influencia europea permeó incluso el ámbito religioso, tendencia que se consolidaría en el transcurso del siglo. Ante la gradual desaparición pública de la imagen de devoción colonial, evidente ya para mediados del siglo XIX, resulta imposible negar que mientras su lugar se reducía al ámbito privado, el de la obra europea se había extendido más allá del ámbito de devoción. Transformadas en objetos de contemplación estética, las imágenes de santos y escenas bíblicas surgidas de los pinceles de reconocidos artistas europeos resultaban fundamentales para dar cuenta del refinado gusto artístico de sus propietarios y del desarrollo Tal como lo consigna Alejandra Kennedy, mientras en Europa el artista recibía especial reconocimiento, en el contexto americano persistía el anonimato. KENNEDY, Op. Cit: pág. 95. 20 21 El Ferrocarril, 17 de septiembre de 1856. Marcela Drien F. 79 cultural al que tanto aspiraba la elite chilena. En este proceso, serían los coleccionistas los encargados de posicionar públicamente estas obras como referentes artísticos y culturales y las exposiciones de arte, constituirían su principal plataforma. BIBLIOGRAFÍA _____Catálogo de los cuadros que contiene la Exposición de Bellas Artes de la Sociedad de Instrucción Primaria, Imprenta del Ferrocarril, Santiago, 18 de septiembre de 1856. _____”Discurso pronunciado por don Miguel L. Amunátegui a la apertura de la Sociedad de Instrucción Primaria”. Colección de documentos relativos a la Sociedad de Instrucción Primaria de Santiago (Cuaderno Primero). Santiago, 1857. _____“Reseña (I). De los trabajo se la Sociedad de Instrucción Primaria leída por uno de sus secretarios en la sesión general y extraordinaria el 17 de Septiembre de 1856”. Colección de documentos relativos a la Sociedad de Instrucción Primaria de Santiago (Cuaderno Primero). Santiago, 1857. _____”Segunda Reseña. De los trabajos de la Sociedad de Instrucción Primaria leída por uno de sus secretarios en la sesión general y extraordinaria el 28 de Diciembre de 1856” en Colección de documentos relativos a la Sociedad de Instrucción Primaria de Santiago (Cuaderno Primero). Santiago, 1857. AMUNÁTEGUI, Miguel Luis, “Apuntes sobre lo que han sido las BellasArtes en Chile”. Revista de Santiago, Tomo III, 1849, págs. 37-47. BERRÍOS, Pablo et Al. Del Taller a las Aulas. La institución moderna del arte en Chile (1797-1910). Santiago: LOM Ediciones, 2009. DUNCAN, Carol, Civilizing Rituals. Inside the Public Art Museums, New York: Routledge, 2005. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 80 EGAÑA, María Loreto, La educación primaria popular en el siglo XIX en Chile: una práctica de política estatal, Santiago: LOM, 2000. 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Marcela Drien F. 81 colecionismo As desconhecidas coleções de Antonio Alves Villares da Silva: engenharia e colecionismo em São Paulo na primeira metade do século XX Ana Paula Nascimento Pesquisador - Pós-Doutoramento Capes/PNPD. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto “Definiu-se a coleção como um conjunto de objetos expostos ao olhar. Mas ao olhar de quem?” Krzysztof Pomian, Coleção Há séculos a humanidade coleciona objetos. Se até pelo menos no Renascimento as grandes coleções pertenciam apenas aos reis e príncipes, com a ampliação da burguesia os conjuntos ordenados de peças se proliferam por toda a Europa, especialmente a partir do século XVII, chegando às Américas. Todavia, o hábito de colecionar se difunde com maior vigor no século XIX entre diversas camadas sociais. No Brasil, é a partir do final do século XIX que começam a ser conhecidas algumas coleções, a princípio no Rio de Janeiro e, posteriormente, em São Paulo. Mas por que alguém passa a colecionar? Se para alguns uma coleção é uma tentativa de possuir um microcosmo do mundo, para outros pode significar prestígio, riqueza e pertencimento dentro de determinado grupo. Porém, apesar dos diferentes focos, todos os que se dedicam a esta atividade sabem que são necessários tempo, recursos e dedicação para localizar, escolher, estudar, fruir, cuidar e, principalmente, manter os objetos. Assim, colecionar exige foco, persistência e organização. Há sempre as fases de buscas, as aquisições para a reunião das peças tão desejadas. Uma coleção é feita por gosto e seguindo sentimentos singulares que misturam posse e prazer, representam sucesso e um orgulho muitas vezes dissimulado em cada escolha. Egoísmo, vaidade, compulsão e uma vontade (por vezes 83 recolhida) de aprovação, distinção e mérito permeiam e são constituivos do ato de colecionar. Um colecionador dá valor aos objetos a partir de seleções muitas vezes subjetivas, conceitos de valores particulares, meios disponíveis e potencialidades do momento. A distinção, iniciada na possibilidade de compra, continua no acesso permitido apenas a grupo seleto. Ele busca, ao mesmo tempo, assegurar a imortalidade para si mesmo e para a sua coleção. É o detentor de uma certa autoridade sobre a área em que se dedica, pois cabe a ele classificar, incluir, excluir e, sobretudo, eleger. O colecionismo em São Paulo na primeira metade do século XX A figura do colecionador apaixonado surge na São Paulo do século XX e sua existência está diretamente ligada aos avanços econômicos alcançados pela cidade. Como o ato de colecionar é eminentemente urbano, junto com o corpo de melhorias habitacionais, o hábito de possuir objetos seletos passou a existir em diversos segmentos. Nas novas residências, repletas de cômodos e com divisão hierárquica e espacial extremamente delimitada, a sala ou grande salão era o espaço da consagração social. Naqueles ambientes sociais os tesouros eram expostos à admiração: vitrines repletas de coleções distintas competiam pela captura do olhar com xícaras, álbuns, medalhões, peças de bronze, quadros, estatuetas e móveis. Esses ambientes, aos olhos de hoje, locais de acúmulo, tinham como principal intenção propiciar locais agradáveis, aos moldes dos padrões de uma burguesia europeia. Os engenheiros responsáveis pela disseminação da arquitetura eclética na cidade, assim como vários de seus clientes, também reservavam parte de seu tempo e de seu dinheiro para a formação de conjuntos de obras artísticas, podendo ser destacados: Francisco de Paula Ramos de Azevedo, Tommaso G. Bezzi, Victor Dubugras, Jorge Krug, Samuel A. das Neves, Domiziano Rossi, Ricardo Severo, Heribaldo Siciliano e Antonio Alves Villares da Silva (AAVS). História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 84 As coleções AAVS “[...] Voltaria para a cidade... não, iria a São Paulo, fixar-se-ia aí de vez, compraria um terreno em um bairro aristocrático, na rua Alegre, em Santa Ifigênia, no Chá, construiria um palacete elegante, gracioso, rendilhado, à oriental, que sobressaísse, que levasse de vencida esses barracões de tijolos, esses monstrengos impossíveis que por aí avultam, chatos, extravagantes, à fazendeira, à cosmopolita, sem higiene, sem arquitetura, sem gosto. Fá-lo-ia sob a direção de Ramos de Azevedo, tomaria como decoradores e ornamentistas Aurélio de Figueiredo e Almeida Júnior.” Júlio Ribeiro, A carne AAVS, ainda que não seja citado com frequência na escassa bibliografia sobre o colecionismo paulistano da primeira metade do século XX, possui todas as características para ser enquadrado neste perfil. Se a fase inicial de sua biografia em muito se difere da de outros colecionadores, é fato que a partir do seu trabalho passou a ter acesso a muitos bens e obras e assim pôde ser admitido em tal grupo seleto. Era origem paupérrima, filho de imigrantes portugueses que ficou órfão ainda na infância. Aos 12 anos foi encaminhado para o Instituto Dona Ana Rosa (São Paulo). Em 1905 conclui os estudos ginasiais no tradicional Ginásio do Estado Culto à Ciência, em Campinas. Ingressa na Escola Politécnica em 1906. Conclui o curso em 1911, especializando-se no cálculo de estruturas em concreto armado. Recém-formado realiza diversos trabalhos antes de constituir a Siciliano e Silva, em parceria com Heribaldo Siciliano, engenheiro-arquiteto igualmente formado pela Escola Politécnica (1903). A sociedade compreendeu o período de 1920 a 1940 e foi responsável por obras parciais, projetos e diversas construções. Em 1921 casa-se com Jandyra da Fonseca Moraes Galvão; passam a residir na alameda Itu, 78, em residência construída pelo engenheiro no ano anterior. Ainda que muito reservado, teve grande trânsito profissional e político, pois foi amigo de Júlio Prestes, por exemplo. Após a liquidação da Siciliano & Silva, AAVS passou a administrar o sólido patrimônio que ergueu e dedicou-se com afinco às leituras e aos estudos clássicos. Teria ele formado uma ou diversas coleções? Sob a ótica atual, aparentemente AAVS muito se empenhou para viver cercado por um mundo em miniatura do que poderia ser considerado um padrão de excelência naquele Ana Paula Nascimento 85 momento. O ponto de partida talvez tenha sido a construção de sua majestosa residência na alameda Itu. É nessa casa que se dá o cenário para as suas coleções. Quando se observam as fotos da residência, tem-se a impressão que cada pequeno trecho da área social estava ali à disposição daqueles tão caros objetos, sendo ela a síntese destes vários conjuntos. Como muitas casas do período, nasceu pequena, sendo posteriormente ampliada. Aqui novamente um paralelo com as coleções: inicialmente deveria contar com pouco livros, obras e pinturas. Parece que a casa passa então a ser projetada e vivida para dispor aquela imensa quantidade de peças, pinturas e livros. Nas áreas sociais não há, digamos, vazios. Ainda em consonância com as construções ecléticas, a coleção se espalha parede após parede pelos aposentos: quadros são circundados pelos pratos e medalhões; diversos armários apresentam organização impecável de peças de pequenas dimensões; vasos possuem lugares de destaque a partir da colocação em móveis especiais. Ao lado de suas atividades profissionais, AAVS teve uma grande energia para reunir livros, pinturas e uma grande profusão de porcelanas. Ele não estava sozinho nesta empreitada: pelo que foi escolhido, pelo zelo como tudo foi conservado, é nítido o interesse de sua esposa, Jandyra. Ao folhearmos os catálogos de leilões que até hoje resistem na biblioteca que foi preservada, podem ser notadas anotações; ao mesmo tempo, Jandyra foi a principal responsável pela salvaguarda do conjunto: o catalogou em impecável caderno como os antigos “livros de tombo” dos museus – e, igualmente, cuidou dos objetos realizando a higienização e organização das peças. Da mesma maneira, algumas das preferências parecem de fato extremamente femininas, como algumas das tão delicadas xícaras chinesas da Família Rosa ou o grande número de pinturas com mulheres lendo ou em outras atividades, universo este muito distante do de um homem de negócios. Uma das possíveis formas de entender a coleção é dividindo-a em três conjuntos principais: a biblioteca, as peças relacionados às artes decorativas e as pinturas. É difícil precisar quando os conjuntos passam a ser formados. Há indícios de que no princípio da década de 1920, AAVS já tinha grande interesse por arte e realizava aquisições, dada a coleção de catálogos de leilões ou mesmo os guias de museus. Possivelmente fez muitas compras na própria cidade de São Paulo – nos leilões supracitados, nas exposições locais e ainda nas poucas casas especializadas, –, no Rio de Janeiro, em viagens ao História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 86 exterior e até mesmo por intermédio de marchands, como o comerciante Luís Assunção. A biblioteca AAVS “De modo algum a aquisição de livros se resolve apenas com dinheiro ou apenas com o conhecimento de perito. Nem mesmo estes dois fatores juntos bastam para o estabelecimento de um verdadeira biblioteca, que sempre contém, ao mesmo tempo, o inescrutável e o inconfundível.” Walter Benjamin, Desempacotando minha biblioteca A vontade de reunir todo o conhecimento existente, eixo de criação da Encyclopédie organizada por d’Alembert e Diderot na segunda metade do século XVII, move muitos dos colecionadores. Em determinadas séries, eles querem reunir o maior conjunto de peças e, se possível, as mais raras e belas. Antonio Alves Villares da Silva não fugiu a essa regra A biblioteca AAVS reúne publicações de diferentes áreas: as relativas ao exercício profissional – livros e tratados de engenharia e arquitetura, compêndios, revistas especializadas, relatórios de obras, entre outros; os livros de literatura em diversas línguas, notadamente o francês; e, por fim, as publicações relacionadas às artes. A biblioteca tem uma relação estreita com a coleção artística. Dessa maneira, parcela dos livros pode ter servido como fonte de pesquisa bibliográfica sobre a própria coleção. Do livros sobre artes há muitos teóricos, vários sobre museus no mundo e diversas monografias especialmente de artistas representados na coleção, além de manuais dedicados especialmente à prática do colecionismo e os inúmeros livros sobre porcelanas. Há ainda uma fração dedicada às revistas especializadas em arte e coleções artísticas. Contudo, a parte que mais interessa aqui relaciona-se aos catálogos de leilões, sejam os genéricos organizados por casas especializadas ou de vendas de conjuntos artísticos específicos. Entre as décadas de 1920 e 1950 – possivelmente o período em que a coleção AAVS ganhou corpo – foram profícuos os leilões de grandes coleções, pois há uma grande mudança nos membros das camadas abastadas. Pelo material ainda disponível, há indicações de que AAVS frequentou (e também comprou obras) da maioria dos grandes leilões realizados nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. É interessante notar que muitos Ana Paula Nascimento 87 dos catálogos trazem anotados as peças adquiridas pelo próprio AAVS ou mesmo por outros participantes. As publicações compreendem as décadas de 1920 a 1950. Porcelanas e afins “Sobre os consolos, sobre os dunquerques, em vitrinas, em armários de pau ferro rendilhado, em étagères, pelas paredes, por toda a parte semearia porcelanas profusamente, prodigamente – as da China com o seu branco leitoso, de creme, com as suas cores alegres suavissimamente vividas, as do Japão, rubro e ouro, magníficas, provocadoras, luxuosas, fascinantes; os grés de Satzuma, artísticos, trabalhos árabes pelo estilo, europeus pela correção do desenho”. Júlio Ribeiro, A carne Na coleção AAVS sobressaem as peças relacionadas às ditas artes decorativas, presentes em muitos leilões e mostras do período e, igualmente, em diversas coleções formadas naquela época. Tais objetos, inicialmente com intenção utilitária, mas feitos com procedimentos semelhantes aos da arte e materiais preciosos, por sua raridade também são afastados da função original e têm suas características estéticas enfatizadas. O maior conjunto da coleção concentra-se nas porcelanas, louças e faianças: são dezenas e dezenas de peças, como vasos de diversos tamanhos e formas, potiches, travessas, pratos, medalhões, serviços completos de jantar e de chá, xícaras, jarras, canecas, bowls, fruteiras e molheiras. Muitas são de origem europeia – porcelanas e faianças inglesas, francesas, italianas, alemãs, dinamarquesas, austríacas, holandesas e portuguesas – principalmente dos séculos XVIII e XIX. Todavia, o maior grupo e que talvez o que apresente as peças mais significativas é o das porcelanas orientais, notadamente chinesa de gosto europeu e, em menor número, japonesa. Há peças que datam do século XV, mas a maior parte foi produzida nos séculos XVII e XVIII. De algumas há exemplares semelhantes em alguns museus como o Musée Grevin, Paris; Victoria and Albert Museum, Londres; ou no Metropolitam Museum of Art, Nova York, o que colabora para legitimar a coleção. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 88 A temática principal recai sobre os diversos tipos de decorações florais, muitas peças das Famílias Rosa e Verde. Há ainda as paisagens orientais em grande número, cenas pastorais e mitológicas, peças comemorativas e outro grupo de louças brasonadas, tão caras à grande maioria dos colecionadores brasileiros de porcelanas. Outras peças relacionados às artes decorativas são as estatuetas, as peças em bronze e mármore, os relógios, as placas decorativas, as pratas, os cristais, os faqueiros, os leques, as caixas, os candelabros etc. Pinturas Seguindo as normas das camadas sociais abastadas, a residência de AAVS apresenta toda uma hierarquia própria para tais construções: possuía um grande número de cômodos, separação nítida entre as áreas sociais, as de uso cotidiano e as de serviço. Ou seja, a parte para ser exibida, a na qual de fato se vive e a que dá apoio para as outras duas. As pinturas expostas seguem de alguma maneira tal ordem, apesar de ser possível notar algumas transgressões, talvez por questões de gosto pessoal ou porque a coleção está sempre em transformação: novas peças são adquiridas, algumas podem ser doadas ou até mesmo vendidas. De qualquer maneira, a maioria das obras estava distribuída nas áreas sociais: no grande salão, na sala de jantar, no hall de entrada e na sala do hall. Nos espaços de uso cotidiano também estavam dispostas algumas pinturas, como nas salas de almoço e estar diário, normalmente de autores menos conhecidos e com dimensões menores. As partes da residência eminentemente masculinas igualmente tinham em suas paredes pinturas: na biblioteca e na sala de bilhar, por exemplo. Da mesma forma, a seleção das temáticas segue padrões pré-estabelecidos: a maioria das pinturas estão relacionadas com as paisagens – sejam cenas pastoris ou algumas poucas urbanas, pinturas de gênero, figuras, marinhas, pintura religiosa, nus (quase exclusivamente nas áreas consideradas masculinas da residência) –, temas literários ou de batalha, retratos, flores e apenas uma natureza-morta. Não existem na coleção os tão encontrados retratos do patriarca e da matriarca, possivelmente por causa da origem familiar do engenheiro. Ana Paula Nascimento 89 Se forem relacionados os cômodos com os gêneros teremos um melhor entendimento da organização espacial da coleção: na biblioteca, ao lado das porcelanas, apenas figuras de conteúdo moralizante (mendigos). No salão – local aberto apenas para os grandes eventos sociais –, marinha, pinturas religiosas, as melhores pinturas de autores nacionais, paisagens, cenas de gênero com mulheres recostadas ou lendo e figuras. Na sala de jantar, o destaque recai sobre as cenas pastoris e, em seguida, as pinturas religiosas. No hall de entrada predominam as paisagens, as cenas femininas e, excepcionalmente há um pastel de um nu – uma exceção para os padrões da época. Na sala do hall, cenas de interiores, um retrato de Napoleão Bonaparte e algumas paisagens. Na sala de almoço diário, a única natureza-morta do conjunto. Na saleta de estar diário, figuras femininas e uma pintura de flores. Na ala da casa reservada ao patriarca, como o hall e a escada para o porão, a sala do cravo e a sala do bilhar, há obras de praticamente todos os gêneros colecionados. Tratam-se normalmente de trabalhos menores e autores pouco conhecidos. No quarto do patriarca, outros nus, cena religiosa e paisagens. Como a maioria das coleções do período, ou mesmo de décadas anteriores, a escolha incide prioritariamente sobre estrangeiros, especialmente italianos e franceses. Dos artistas brasileiros a preferência se dá para os artistas que estudaram na Academia Imperial de Belas Artes ou na Escola Nacional de Belas Artes com estudos complementares na Europa, principalmente em Paris como Almeida Júnior, Rodolpho Amoêdo, Oscar Pereira da Silva e Eliseu Visconti. Nem só de presenças vivem as coleções Uma coleção também prevê lacunas, atos falhos, vontades que não puderam ser satisfeitas. De alguns leilões, tão importantes como os supracitados, não foram localizados materiais. Entre estes esquecidos, podem ser citados o da venda da coleção de José Gonsalves (1937); o da coleção de Antônio Carlos Simões da Silva (1957) e, principalmente, o da coleção de Heribaldo Siciliano. A coleção do sócio de AAVS na Siciliano & Silva, Heribaldo Siciliano, foi posta à venda pela primeira vez em leilão no Rio de Janeiro em junho História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 90 de 1942. A coleção, semelhante a de AAVS, era constituída por pinturas, bronzes, bibelôs, marfins, porcelanas, móveis, tapeçarias e outros objetos de arte. No catálogo textos de Sérgio Milliet e de Adolphe Stein e a reprodução de uma fotografia de parte do grande salão do palacete do engenheiro, em Higienópolis. A coleção foi novamente leiloada em dezembro de 1943, fazendo as obras parte da massa falida de Heribaldo Siciliano. Ao que tudo indica o conjunto foi comprado pelo leiloeiro Giannini que realizou novo leilão em junho de 1944 novamente na cidade do Rio de Janeiro. Algumas das peças desta coleção possivelmente foram adquiridas por AAVS em um dos três eventos, pois pelas imagens disponíveis é possível reconhecer peças semelhantes. Quais seriam os motivos para que tal catálogo não fizesse parte de sua vasta biblioteca e que tais referências não tenham sido adicionadas aos controles da coleção? Considerações finais Para cada colecionador, pode haver uma ou muitas histórias. Essa é uma das possíveis sobre a coleção AAVS. Antonio Alves Villares da Silva não foi herdeiro; proveniente de uma família humilde, formou sua coleção a partir de recursos próprios, sejam eles financeiros ou visuais. O convívio com outros engenheiros, a rápida ascensão profissional, a inserção em um novo círculo social e a influência de alguns parceiros de trabalho, como Ramos de Azevedo e, de maneira mais próxima, Heribaldo Siciliano, podem ter contribuído em muitas das preferências. Da mesma maneira, o apoio e o entusiasmo irrestrito de sua esposa fizeram com que o casal fossem detentor de uma grande e significativa coleção (ou coleções). O conjunto sintetizado em muito se assemelha a outros que se formaram na cidade de São Paulo principalmente a partir do início do século XX, possivelmente pelo fato desse grupo frequentar os mesmos locais, ter destinos semelhantes nas viagens e mesmos referenciais estético-visuais próximos. A coleção é dinâmica e modifica-se à medida que cada peça entra ou sai. Ela também é definida pela série, que apresenta o fio condutor unindo o conjunto e revelando os interesses que determinaram sua reunião. As Ana Paula Nascimento 91 obra estão ligadas umas às outras, sucessivamente, e todas remetem ao alvo da atenção do colecionador. Assim sendo, a coleção pode ser o retrato que AAVS traçou de si, vale dizer, como ele gostaria de ser visto. Bibliografia consultada AO POVO paulista, O Estado de S.Paulo, 22 jan. 1937, p.1. BENJAMIN, W.: “Desempacotando minha biblioteca”. In: _______. “Rua de mão única”. Brasiliense, São Paulo, 2011. BLOM, P.: “Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções”. Record, Rio de Janeiro, 2003. COLEÇÃO Dr. Heribaldo Siciliano: Leiloeiro Paulo Affonso, Rio de Janeiro, 1942. COLEÇÕES reunidas por Djalma da Fonseca Hermes: Paulo Affonso, Rio de Janeiro, 1941. 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Ana Paula Nascimento 95 Figura 3 Detalhe do interior da residência, década de 1930 In: “Siciliano & Silva: engenheiros construtores”, p. 208. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 96 Figura 4 Uma pequena parcela das porcelanas orientais da coleção AAVS, década de 1920 1835. In: “Siciliano & Silva: engenheiros construtores”, p. 208. Ana Paula Nascimento 97 Figura 5 Almeida Júnior, A noiva, 1886. Coleção particular Reprodução fotográfica: Isabella Matheus. Arquivo da A. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 98 Figura 6 Vista interna do grande salão do palacete de Heribaldo Siciliano, c. 1942 In: COLEÇÃO Dr. Heribaldo Siciliano, 1942, s.p. Reprodução fotográfica: Isabella Matheus. Arquivo da A. Ana Paula Nascimento 99 coleções e museus ¿Gesta memorable deldescubrimiento de América? Discursos y narrativas en la fundación del Museo de América de Madrid Dr. Luis Javier Cuesta Hernández Director, Departamento de Arte, Universidad Iberoamericana, México. LA FUNDACION DEL MUSEO, LA COLECCION Y EL EDIFICIO Apenas dos años después del final de la Guerra Civil Española, el día 19 de abril del año 1941, se publicaba en el Boletín Oficial del Estado núm. 193, el Decreto de fundación del Museo de América en la ciudad de Madrid, firmado por el Caudillo, el generalísimo Francisco Franco Bahamonde. Con las tal vez demasiado elogiosas palabras del periodista del diario madrileño ABC, Barberán, en el número del 23 de julio de 1944, podemos hacernos una idea de cuales eran las intenciones de la fundación: La encendida prosa del decreto fundacional del Museo de América, documento que para los anales de nuestra cultura se fecha el 19 de julio de 1941 [sic], tiene la más esplendida realidad en la obra misma del museo que acaba de inaugurarse en el núcleo del Museo Arqueológico Nacional. Catorce salas comprenden el mismo, como anticipo de esa ejemplar instalación que ha comenzado a erigirse a la entrada de la Ciudad Universitaria, ámbito de nueva hispanidad, en donde, por feliz coincidencia, se podrá señalar a nuestras juventudes de hoy cuales fueron las empresas del ayer de España. Admiramos cuanto de obra misional y civilizadora en aquel pueblo milenario realizamos1 (Barberán, 1944, 9). La inflamada pluma del periodista trae a colación incluso la frase del cronista López de Gómara: la mayor cosa después de la Creación del mundo, sacando la Encarnación y Muerte del que lo creó, es el descubrimiento de Indias. 1 101 Y es que, efectivamente, en ese decreto fundacional, entre otras perlas de la retórica del primer franquismo y absolutamente en sintonía con la línea ideológica del momento, se decía: consecuente con el patriótico espíritu que informa al glorioso movimiento nacional, el Estado ha de fomentar cuanto conduzca al conocimiento de su pasado y muy especialmente a la gesta memorable del descubrimiento y colonización de América. Ha de estudiarse el esplendido arte colonial suma amorosa de lo indígena y de lo hispano y nuestra obra misional única en el mundo. Patentizar la gesta del descubrimiento y la obra misional […] dar memoria, en definitiva, de la labor misionera y civilizadora del imperio español en América (Boletín Oficial del Estado, 1941, preámbulo) Claro, memoria dependiendo de quien esté hablando porque la idea del Museo de América y, sobre todo, el origen de sus colecciones distaban mucho de ser una idea recien gestada en las mentes de los jerarcas de la cultura franquista. Es más, sus antecedentes más cercanos eran republicanos, concretamente, el Museo-Biblioteca de Indias de 1937 (recogiendo así tanto el interes que desperto el intento de don Rafael Altamira de crear una cátedra de estudios americanistas, como la sugerencia de crear dicho museo americanista, emitida por la asamblea del Congreso Internacional de Americanistas celebrado en la ciudad de Sevilla en 1935) Con tales intenciones en octubre de 1937 con motivo de la celebracion del Dia de la Raza, la Gaceta de la Republica publico un texto cuyo contenido, en parte, es el siguiente: “la gran lucha que sostiene España en defensa de los fundamentos mismos de su cultura, obliga a su gobierno a velar por cuanto con esta se relaciona […] una de sus vivas atenciones se proyecto hoy sobre el porvenir cultural americano, con el que lo español se encuentra profundamente unido […] el dia de la Fiesta de la Raza se conmemora la de aquel pueblo que fue nuestro […] quiere el gobierno de la República por una parte ofrecer a la hermandad que fue nuestro […] quiere el gobierno de la República, por una parte ofrecer a la hermandad americana prueba cierta del interes que el conocimiento no solo de cuanto en ella es de estirpe hispana, sino de aquello otro que le es propio […] despierta hoy en la nueva voluntad cultural española” (Vargas Lugo, 1994, 4) História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 102 y el Museo Arqueológico de Indias de 1939, proyectos ambos truncados por la guerra y posterior derrota de la República2. Si nos referimos a las colecciones la cosa se hace aún más resbaladiza en cuanto a la definición de memoria ya que habría que llegar hasta el Real Gabinete de Historia Natural fundado en 1771 por el rey Carlos III, o a la sección de Etnografía del Museo Arqueológico Nacional3 fundado en 18654 para encontrar el origen de buena parte de las piezas que integran la actual colección permanente. Y es que como bien menciona Luís Díaz Viana: «todo museo (…) es un relato. Nos está contando una historia. Se supone que la historia de una nación. Pero en realidad lo que probablemente cuenta es una o varias ideas de nación aplicadas a un caso concreto» (Díaz Viana, 2010, 78). Si tal es el caso, ¿qué historia nos cuenta/contaba/quería contar el Museo de América al tiempo de su fundación?¿cuales eran su idea o sus ideas de nación en ese momento concreto? En 1943 se encargó el proyecto de la nueva construcción del Museo a los arquitectos Luis Moya y Luis Martínez Feduchi, empezándose la obra el mismo año y acabándose en 1954 (aunque la colección no se trasladaría hasta 1962 y la inauguración oficial no se produciría sino hasta tres años después, en 1965). El nuevo edificio, siguiendo la ideología del decreto fundacional, y en palabras de los propios arquitectos: pretendía sugerir la idea de la labor misionera y civilizadora de España en América. Por esta razón se concibió en un estilo historicista y neocolonial con un arco en la fachada, una torre que sugiere las de las iglesias barrocas americanas y una disposición conventual, a la manera española del siglo XVII. Dicha disposición se observa tanto en las salas de exposición, que giran en torno a un claustro central ajardinado, como en el edificio anejo de servicios, que se estructura alrededor de un patio hoy convertido en sala de lectura (Martinez Feduchi, 1943, 413) Cfr. Ramos, Luis y Concepción Blasco. “Gestación del Museo de América” en “Cuadernos prehispánicos”, núm. 7. Seminario de americanistas de la universidad de Valladolid, Valladolid: 1979. Los autores sugieren una lectura un poco diferente del transcurso de los acontecimientos. 2 Noticia histórico-descriptiva del Museo Arqueológico Nacional. Publicada siendo director del mismo el excelentísimo señor don Antonio Gutiérrez. Madrid: Imprenta de T. Fortanet, 1876. 3 Sala, Juan. “Ojeada sobre la sección etnográfica del Museo Arqueológico Nacional” en Museo español de antigüedades. Tomo I. Madrid, 1872. 4 Luis Javier Cuesta Hernández 103 No es extraña esta “coherencia tipológica” ya que parece evidente que la mejor manera de llamar a la memoria de una labor misionera y civilizadora es mediante el recurso a una escenografía neocolonial, y eso nos lleva a otros dos puntos complementarios. Primero: el edificio no estaba en cualquier lugar, formaba parte del famoso “Madrid imperial” o la “cornisa imperial del Manzanares” que en palabras del arquitecto Pedro Muguruza en 1941, «responde a la concepción de un escenario teatral consistente en situar sobre la cornisa del Manzanares los órganos supremos de la nación, es decir, los edificios emblemáticos de la nueva sociedad» (Muguruza, 1941, 19). En el Plan de Ordenación Urbana de Madrid (1941-1946) aparecía una singular propuesta: recuperar la silueta de ciudad imperial del Madrid de los Austrias del siglo XVII en la cornisa del Manzanares. Este retroceso en el tiempo era un soporte simbólico al vacío histórico sobre el que se asentaba el llamado “Nuevo Orden” de los regímenes fascistas. Así, en los altos de la Moncloa, se construyeron los edificios con estilo “neoherreriano”, inundados de torres y fachadas de granito y pizarra. En el solar de la antigua cárcel se levantó el Ministerio del Aire diseñado por Gutiérrez Soto, el Arco de Triunfo de M. Herrero y, finalmente, el Museo de América en la Ciudad Universitaria. Pensar que no hay un significado programático en esa disposición parece francamente iluso. EL FRANQUISMO Y LOS CONCEPTOS DE AMÉRICA Y PANHISPANIDAD Por otro lado, como menciona Sofía Dieguez, «la politica cultural del franquismo hacia Iberoamérica sirvió como pantalla que ocultaba objetivos que, muchas veces, rebasaban el marco meramente cultural para cubrir otros campos de actividad diplomática y adquirir múltiples ramificaciones de la acción política» (Diéguez, 1992, 467). El día 12 de octubre de 1943 (fiesta de la Hispanidad o Día de la Raza) se inauguraron varios de los edificios reconstruidos tras la guerra en la ciudad universitaria y se puso la primera piedra de la construcción del Museo de América. En el discurso pronunciado por el General Franco se hablaba con profusión del tema de América y España: La fiesta de hoy, aniversario del más grande de los acontecimientos de la Historia, nos impulsa a dirigirnos desde aquí, desde este centro espiritual de cultura y de ciencia, a nuestros hermanos del otro lado História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 104 del mar. Ellos forman con nosotros la comunidad hispánica, estrechamente unida por los vínculos de la Religión (en mayusculas en el original) y el idioma. Como prenda de esta nueva etapa de acercamiento cultural de España y los pueblos americanos, quiere el estado inaugurar hoy simbólicamente el comienzo de la construcción del Museo de América (Franco, 1943, 11)5 Todo ello, unido a una muy particular idea de España que la identificaba con el catolicismo en su versión más intransigente (que habría caracterizado presuntamente la historia del cristianismo en España, simbolizada en la Contrarreforma y el Concilio de Trento —“luz de Trento, martillo de herejes”—), con una idea mitificada del Imperio español (como imposición benévola de las virtudes propias de una presuntamente existente raza española, especialmente durante la conquista de América y en una particular reconstrucción de la idea imperial de Carlos V) y con un concepto de unidad nacional y territorial, también mitificado a partir de la monarquía de los Reyes Católicos o Monarquía católica aparece reflejado, al menos en nuestra opinión, en la declaración programática que estaba dando origen al Museo de América. Podemos dar muchísimos ejemplos de esa particular visión de América en la España franquista, pero quiza uno de los más educativos sean los que aparecen en libros escolares, como podemos ver en la Enciclopedia de Antonio Álvarez La conquista de América fue una empresa dura y heroica. En ella se cubrieron de gloria numerosos españoles, pero entre todos sobresalen dos: Hernán Cortés y Pizarro. Con un puñado de valientes, y venciendo dificultades sin cuento, Hernán Cortés conquistó Méjico para España y Pizarro el Perú […] Pero si grande es la obra de nuestros conquistadores, no lo es menos la de nuestros misioneros. Con una paciencia y un espíritu de sacrificio sin par en la Historia, nuestros frailes enseñaron a los indios a leer, escribir y rezar (Álvarez, 1965, 209-210) O en la Nueva Enciclopedia Escolar publicada por los Hijos de Santiago Rodríguez: Franco, Francisco. Discurso pronunciado por S.E. el Jefe del Estado, Caudillo de España en la Ciudad Universitaria de Madrid, pag. 11. Octubre, 1943. Cit. en Dieguez, op.cit.p.468. 5 Luis Javier Cuesta Hernández 105 Los Reyes, lejos de explotar las colonias como si fueran un negocio, las consideraron como una parte del reino que había que evangelizar y civilizar. Ellos enviaron misioneros, ordenaron que se tratara a los indios como a hermanos y no autorizaron su esclavitud. Los misioneros, además de la doctrina cristiana, enseñaron a los indios el cultivo de la tierra, la lectura, escritura y otros conocimientos. La colonización española en América fue una obra grandiosa. Así lo proclaman hoy veinte naciones de aquel Continente, a las que España dio cuanto tenía, que no era poco: fe católica, idioma, cultura (Hijos de Santiago Rodríguez, 1954, 664-665) Por su parte la colección “Temas Españoles” era una colección de folletos oficiales publicados entre 1952 y 1978 formada por 548 entregas, la mayor parte de las cuales aparecieron en la década de los cincuentas, época en la que alcanzó su máxima difusión y podía comprarse en todos los quioscos de España. Constituye un curioso conjunto documental de gran interés ideológico. Fue impulsada y editada por la propaganda del Estado tras la guerra civil. En el número 102 se habla así del Museo de América: «En 1941 se creó el Museo de América. Este Museo expone con rigurosa fidelidad científica la historia del descubrimiento, conquista y civilización de América, pero sobre todo, lo titánico de los trabajos misionales» (Fáñez, 1954, 21) CONCLUSIONES: LA CREACION DE UN (¿FALSO?) DISCURSO HISTORICO En el caso del que nos hemos querido ocupar hoy, creemos haber demostrado de manera palpable la existencia de una gran tensión entre museo, colección, discurso y (¿falsa?) memoria. Parece evidente que el decreto de creación del Museo de 1941 asi como el edificio comenzado en 1943 alineaban el proyecto de Museo de América con otros proyectos que, en los primeros años de la posguerra, trataron de configurar una cultura nacional, que expresara el ideario de los vencedores de la guerra civil. Ese deseo de encontrar una cultura nacional estuvo presente durante muchos años en las personalidades más prominentes del Régimen. Tal vez sean esas las historias y las ideas de nación que contaba el Museo de América, al menos en su forma original. El museo se habilitó con un tono triunfal, y se construyó un edificio neocolonial exclusivamente para él. Esta concepción venía, sin duda, y así História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 106 lo atestiguan los propios constructores, de ese cometido de compromiso evangelizador de los españoles en el continente americano. Habría que decir, por otro lado, que el Museo nunca alcanzó un gran éxito entre los madrileños. Quedó reducido a escenario para celebrar los Dias de la Raza cada 12 de octubre, recibir a las esposas de los embajadores latinoamericanos o realizar eventos folklóricos (se celebraban los días de Argentina, de Perú, de Ecuador…) A manera de epílogo optimista, sin embargo hay que recordar que en 1981 el Museo se cierra (¡durante 13 años!), en vista de que en 1992 se conmemoraba el Quinto Centenario y se deseaba redefinir completamente desde el punto de vista museológico todo el discurso (esa reestructuración tuvo su reflejo legislativo con un decreto reorganizador en 1994). En la década de los noventa aparece los nuevos administradores, que van a intentar superar todo el matiz triunfalista, colonialista y franquista; asi como el paternalismo, la visión etnocéntrica, el cristianismo, la lengua y la cultura española, como imposición cultural. Un grupo de antropólogos, arqueólogo, historiadores y comunicadores, entre los que destacan Paz Cabello, Salvador Rovira, Aracely Sánchez, Concepción García (su actual directora) y Félix Jiménez (actual subdirector) que crean la actual museografía, pero esa ya sería historia de otro día Bibliografía Álvarez Pérez, A. Enciclopedia. Intuitiva – Sintética – Práctica. Primer grado. Valladolid: Miñón, 1965. “ABC” (23/JUL/1944). Barberán, C. “El museo de América”. Madrid, 9. B.O.E., num. 193, 19 de abril de 1941, preámbulo. Cabello Carro, P. “El Museo de América” en “Anales del Museo de América”, num. 1, Madrid: 1993. 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Vargas Lugo, E. “El arte novohispano trasladado a España” en Mexico en el mundo de las colecciones de arte, Maria Luisa Sabau García (coord.) vol. 3. México: Grupo Azabache, 1994. 3 -9. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 108 Figura 1 Luis Moya (Madrid 1904-1990). Luis Martínez Feduchi (Madrid 1901-1975). Fachada del Museo de América. 1943. Madrid. Fotografía Luis Javier Cuesta. Luis Javier Cuesta Hernández 109 Figura 2 Luis Moya (Madrid 1904-1990). Luis Martínez Feduchi (Madrid 1901-1975). Plano del Museo de América. 1943. Madrid. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 110 Figura 3 Fernando Chueca Goitia (Madrid 1911-2004). Dibujo de la cornisa imperial del Manzanares. ca. 1946. Madrid. Luis Javier Cuesta Hernández 111 Figura 3 Anónimo. Portada del número 102 de Temas Españoles titulado “Proyección exterior de España”. 1954. Madrid. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 112 coleções e museus O acervo do MASP como possibilidade de ensino, pesquisa e análise de formação da coleção. Pinturas italianas séculas XIII-XV Flavia Galli Tatsch Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. Introdução A presente comunicação é resultado de uma pesquisa que venho realizando lentamente, cujo objetivo é analisar parte da coleção do Museu de Arte de São Paulo/Masp, mais precisamente as obras elaboradas na Itália entre os séculos XIII a XV. Dois são os motivos que me movem: o primeiro tem a ver com o incentivo à pesquisa e o ensino. O Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo conta, em sua grade regular, com a disciplina específica sobre arte medieval. Um de seus desafios constantes é o de despertar os interesses dos alunos para esse tipo de arte, o outro é driblar a dificuldade do contato direto dos medievalistas com seus objetos de pesquisa. Como podemos incentivar a pesquisa se os maiores acervos e as edificações não se encontram ao nosso lado, na esquina ou na praça central de nossas cidades? Ora, a vitalidade de qualquer estudo acadêmico está em sua capacidade de estabelecer conexões, independente das dificuldades. Assim, propiciar o contato com as obras do acervo do Masp é o primeiro passo para diminuir essa distância. Mas a intenção de aproximação não se circunscreve somente a isso, como pretende abordar a fortuna crítica das pinturas e analisar a própria história da história da arte do recorte temporal assinalado acima, estudando as revisões das atribuições de autoria em momentos posteriores à entrada da obra no museu. O segundo motivo que move a pesquisa, mas não menos importante, é o de compreender quais foram os critérios para a composição da coleção do Masp, tão rica e incomum no Brasil. E é este aspecto que pretendo abordar nesta comunicação: apontar para o início da ligação entre o acervo 113 do museu e o colecionismo particular e como marchand de Pietro Maria Bardi. A história da fundação do Masp é bastante conhecida, mas gostaria de retomá-la, mesmo que de forma breve, para aqueles que dela nada sabem. Dois personagens são fundamentais para compreendê-la: Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo (1892-1968) e Pietro Maria Bardi (1900-1999), este o maior idealizador do projeto do MASP. Breve histórico da fundação do Masp Paraibano, Assis Chateaubriand era diretor dos Diários e Emissoras Associados, uma organização que compreendia uma rede de vinte e seis jornais, cinco revistas, mais de uma dezena de estações de rádio e uma de televisão, resolveu lançar uma campanha para abrir uma galeria de artes plásticas. Como explica seu biógrafo, a ideia da galeria, provavelmente, estava influenciada pela “nomenclatura das similares que vira nos Estados Unidos e na Inglaterra”. Chateaubriand pensava em preencher uma lacuna que, para ele, precisava de sua intervenção, substituindo as instituições públicas culturais brasileiras. Porém, ele não poderia enfrentar tal empreitada sozinho e faltava conhecer alguém que aceitasse o desafio e pudesse orientá-lo. Foi o que aconteceu em 1946, quando encontrou Pietro Maria Bardi. Italiano, nascido em Brescia, jornalista e redator, auto-didata, historiador da arte, colecionador e marchand, Bardi dedicou-se à crítica e ao mercado de arte, foi proprietário de diversas galerias. Em junho de 1944, fundou em Roma, o Studio d’Arte Palma, um espaço pensado para ir para além dos negócios e em que eram organizadas mostras de escultura e pintura, promovidas conferências e cursos de história da arte. Além disso, o Studio tinha um laboratório montado em que se podiam realizar perícias, exames científicos nas obras e trabalhos de restauro. Em 1946, Bardi desembarcou no Rio de Janeiro juntamente com a esposa, Lina Bo Bardi (1914-1992), as coleções de obras do Studio d’Arte Palma bem como a sua particular, objetos diversos e uma enorme biblioteca. A partir desse acervo, começou a promover uma série de mostras de arte, sendo a primeira delas no Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, conhecida como Exposição de Pintura Italiana Antiga do Século XIII ao XVIII. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 114 A ideia inicial de Chateaubriand era criar o espaço cultural no Rio de Janeiro, então capital do país, mas acabou por se decidir por São Paulo, cidade em que se encontrava o dinheiro do café e da indústria, que aí se consolidava cada vez mais. A iniciativa do empresário e de Bardi ocorria em um momento em que a pauliceia contava com dois museus: o Museu do Ipiranga e a Pinacoteca do Estado, fundados respectivamente em 1895 e 1905. Mesmo assim, a cidade carecia de grandes coleções internacionais. Em suas andanças para conhecer o cenário artístico, Bardi se surpreendeu por encontrar uma única galeria, situada em uma travessa da rua Barão de Itapetininga. Segundo ele, no Brasil, “as condições eram precárias: nenhum ensinamento de história da arte nas escolas, falta total de livros didáticos e de publicações em português sobre a história da arte, nenhuma biblioteca especializada.” Em artigo publicado em 1954, escreveu que São Paulo não contava com “monumentos históricos, nem antigas obras de arte para estudar”. Quando Bardi aqui chegou, os museus europeus repensavam seu papel no esteio da retomada das atividades interrompidas pelo conflito mundial que provocou, entre outras coisas, a necessidade de remanejar, com urgência, os acervos para preservá-los da pilhagem e dos bombardeios. Finda a guerra, as reflexões sobre o retorno das obras levavam em consideração novas formas de exposição que propiciassem outras maneiras de “compreender e apreciar as obras de arte”, de forma a associar as atividades à obra educativa, oferecendo ao público, cada vez maior, um “mundo democrático”, cheio de cultura e saber. Atento e inserido nesse cenário, Bardi também queria “atrair e construir um público de habitués, proporcionar um veículo de informação constante sobre tudo o que está acontecendo no mundo da arte e possibilitar que o acervo seja mantido em contínua realização”. Oficialmente, a inauguração do MASP aconteceu em 02 de outubro 1947, no primeiro andar da sede dos Diários Associados – ainda em construção –, na Rua Sete de Abril, 230, no centro. O espaço inicial a ele destinado tinha mil metros quadrados, em forma de “H”, dividido em quatro seções repartidas por painéis móveis, alterados segundo as exigências que podiam se apresentar: 1. sala para a pinacoteca; 2. sala para exposições didáticas e de história da arte; que poderiam; 3. sala de exposições periódicas; 4. auditório. Flavia Galli Tatsch 115 Início da formação do acervo de arte medieval Um dos desafios propostos pelo programa acima exposto era a formação da pinacoteca, que deveria ser montada de forma rápida e a partir de obras suficientemente representativas de momentos diversos da história da arte. O início da coleção se deu a partir de “materiais reunidos usufruindo das oportunidades que se apresentaram no pós-guerra especialmente em Nova Iorque, ponto de partida do antigo: uma estátua egípcia da XX Dinastia; alguns fragmentos de mármore grego, objetos bizantinos; entre as [pinturas] um afresco de Ottaviano Nelli e diversas pinturas de mestres menores toscanos e umbros”. O núcleo principal da coleção do Masp foi constituído em um curto espaço de tempo, entre os anos de 1946 e 1960. Para esta pesquisa, interessam as obras relacionadas na tabela abaixo: Autor Atribuição anterior Maestro del Bigallo Obra Datação Virgem em Majestade com Menino e Dois anjos c.1275 Pintor Anônimo Úmbrio Adeodato Orlandi Maestro di San Martino alla Palma Paolo Serafini da Modena Bernardo Daddi A Crucificação e a Virgem com o Menino entre Anjos, Santos e os Símbolos dos Evangelistas Virgem com Menino Jesus Maestro del Bambino Vispo Adoração dos Reis Magos Ottaviano Nelli Madona com o Menino entre Santa Madalena e Santo Estêvão Protomártir Entrada no acervo 23/4/92 Procedência anterior Doador Coleção particular de Pietro Maria Bardi Pietro Maria Bardi 1290 -1305 2/10/47 Studio d’Arte Palma Drault Ernanni 1310 -1320 19/3/58 Wildenstein & Co, NY terceiro quarto do século XIV 1400 -1410 1947 Coleção Pucci/ Bardi Sem indicação doador Pietro Maria Bardi 1947 Oratorio dell’Arte dei Mercanti della Lana, Gubbio / Galeria em Nova York História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 116 Cia Fabril Juta Taubaté (Mario Audrá) Maestro del 1416 Rossello di Jacopo Franchi Andrea Mantegna Imitador de Lippi_ Pesellino Pseudo Pier Francesco Fiorentino Jacopo del Sellaio? (ou discípulo anônimode Botticelli) Jacopo del Sellaio Biaggio d’Antonio Tucci Francesco Botticini Giovanni Bellini Nicolò di Liberatore (Chamado L’Alunno) Madona com o Menino no Trono e Quatro Santos São Jerônimo Penitente no Deserto Virgem com o Menino, São João Batista Criança e um anjo Virgem com o Menino Jesus 1410 -1415 1947 Principe Fabrizio Massimo, Roma Moinho Santista 1448 -51? 1952 Wildenstein & Co, NY 1460 -1470 2/10/47 Studio d’Arte Palma Câmara Municipal de SP Ind. Martins Ferreira 1470 -1480 2/10/47 Studio d’Arte Palma Ind. Martins Ferreira Madona em Adoração do Menino Jesus e um Anjo A Virgem com o Menino de Pé, Abraçando a Mãe (Madonna Willys) c.1475 10/47 Studio d’Arte Palma Mário Audrá 1480 -1490 2/10/47 Wildenstein Walther Moreira Salles Ecce Homo. Cristo Morto no Sarcófago como “Vir Dolorum: 1480 -1500 2/10/47 Studio d’Arte Palma Diários Associados É preciso levar em conta uma conjunção de fatores para compreender como se deu a seleção e aquisição dessas pinturas e a forma como foram incorporadas ao acervo. Por ora, basta arrolar brevemente três fatores: o mercado de arte no imediato pós-guerra e na década de 1950; “um entusiasmo cívico-cultural da comunidade e muito especialmente de suas elites sócio-econômicas”, no caso Assis Chateaubriand e os doadores do MASP; e a atuação, de um profissional, Pietro Maria Bardi, dotado de “uma cultura histórico-artística consolidada, além de sensibilidade e Flavia Galli Tatsch 117 experiência no que se refere ao potencial das obras a serem cooptadas no mercado e/ou em coleções privadas”. A questão do mercado de arte durante o conflito mundial, no pós-guerra e na década de 1950 é muito importante, não só para se compreender a oferta e os valores praticados, como também a preferência do público comprador e a promoção dos marchands por determinado tipo de obra. Creio que esse é um fator fundamental para a análise, porém não há como aprofundá-la aqui. O que não significa que tenha sido descartada do horizonte dos trabalhos. No momento, gostaria de tentar vislumbrar como a atuação de Bardi e Chateaubriand influenciaram as estratégias de formação do acervo. Teria sido constituído a partir de estudos pré-estabelecidos ou foi fruto das circunstâncias que se apresentaram? Não é nenhuma novidade que Chateaubriand lançou mão de métodos nada convencionais para convencer os milionários a doarem o dinheiro. De suas andanças pelos Estados Unidos e Europa, sabia da oportunidade que o pós-guerra oferecia e era nos jantares promovidos para a elite brasileira que angariava os fundos necessários, pedindo pessoalmente a cada um dos convidados. Entre as estratégias por ele empregadas, estava a de convencer o(a) doador(a) a entregar uma determinada quantia em troca da contratação de anúncios em sua cadeia de imprensa. Porém, o pagamento desse merchandising não ia para os Diários Associados e, sim, diretamente para a conta no banco do museu. Para envaidecer o(a) benfeitor(a), a primeira festa vinha realizada aos pés da escada do avião que havia transportado a obra, ou à frente do navio, no próprio cais do porto junto aos estivadores. Em seguida, outra comemoração promovia o evento, desta vez em trajes de gala, que acabava sendo amplamente difundida nos jornais da rede e na revista Cruzeiro – uma das mais lidas à época. Durante a visita a já mencionada Exposição de Pintura Italiana Antiga do Século XIII ao XVIII, Chateaubriand comprou cinco telas, sendo que cinco fazem parte da lista de obras acima: Adeodato Orlandi [atribuída ao Pintor Anônimo Úmbrio], Rossello di Jacopo Franchi [atribuída ao Maestro de 1416], Nicolo Alunno, Jacopo del Sellaio, Francesco Botticini [atribuída a Biaggio d’Antonio Tucci]. Morais explica que “por delicadeza, Bardi ainda presenteara Chateaubriand com uma pintura sobre madeira”, a então atribuída ao Maestro del Bambino Vispo [hoje considerada como obra de Paolo Serafini da Modena]. A Crucificação e a Virgem do Pintor História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 118 Anônimo Úmbrio foi doada ao museu em nome de Drault Ernanny de Mello e Silva, empresário, banqueiro e amigo de Chateaubriand, no valor de Cr$ 800.000,00; e, a Madona e o menino no trono e quatro santos, do Maestro del 1416, pelo Moinho Santista, no valor de Cr$ 1.500.000,00. Nas pastas de documentação das pinturas, apreende-se que todas elas deram entrada no acervo em dois de outubro de 1947, mesmo dia de inauguração do museu. Os artigos de jornal trazem mais dados. Vejamos, por exemplo, dois deles publicados no Diário de São Paulo, um dos veículos de comunicação do grupo de Chateaubriand. Em 1°de maio de 1947, a matéria informava sobre a doação da Madona com Menino no Trono e Quatro Santos, de Rossello di Jacopo Franchi [hoje Maestro del 1416], mencionando a obra e sua então atribuição pelo historiador da arte Bernard Berenson, o proprietário anterior ao Studio e, por fim, a compra: “pelo diretor dos ‘Diários Associados’ para o Museu de Arte que será inaugurado no novo prédio da rua Sete de Abril. Essa aquisição foi feita com uma das parcelas de contribuição do Moinho Santista (...)”. Já em 10 de agosto de 1947, outro artigo discorria sobre o “enriquecimento do patrimônio artístico” do Masp pela doação de Mário Audrá, diretor da Companhia Fabril de Juta Taubaté, do afresco de Ottaviano Nelli, Madona com o Menino entre Santa Madalena e Santo Estevão Protomártir. Além de traçar algumas linhas sobre o pintor, destacava ser a pintura em questão “uma obra de grande raridade, pois é pouco comum encontrar-se afrescos de grandes proporções fora dos templos”. Os dois artigos revelam que a compra das pinturas se deu meses antes da instituição oficial do museu. O mesmo ocorreu com outras que ingressaram no acervo em 1947. Nem todas as peças arroladas na tabela tiveram o mesmo destaque por parte dos órgãos dos Diários Associados. Algumas foram muito mais celebradas por Bardi, Chateaubriand e seus doadores, por exemplo, as de Jacopo del Sellaio e Giovanni Bellini, que chegaram a circular nas exposições promovidas pelo Masp em museus da Europa e Estados Unidos nos anos 1953-1954. Talvez não exista um único argumento que explique tal fato. É possível que isso tenha ocorrido por conta de certa depreciação, no Brasil, dos mestres toscanos e úmbrios considerados “menores” – como se lê no texto do catálogo da exposição realizada no Palazzo Reale em Milão, entre novembro de 1954 e fevereiro de 1955. Pode ser, também, que não se adequassem ao gosto dos doadores e do público contemporâneo Flavia Galli Tatsch 119 à formação do Masp, mais receptíveis a obras elaboradas em períodos posteriores, como explica Bardi: “(...) A generosidade destas contribuições por parte dos nossos doadores, possibilitou aumentar o acervo com obras especialmente posteriores ao Setecentos. Sem eles não poderíamos ter as cinquenta obras primas do Impressionismo e as apreciáveis séries dos contemporâneos, e entre outros, seis Modigliani (...).” Se não se enquadrava em uma questão de “gosto” por parte dos doadores e do público, precisamos voltar à questão da coleção de Bardi/Studio d’Arte Palma o colecionismo e a formação do museu. Das doze obras arroladas na tabela: nove deram entrada no acervo em 1947; uma em 1952; uma em 1958; e, a última em 1992. Dessas doze: oito pertenciam ao acervo do Studio d’Arte Palma ou do próprio Pietro Maria; três adquiridas através do marchand Wildenstein & CO, em Nova Iorque; e, uma oriunda de outras coleções. No total, Bardi teria doado ou vendido “nada menos que quatorze pinturas de sua propriedade, dentre as trinta e seis obras anteriores ao século XIX que compõem o núcleo fundamental do museu no domínio de pintura italiana”. Segundo Marques: “quarenta por cento de nossa pinacoteca anterior ao século XIX não foi portanto escolhida em virtude de uma qualquer estratégia museológica, mas em função de uma oportuna circunstância. Contudo, seria ingênuo supor que tal circunstância fosse desprovida de significação intelectual, pois permanece a questão de saber porque Bardi possuía em seu acervo comercial exatamente estas e não outras obras quaisquer.” Bardi não era um marchand qualquer, haja vista a experiência acumulada na Itália como galerista, além de estar sempre em contato com os maiores historiadores da arte, entre eles Leonello Venturi, Federico Zeri, Roberto Longhi – este último responsável por muitas expertises dos quadros hoje no Masp. A meu ver, o acervo das obras dos séculos XIII a XV pode ser considerado como uma herança não só das oportunidades que se fizeram sentir no mercado de arte, como do gosto e das preferências de Pietro Maria; dele e de sua geração. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 120 Analisar a vivência de Bardi no que tange a história da história da arte e a crítica de arte na Itália na primeira metade do século XX pode trazer uma série de dados. Pietro Maria foi uma pessoa atuante no cenário artístico-político nos anos 1920-40, mas sua relação com o regime fascista não é tema desta comunicação. No entanto, quero chamar a atenção para as mostras promovidas por Mussolini, consideradas um elemento central da atividade cultural de seu regime, mais precisamente duas relativas à arte medieval: a Mostra della pittura riminese del Trecento, em 1935, que associava o nascimento de uma escola regional a Giotto e a Mostra Giottesca, sobre esse grande artista, em Florença dois anos depois. Ambas procuravam valorizar as obras expostas, valorizadas como pintura italiana “da origem”. Compreender o que a promoção dessas exposições representou naquele momento e na década posterior – o catálogo da Mostra Giottesca foi publicado somente em 1943 – para a arte italiana, para os estudos dos especialistas em história da arte dos séculos XIV-XV, para a mobilização do público e os jogos do mercado de arte, é um dos próximos passos da pesquisa que também se ocupará com o estudo das atividades do Studio d’Arte Palma em seu breve histórico (1944-48). Catálogos “Exposição de Pintura Italiana Antiga do Século XIII ao XVIII”. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Saúde, 1946. Rio de Janeiro 1946. MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO, SP. “Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand”. São Paulo: MASP, 1998. PALAZZO REALE, Milão. Dipinti Del Museo d’Arte di San Paolo Del Brasile: esposti al Palazzo Reale di Milano. Novembre 1954-Febbraio 1955. Milão: Edizione Del Milione, 1954. Bibliografia BARDI, P.M. ____. “L’experiénce didactique du Museu de Arte de São Paulo”. Museum. 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TENTORI, F. P.M.Bardi. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 122 coleções e museus O Maneirismo e o Barroco na pintura retratística da Coleção Eva Klabin Ruth Levy Museóloga da Fundação Eva Klabin Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho Professora do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil - PUC- Rio Introdução A Pintura Retratística, gênero artístico que se firmou na Europa a partir da cultura humanista do Renascimento, expressa um desejo de autoperpetuação do sujeito, através dos conceitos de verossimilhança real (refere à aparência fisionômica do indivíduo), subjetiva (alude ao seu caráter e personalidade) e hierárquica (corresponde à sua inserção na sociedade). Nesse contexto, firmou-se também o retrato oficial que, para além desses conceitos de verossimilhança, propicia ao indivíduo a autocelebração de sua imagem, pondo em evidência seus sinais atributivos de poder e de privilégios sociais, em correspondência com a exaltação do seu caráter público. Este desejo do nome, esta privatização do olhar estendeu-se, sobretudo, aos encomendantes de arte, ou seja, às classes dominantes – a nobreza, o clero e a emergente burguesia. A nosso ver, é nesse contexto que o “renovarse” da retratística a partir do Renascimento até o advento da fotografia deve ser entendido. O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil - Departamento de História - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em convênio com a Fundação Eva Klabin, desenvolveu um projeto no qual foi analisado o precioso acervo da Pintura Retratística da Fundação, uma expressiva coleção de onze obras estrangeiras. Olhar, sentir, investigar e refletir ao vivo estas pinturas foi para nós, historiadores de arte, uma experiência de particular interesse, uma vez que elas abrangem um arco de tempo bem amplo – do Maneirismo (meados do século XVI) ao Romantismo (inícios do XIX) – de um modo geral, considerado pelos 123 estudiosos dentro do período áureo deste gênero de arte, cuja mudança de enfoque dar-se-á com o surgimento da fotografia. O texto resultante da análise de todo acervo representa uma síntese de olhares. Um esforço coletivo de todos os pesquisadores, envolvidos durante um ano nesta apaixonante tarefa e que esperamos, em breve, ver publicado em seu todo. Infelizmente, devido à exiguidade do tempo, nesta comunicação mostraremos os retratos da Coleção Eva Klabin que se inserem na cultura do Maneirismo e do Barroco. A coleção do Século XVI – Maneirismo Em suas pertinentes observações, o historiador e crítico de arte Giulio Carlo Argan mostra que o “germe do Maneirismo” já se fazia presente nos tempos considerados de glória do Renascimento, como pode ser constatado nas obras finais de Rafael e, sobretudo, nas de Leonardo da Vinci e Michelangelo. Na verdade, todas as transformações religiosas, políticas, científicas e artísticas verificadas ao longo do século XVI (como a descoberta da América e do sistema heliocêntrico, a Reforma Protestante, o saque de Roma e a Contrarreforma Católica), foram o resultado do complicado processo de descoberta de um novo homem, sujeito de sua própria existência e intérprete dos mistérios do mundo. Neste contexto a ideia de “soberania e precariedade” caminhavam lado a lado, pois ao exercício de liberdade intensamente saboreado pelo homem, então proclamado “Deus in terris” , atrelava-se necessariamente a questão da conduta humana. Em tempos de crítica a todos os dogmas e a todos os princípios de autoridade, alguns artistas, sobretudo aqueles que se formaram nos ambientes culturais dos grandes centros artísticos europeus – Itália, França, Alemanha, Flandres e Inglaterra – voltaram-se para o conhecimento do sujeito, de suas inquietações e responsabilidades diante da verdade não mais revelada pelas Sagradas Escrituras ou pelo mundo material, mas pela experiência da liberdade. A ânsia suscitada por essa consciência de si consubstanciou-se na interpretação do fazer artístico e de “seu atuar enquanto tal para o fim último da salvação espiritual” . As doutrinas e os programas artísticos nascidos dessa nova sensibilidade foram codificados por uma teoria da arte que, ao tentar estabelecer a legitimidade teórica da criação História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 124 artística, recorreu à metafísica, conferindo-a a validade transcendente de uma “representação espiritual”. A Fundação Eva Klabin possuiu três excelentes representantes do Maneirismo na arte da retratística, procedentes de três importantes centros culturais europeus – França, Inglaterra e Veneza. Da França, destacamos o “Retrato Masculino” [fig.1], pintura a óleo sobre tela, não datada, atribuída a François Clouet (c.1520 -1572), artista que viveu na corte dos Valois, época de guerras civil e religiosa constantes, mas também de intenso intercâmbio cultural. Nesse ambiente fundou-se, na França, a Escola de Fontainebleau, o grande centro maneirista internacional da Europa, frequentado por renomados artistas, sobretudo oriundos da Itália, Flandres, Alemanha. O retrato representa um homem austero, em meio corpo e na pose em três quartos. A pintura, de pequeno porte, recebeu um tratamento miniaturista de influência flamenga: o traço é detalhado e a pincelada, minuciosa. A completa neutralidade do fundo e o vestuário, escuro e pouco detalhado, de certo modo a confundir-se com ele, chamam a atenção do espectador para figura do retratado. A luz incide sobre o seu rosto, ressaltando as feições e, sobretudo, o olhar, distante e meditativo, a anunciar que a personagem está voltada para os seus próprios pensamentos. Assim, a força da representação vai enfocar suas dimensões metafísica e psicológica, recurso largamente utilizado pelos pintores maneiristas. O bigode e a barba seguem a moda criada por Francisco I. Pelo traje severo – boina sem ornatos, capa escura e camisa branca, sem bordado – parece tratar-se de um homem de saber, talvez um religioso, visto que, por mais séria e sombria que tenha sido a indumentária do século XVI, a nobreza sempre procurava destacá-la com algum tipo de adorno. Reforçando a atribuição da obra a Clouet, sabe-se que este era um grande desenhista e pintava seus retratos a partir de um croquis pré-estabelecido. E que foi autor também de iluminuras, utilizadas em medalhões ou para ornamentar encadernações de livros destinados a importantes figuras da corte como Henrique II e sua esposa Caterina de Medici. Esta tinha uma particular predileção em ser retratada pelo artista. Da Inglaterra, citamos o quadro “Retrato de Lady Jane Grey” [fig.2], pintura a óleo sobre madeira, datada de 1553, de autor inglês desconhecido. É considerado um exemplar do que de convencionou chamar de “estilo Tudor”, que no século XVI sofreu grande influência do mestre alemão Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 125 HANS HOLBEIN, o moço (1497-1543) e do flamengo HANS EWORTH (c.1520/1574). Jane Gray (1537-1554) foi protagonista de um dos momentos mais decisivos na história da sucessão do trono inglês. Sobrinha neta de Henrique VIII, ela nasceu na mesma época em que a terceira esposa do rei, Jane Seymour, deu à luz a Eduardo, Príncipe de Gales (1537-1553) e único filho varão do seu tio avô, portanto, o futuro rei da Inglaterra. Jane viveu dos nove aos doze anos sob a guarda de Katherine Parr (1512-1548), sexta e última esposa de Henrique VIII, onde recebeu a mesma educação esmerada dos seus primos, os meio-irmãos Eduardo, Maria (filha mais velha de Henrique, de seu casamento com Catarina de Aragão) e Elizabeth Tudor (filha de Henrique com Ana Bolena). De volta a sua família, no entanto ela foi presença assídua na corte do então rei Eduardo VI e nos palácios de Maria Tudor (1516-1558), a primeira na linha de sucessão ao trono e grande adversária da Reforma. Jane, protestante fervorosa, no entanto, não se furtou a criticar os excessos do catolicismo e, em especial, o hábito de idolatrar imagens de santos. Aos dezesseis anos, Jane casou-se com Guildford Dudley, filho do Duque de Northumberland (1501-1553), tutor de Eduardo e mentor intelectual do golpe que quase afastou da sucessão real as princesas Maria e Elizabeth. Graças às manobras políticas do duque, o rei, já muito doente e temendo que a coroa fosse parar nas mãos dos católicos, alterou o testamento de seu pai nomeando a linhagem dos Grey sua sucessora. Quatro dias após a morte do jovem monarca, Jane, mesmo contra sua vontade, foi proclamada rainha da Inglaterra. Maria Tudor, no entanto, fazendo valer seus legítimos direitos de sucessora, levou apenas nove dias para reverter a situação. Todos os envolvidos foram decapitados, inclusive Lady Jane, que entrou para a história como a rainha dos nove dias. No lado superior esquerda do quadro em questão há a seguinte inscrição: Jane Grey. Ano Dom. 1553. No direito: Aetatis 16. Seria retrato do seu casamento? Trata-se de uma pintura a óleo sobre madeira, representando Lady Jane em meio corpo e em três quartos, numa apreensão, pode-se dizer, psicológica da personagem. O foco concentra-se na figura da jovem dama, iluminando-a totalmente em primeiro plano. O olhar altivo e circunspecto, a testa ampla (obtida pela raiz raspada dos cabelos) e a postura empertigada visam marcar a imagem com sinais de superioridade, característicos de sua estirpe e da época, comum aos retratos da nobreza. Tal postura era também enfatizada na indumentária pelo uso do rufo (gola de pregas História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 126 largas e regulares), que mantinha a cabeça erguida. Usá-lo era um sinal de privilégio aristocrático, visto que impossibilitava qualquer atividade que exigisse esforço físico. Ainda que durante a primeira metade do século XVI, a nobreza costumasse usar trajes de cores vivas, à moda alemã, os de Lady Jane são de cores sóbrias, o que denota um padrão de gosto muito pessoal, pois essa tendência só se verificaria durante o reinado de Maria Tudor, que seguiu o estilo usado pela corte de Felipe II, seu marido e rei da Espanha. No quadro, a linha ainda define o traçado, como no Renascimento, mas já há indícios do claro/escuro, técnica que seria largamente utilizada no Barroco, período artístico e cultural que sucedeu ao Maneirismo: a luz, além de enfatizar sobremaneira o rosto, mostra o detalhamento do rufo, das joias, bordados e peles do corpete, das mangas e das flores, além da pedraria do arco da cabeça. Mas o resto do vestuário fica na penumbra e confunde-se com o fundo. Finalizando as principais obras maneiristas da FEK, citamos, de Veneza – um dos mais importantes centros artísticos da Europa no século XVI – o “Retrato de Nicolaus Padavinus” [fig.3], pintura à óleo sobre tela, datada de 1589, atribuída ao mestre maneirista veneziano JACOBO ROBUSTI (1518-1594), alcunhado de TINTORETTO (por ser filho de um tintureiro), ou a seu filho DOMENICO ROBUSTI (1560-1635). Embora existam poucos dados sobre a biografia de Tintoretto, sabe-se que, por ter demonstrado inclinação para as artes, ingressou no ateliê de TICIANO ainda bem jovem. No entanto, ali permaneceu por pouco tempo, pois aos vinte anos já havia atingido a posição de mestre independente. Ao contrário de Ticiano, constantemente requisitado pelas cortes europeias, Tintoretto viveu e trabalhou exclusivamente em Veneza, a serviço de instituições religiosas, confrarias laicas e dirigentes da República. Ele foi um dos maiores desenhistas venezianos de Quinhentos. O desenho, por sinal, foi o instrumento primário em sua equação estética. Na tela, suas pinceladas afirmam o poder avassalador da linha e da silhueta cursiva, própria do pensamento de um desenhista. Amante das formas em movimento e dos contrastes luminosos, criou cenas cheias de figuras em atitude dramática e luz sobrenatural, como em “O Milagre do Escravo”, datado de 1548. A rapidez de seu traço parece ultrapassar o próprio movimento que está sendo descrito. Além disso, costumava utilizar telas que possuíam tramas variadas, pouco se preocupando que as emendas ficassem visíveis. Era uma invenção original, que causava muito espanto entre seus contemporâneos. Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 127 Ao contrário da maioria dos pintores venezianos da época, que utilizavam uma preparação branca à base de gesso, para dar luminosidade ao colorido, Tintoretto foi o primeiro a usar uma preparação toda escura, influenciando Caravaggio quarenta anos depois. Mas a escolha do meio adotado em seus desenhos, como veículo para a pintura final, no entanto, era bem conservadora – giz preto, ocasionalmente realçado com giz branco ou guache. Apesar de muitos de seus esboços serem elaborados a partir de miniaturas feitas de gesso, diante de modelos vivos, ele seguiu a prática renascentista de só utilizar os masculinos, mesmo para representações femininas. No campo da retratística, seu talento caracterizou-se por expressar o sentimento do personagem em um dado momento de sua existência”. Nicolau Padavinus foi retratado em 1589, segundo a inscrição do quadro, ano em que foi eleito Secretário do Conselho Secreto dos Dez, entidade representada por importantes membros da alta aristocracia veneziana. Está figurado em meio corpo e em três quartos, em pose solene, aristocrática. Seu olhar é penetrante e altivo, mas mantém distância do espectador. A luz incide enfaticamente no rosto do conselheiro, nos seus traços fisionômicos, como que a transmitir sua dimensão psicológica, provocando um distanciamento do espectador. E também nas mãos, que Tintoretto representava sempre alongadas, finas, delicadas e frias, caracterizando a alta extirpe de seus modelos. Jacopo costumava pintar elementos arquitetônicos, principalmente colunas e arcos em suas telas. Nesta obra, parte do fuste de duas colunas de base colossal, colocados lateralmente nos planos subsequentes ao retratado, garantem um fundo perspectivado à figuração, mas inserem o quadro na impossibilidade de se divisar a totalidade do ambiente. Altura, largura e profundidade só podem ser concebidas pela imaginação do espectador, uma caraterística do Maneirismo que se estenderá ao Barroco. O retratado está vestido com a indumentária típica da alta burguesia veneziana da época: porta uma espécie de sobretudo longo, preto, aberto, com grandes cavas forradas de pele. Do gibão, espécie de casaco curto que os homens vestiam por cima da camisa, só é possível ver as mangas. As cores sóbrias das roupas seguem a moda da corte espanhola, que ditava as normas do bem vestir. Carrega na mão luvas de couro, como todo homem elegante. A historiadora de arte Paola Rossi atribui a autoria deste retrato ao filho de Tintoretto, Domenico que, a partir de 1578, foi seu mais estreito História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 128 colaborador. Baseia-se numa certa indagação realista do retratado, recaindo em detalhes de adornos, nas cores mais adensadas e na superfície mais lisa. A ser verdade, podemos pelo menos afirmar que este quadro então contou com a meticulosa verificação do pai, uma vez que mantém as características avançadas de Jacopo, ou seja, as interseções entre luz e sombra, a pincelada rápida e brusca, sem preocupação com o acabamento meticuloso, muitas vezes deixando perceber arrependimentos. A demanda de retratos por parte da elite veneziana era enorme e cerca de um terço de sua obra pictórica, cerca de 150 telas, foi dedicada a este tipo de produção. Já mais para o fim da vida, Tintoretto entregava grande parte do seu trabalho a colaboradores principalmente a Domenico, pois estava muito ocupado com a pintura do quadro “O Paraíso”, considerado o maior do mundo, para o Palácio dos Doges, em Veneza. Nesta obra podemos ainda observar uma emenda na parte inferior da tela que, como ressaltado anteriormente, era uma prática largamente adotada por Tintoretto e, certamente, tanto por seu ateliê quanto por seu filho. As inscrições com o nome do retratado e a data da obra fazem parte da plasticidade do quadro, como era de hábito nos retratos. Século XVII – Barroco A arte que começou a se delinear durante as últimas décadas do século XVI se caracteriza, de um modo geral, pelo desejo de evocar estados emocionais recorrendo de forma dramática aos sentidos. Daí sua linguagem ser comumente associada a atributos tais como grandiosidade, sensualidade, movimento, tensão e turbulência emocional. Por se tratar do agir sobre o ânimo das pessoas, a arte barroca foi por muito tempo simplesmente associada à Contrarreforma católica. Fato que, no entanto, não pode mais ser sustentado, uma vez que a arte de Seiscentos apresenta uma grande gama de fenômenos fortemente diferenciados, aos quais correspondem diversos esquemas de representação da realidade. Ao lado de imagens de santos em êxtase, devemos considerar os banquetes exuberantes, naturezas mortas graves e silenciosas, as paisagens de horizontes longínquos e cenas de interior. Momento de especialização das diversas áreas do saber, em que tanto a arte, quanto a política e a ciência se estabeleceram por meios próprios de entender o mundo, a cultura barroca inaugurou a estrutura da sociedade Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 129 moderna, na qual o comportamento do homem passa a ser determinado pela vida em sociedade. Argan nos lembra que a nova forma de racionalidade barroca tendia “à manifestação e à exteriorização”. Nesse aspecto, a arte desfrutou de uma posição privilegiada, uma vez que passou a traduzir em imagens a multiplicidade dos fenômenos, que deveriam ser estabelecidos e coordenados pelo espírito humano. Num contexto em que até mesmo a fé se tornara objeto de escolha, a arte, reagindo à crise que pôs em xeque o valor absoluto e universal da forma renascentista, extrapolou os limites da ciência, conferindo aos produtos da imaginação e dos sentidos “um valor incontestável de realidade”. O poder persuasivo da imagem barroca se concentrou justamente na carga psicológica que colocava em ação. Até o século XVII, a civilização ocidental não havia conhecido tamanha troca de experiências artísticas entre nações. Foi o século de ouro do Barroco não apenas para Itália (o seu maior centro), Espanha e França, mas também na República dos Países Baixos Setentrionais, genericamente denominada Holanda, da qual a FEK tem duas representações significativas. O realismo generalizado e o alto grau de especialização temática, característicos da pintura holandesa do período - como paisagens do campo, vistas das cidades, marinhas, pinturas arquitetônicas, as naturezas-mortas, pinturas de gênero e retratos não têm paralelo na história da arte da época. Muito mais do que simples imitadores da natureza, seus mestres foram verdadeiros poetas intimistas, sensíveis à beleza pictórica de tudo aquilo que se apresentava ao olhar. A história política, econômica e religiosa dessa pequena República em muito contribuiu para a consolidação da crença de que o caráter tão próprio de sua escola artística fosse produto da moral calvinista. Na verdade, como muito bem observa Seymour Slive, embora se possa admitir, como hipótese, que o gosto pelas coisas simples da vida tenha relação com o espírito puritano, deve-se evitar quaisquer relações de causa e efeito, pois a divisão dos Países Baixos entre holandeses e belgas foi sobretudo o resultado de questões militares e geográficas, não de diferenças linguísticas e religiosas. Apesar da proibição à livre manifestação dos cultos católicos e a consequente ocupação de suas Igrejas pelos reformados, as províncias Unidas não se transformaram em nação protestante da noite para o dia. A tolerância religiosa parece ter sido uma tônica nesse país emergente, vale lembrar a acolhida dada aos judeus. Podemos detectar, desde o final do século XVI, a influência da linguagem maneirista História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 130 internacional, notadamente da Itália, como mostra a obra de Cornelis Van Haarleem “Massacre dos Inocentes”, datada de 1591. Em Amsterdã, maior centro urbano da Holanda, um grupo de artistas liderados por Pieter Lastman (1583-1633) dedicou-se à pintura narrativa, fazendo uso de temas bíblicos e mitológicos. Assim como Lastman, alguns artistas de Utrecht, que também estiveram na Itália, foram responsáveis pela aproximação da pintura holandesa do estilo revolucionário de Caravaggio. A importância alcançada pelo que se tornou a “Escola de Utrecht” pode ser medida pela popularização do uso do claro-escuro (iluminado por uma fonte artificial frequentemente oculta) e dos temas picantes e alegres usados por aquele mestre, que passaram a ser uma constante na arte seiscentista holandesa – como registra a “Ceia festiva” de van Honthorst, de c. 1619. Assim, a influência estrangeira foi se integrando ao gosto regional, como o interesse pelo realismo e pela representação de cenas do cotidiano – chamadas pinturas de gênero. Contudo, é preciso ressaltar que, nesse tipo de pintura, muitas das vezes era veiculado um propósito moral, ilustrativo e alegórico, caracterizado no Renascimento e que em Caravaggio, no entanto, deixara de existir. Com efeito, muitas pinturas holandesas do período, ao mostrar o exagero, tinham um propósito didático e moralizante, como a obra “Alegres Companheiros”, de Willwm Buytewch, de c.1617 inspirada na parábola do “Filho Pródigo”. Um dos maiores responsáveis pela celebridade da pintura holandesa foi Frans Hals (c.1582-1666). Aos vinte cinco anos de idade foi admitido como mestre-pintor na guilda de São-Lucas em Haarlem. Especialista em retratos e extremamente ousado, ele substituiu a convencional formalidade que os caracterizava pela espontaneidade comum às pinturas de gênero como, por exemplo, o retrato coletivo, no qual ele acentuou o extravasamento emocional do retratado, deixando perceber a representação fugaz dos movimentos de seus modelos. Esta questão atingiu o seu ápice na obra de REMBRANDT (1606-1669). Nascido na cidade de Leiden, o artista ali se estabeleceu como mestre independente em 1624, após um curto período de estudos com Pieter Lastman, em Amsterdã. Até o início da década seguinte não havia executado nenhum retrato de encomenda, pois sua meta era se destacar na pintura narrativa do mesmo modo que seu professor. No final de 1631 resolveu se mudar para Amsterdã, já firmado como grande água-fortista e um dos artistas mais respeitados pelo seleto grupo de humanistas holandeses. Nessa cidade, Rembrandt viveu seus anos Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 131 de glória. Casou-se em 1634, comprou a cidadania local, ingressou na Guilda de São Lucas, tornou-se colecionador e marchand. Ali entrou em contato com a monumentalidade e a intensidade dramática barroca, graças às gravuras feitas com base nas obras de RUBENS, considerado, na época, o maior pintor dos Países Baixos. Tal influência se torna evidente, sobretudo, em seus quadros bíblicos e mitológicos, como, por exemplo, a sua “Descida da cruz”, de 1633 e a “Descida da cruz”, de Rubens. A famosa “Lição de Anatomia do Dr. Tulp”, de 1632, está dentre as suas primeiras produções como retratista profissional. Nela, o olhar do espectador, partindo do cadáver, foco da composição, é conduzido às figuras que, em concentração dramática, observam, de forma diferenciada, a dissecação de um antebraço e a assombrosa relação existente entre os tendões e o movimento da mão e dos dedos. Desde o período de Leiden, em Rembrandt o hábito de se retratar era uma constante. Se os autos-retratos do início da carreira exibem autoconfiança, os da fase seguinte demonstram seu interesse por poses e gestos próprios de um cavalheiro. Com a maturidade, no entanto, Rembrandt começou a voltar-se para a esfera do espírito humano. No “Retrato de Jan Six”, feito em 1654, e em seu Autorretrato, datado de 1667/8, observa-se que a representação da vida profissional ou da posição social de seus modelos ou sua passou a assumir um caráter inteiramente secundário diante do que lhes ia na alma. Em Amsterdã, seu prestígio como mestre e artista chegou ao ápice. Dentre os discípulos dessa fase se encontra GOVAERT FLINCK (1615-1660), autor de um dos retratos pertencentes à Fundação Eva Klabin. Govaert Flinck, nascido em Cléves, região da baixa Renânia, iniciou seu aprendizado artístico junto ao pintor, marchand e pregador Lambert Jaccobz que, além de ter estado na Itália, conhecia muito bem a obra de Lastman e dos caravaggescos de Utrecht. Após três anos de estudo, Flinck mudou-se para Amsterdã em 1633, ingressando no ateliê de Rembrandt, onde permaneceu por um ano. Alguns de seus quadros foram vendidos como autênticos Rembrandt. Obras suas mais antigas, como o “Retrato de homem”, de 1637, chegaram a receber a assinatura falsificada de seu mestre. Assim como Rembrandt, sua grande meta era ser pintor narrativo. Seu afastamento do estilo do mestre, a partir da década de quarenta, coincidiu com uma fase de grande popularidade pessoal e riqueza, tornando-se o favorito dos círculos dirigentes de Amsterdã. Em 1656, Flinck executou História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 132 uma enorme pintura narrativa e moralizante para a sala dos burgomestres na nova prefeitura de Amsterdã, intitulada “Marco Cúrio Dentato recusa os presentes dos embaixadores samnitas”. O resultado do trabalho deve ter influenciado a encomenda seguinte, a maior prova de seu prestígio: a decoração das lunetas dos grandes corredores do prédio. Num claro paralelo com acontecimentos da história nacional, doze imensas telas deveriam ilustrar a história da luta entre os batavos e os romanos, assim como dos personagens bíblicos Sansão e Davi. No entanto, seu falecimento prematuro, em 1660, fez com que a encomenda fosse, então, distribuída entre outros artistas, dentre os quais o próprio Rembrandt. A colossal tela “Conspiração de Cláudio Civilus”, de 1661/62, feita por este, no entanto, parece não ter agradado, pois foi logo removida, dando lugar a uma pintura executada por JURGEN OVENS, que se limitou a terminar a composição que Flinck deixara inacabada. O “Retrato de Magistrado”, pintado e assinado por Flinck em 1654 [fig.4], que faz parte do acervo da FEK, apresenta o personagem sentado em posição de três quartos, cujo olhar fita o espectador. O peso visual de toda composição, feita de maneira a caracterizar o ambiente com o qual o retratado mais se identificava, repousa na densidade corpórea do modelo em primeiro plano. Ao retratá-lo num interior fracamente iluminado, rodeado por papéis e por livros, os quais aparecem dispostos em estantes, ao fundo, e espalhados sobre uma mesa em torno de um castiçal com a vela apagada, Flinck parece fazer referência à iconografia tradicionalmente ligada a um grupo de artistas de Leiden, que se especializou em naturezasmortas vanitas. Nessas obras, a representação de pilhas de livros bastante manuseados, objetos exóticos, instrumentos musicais, velas apagadas e crânios, era prontamente “lida” como símbolos da vaidade humana e da precariedade da vida. No “Retrato de Magistrado” o pintor parece ter abandonado, pelo menos em parte, a técnica esmerada, privilegiando os valores tonais e de cor no lugar da forma. A aparente falta de acabamento, especialmente nos livros, ao fundo, e nos objetos em segundo plano, é uma prova de que a técnica do inacabado havia se tornado parte do repertório de processos pictóricos compartilhados entre artistas. Por outro lado, dentre os elementos utilizados no quadro por Flinck para criar a ilusão espacial está a tradicional modulação entre luz e sombra, onde as formas iluminadas tendem a avançar em direção do observador, enquanto os tons escuros tendem a recuar. Aqui, Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 133 a luminosidade da gola branca reflete-se no queixo, em parte da barbicha e na bochecha do retratado. Na área dos olhos, as pálpebras iluminadas desempenham a mesma tarefa, jogando luz na parte escura da cavidade ocular. Especial atenção foi dada ao modo de passar as sensações dos objetos e dos diversos materiais. Os veludos, por exemplo, foram iluminados nos seus contornos, as peças de estanho, mais azuladas do que as de prata. O fato de nossa atenção voltar-se para a expressão e o gesto incisivo do retratado, assim como para a cadeira estofada de veludo, o castiçal com a vela apagada, e alguns papéis, mostra como o artista era capaz de lidar, de modo eficaz, com todo aquele procedimento técnico. Muito embora o retratado apresente um orgulho justificado de sua intelectualidade, ele não segue a elegância aristocrática da época, visível, por exemplo, nos modelos pintados por Van Dyck que encantaram uma parte considerável do público holandês a partir da década de quarenta. O magistrado veste uma espécie de jaqueta folgada e de mangas largas, que se estreitam no punho. Usada pela maioria dos holandeses, essas jaquetas não apresentam qualquer tipo de adorno. A gola simples da camisa, branca e engomada, está presa ao pescoço por um cordão terminado em borlas. Os punhos, confeccionados com o mesmo tecido da gola, estão dobrados sobre as mangas da jaqueta. O retratado porta um pequeno barrete, mas observa-se dentre os livros uma forma cônica semelhante a um chapéu. No canto superior esquerdo da tela aparece um brasão figurando um cão preto correndo em campo amarelo, identificado como sendo da família Cloeck. O personagem em questão poderia ser o jurisconsulto Pieter Cloeck (Amsterdã, 1585-1667), titular de um dos maiores escritórios de advocacia em Amsterdã em meados do Seiscentos. Entre 1649 e 1667 foi “raad” (conselheiro) da municipalidade de Amsterdã e em 1654 foi efetivamente retratado por Flinck. Assim como as pinturas de paisagens, as pinturas de gênero holandesas seiscentistas converteram-se em admiração a partir da segunda metade do século XIX, a ponto de, ao lado de Rembrandt, outros nomes, como van Ruisdael (c. 1628-1682), Pieter Hooch (1629-?), Johanes Veermer (1632-1675) e Gerard ter Borch (1617-1681) serem reconhecidos como os maiores de seu tempo. Vinculados ao que se convencionou chamar de “Escola de Delft”, Hooch e Veermer eternizaram o gosto holandês por cenas de interior, refletindo o modo de vida da República recém fundada. Gerard ter Borch também costuma ser relacionado à “Escola de Delft”, por ter se especializado nos mesmos temas e adotado artifícios compositivos História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 134 semelhantes. Ele é autor de um dos retratos pertencentes ao acervo da FEK. Nascido em Zwolle, norte da Holanda, teve em seu pai, Gerard ter Borch, o velho (1582-1662), seu primeiro mestre. Em 1634, o jovem Ter Borch tornou-se discípulo do paisagista Pieter de Moulyn (1595-1661), em Haarlem. No ano seguinte, ingressou na Guilda de São Lucas local, iniciando-se como pintor de cenas de caserna. Na mesma época esteve em Londres, onde trabalhou com seu tio, Robert van Voerst, gravador que fez estampas para a iconografia de Van Dyck. Embora estivesse familiarizado com os retratos aristocráticos ingleses, Ter Borch nunca adotou a altivez popularizada por Van Dyck. Em 1640, deu início a uma série de viagens pela Itália, Espanha, França e sul dos Países Baixos. Cinco anos depois, juntou-se ao círculo de Adriaen Pauw, representante holandês nas negociações que levaram à assinatura do tratado de paz com a Espanha, na cidade de Münster, Westphalia. Este acontecimento tornou-se tema de seu mais célebre quadro “O juramento da ratificação do Tratado de Münster” datado de 1648. O tema deste retrato coletivo, no qual estão representados todos os participantes do evento, incluindo Ter Borch, é bastante raro na pintura holandesa, por se tratar de um evento contemporâneo sem qualquer paralelo com acontecimentos passados ou bíblicos. Nessa mesma época, pintou inúmeros pequenos retratos, de crianças e de homens, gênero que daria continuidade após se estabelecer em Deventer, no ano de 1654. Apesar de suas inúmeras viagens e possíveis aprendizados, sua arte nunca se afastou da tradição realística holandesa, em especial o tratamento cuidadoso dispensado à iluminação e às texturas dos tecidos. No “Retrato de Homem”, atribuído a Ter Borch [fig.5], que faz parte do acervo da FEK, a primeira coisa que nos chama atenção, além de seu tamanho reduzido, é a ausência dos ambientes interiores comuns às pinturas de gênero, sua especialidade. Com exceção do extraordinário tratamento dado às texturas, as relações de composições mais amplas estão sacrificadas em detrimento de um interesse maior, a sutileza psicológica das relações pessoais. No “Retrato de homem”, da FEK, e outros executados por Ter Borch, podemos observar a questão do fundo indefinido, constituído por uma linha diagonal, outra horizontal e uma vertical formada pelo corpo do retratado. A evocação espacial, que nos remete à caixa cúbica projetiva, característica da pintura holandesa, se resolve dessa forma e também pela modelação tradicional entre luz e sombra. Embora não haja qualquer referência à origem da fonte luminosa, a luz dirigida provoca contrastes e Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 135 sombras acentuados, cujos limites com as áreas iluminadas criam contornos definidos, fazendo com que a figura sobressaia em primeiro plano. Segurando displicentemente um par de luvas na mão direita, o retratado traja um grande chapéu preto e roupas confeccionadas com um tecido da mesma cor, possivelmente o broadcloth, produzido apenas na Inglaterra e na Holanda. Os sinais de elegância podem ser vistos na gola de renda branca, privilégio dos mais ricos, criada para substituir o rufo usado no século anterior. Da mesma forma, os sapatos estão de acordo com a moda da época, ponta quadrada, salto alto e fivela, substituindo as botas, que não combinavam com a modelagem francesa dos novos calções. Estes logo se adaptaram ao gosto holandês por roupas folgadas e bufantes. Muitas vezes, os forros eram mais compridos, sendo necessário o uso de fitas para amarrá-los aos joelhos ou logo abaixo, como o observado no modelo. Na Holanda era praxe o uso da capa mais larga do que no resto da Europa. A do modelo segue tal preceito, embora seu comprimento obedeça aos padrões de elegância da época, indo até à metade da coxa. O quadro da Fundação Eva Klabin é possivelmente uma réplica de ateliê do retrato de Jan Roever (1610-1661), burgomestre da cidade de Deventer, existente na Kunsthalle de Hamburgo. Este tipo de retrato de pequeno formato, representando a figura inteira de pé, foi desenvolvido por Ter Borch sobretudo no começo da sua atividade em Deventer, por volta de 1660. Hofstede de Groot e Gudlausson informam que uma réplica autógrafa existia no mercado antiquário em Viena na década de trinta do século XX e é possível supor que seja a tela adquirida por Eva Klabin. Outra réplica, de meia figura, encontra-se em Osnabruck. Sabe-se que o artista holandês costumava confiar aos seus colaboradores a preparação de cópias inteiras ou parciais dos seus retratos às quais, depois o mestre pintava o rosto. Entretanto, o estado de conservação da tela não permite afirmar com certeza se o quadro da Fundação Eva Klabin foi executado no ateliê do pintor, ou se a sua realização é posterior. Podemos dizer que, na Coleção da Pintura Retratística da FEK, o Maneirismo e o Barroco estão legitimamente representados por obras dos mais importantes centros culturais da Europa nos séculos XVI e XVII – a França dos Valois, a Inglaterra dos Tudors, a República Sereníssima dos Doges e a nascente República dos Países Baixos Setentrionais. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 136 Figura 1 François Clouet (1522-1572) – atribuição Retrato de Homem França, 1560-1570 Óleo sobre madeira, 25,0 x 19,0 cm . Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 137 Figura 2 Retrato de Lady Jane Grey Autoria desconhecida Inglaterra, 1553 Óleo sobre madeira, 24,0 x 25,0 cm . História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 138 Figura 3 Jacopo Robusti, dito Il Tintoretto (1518-1594) Retrato de Nicolaus Padavinus Veneza, Itália, 1589 Óleo sobre tela, 116,0 x 88,5 cm. Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 139 Figura 4 Govaert Flinck (1615-1660) Retrato de Homem Holanda, 1654 Óleo sobre tela colada em madeira, 134,0 x 110,0 cm História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 140 Figura 5 Gerard ter Borch (1617-1681) Retrato de Jan Roever, burgomestre de Deventer Países Baixos, 1641-1648 Óleo sobre tela, 62,0 x 48,0 cm Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho 141 coleções e museus Augusto D’Halmar y la colección de arte chileno del Museo de Bellas Artes de Valparaíso Amalia Cross Gantes Investigadora / Profesora. Instituto de Arte – Pontificia Universidad Católica de Valparaíso I. El museo La primera noticia que conocemos sobre el proyecto de crear un Museo de Bellas Artes en Valparaíso, data del mes de abril de 1941. En una carta dirigida al Presidente de la República, Pedro Aguirre Cerda, el alcalde de Valparaíso, Abelardo Contreras, y el entonces director del departamento de cultura del municipio, Augusto D’Halmar, exponen sus intensiones de formar un museo municipal y de la importancia de éste para la región. Los autores de este documento escribieron: Ha inspirado Valparaíso reiteradamente a los más grandes artistas forasteros, como Sommerscales o chilenos como Juan Francisco González y obtuvo en un tiempo y tuvo próspero y reputado Teatro Municipal que administró otro maestro nuestro de renombre y mérito: Alfredo Valenzuela Puelma, quien echó entonces las bases de un Museo y de una Academia de Bellas Artes. El terremoto de 1906 vino a interrumpir estas actividades y de hecho las destruyó, hasta ahora en que un Presidente de Chile, propulsor de todos los progresos y una Municipalidad porteña descosa de secundaria y de no sólo servir sino enaltecer su comuna, deben volver a rehabilitarlas. Para lo cual Valparaíso, por intermedio de su Alcalde, Abelardo Contreras, y de su conciudadano el escritor Augusto D’Halmar, al cual otorgó la categoría de Hijo ilustre suyo, se dirigen al señor Pedro Aguirre Cerda, pidiéndole: la creación y construcción de un local ad-hoc, (...para) Un Museo de Bellas Artes, una sala de exposiciones y los indispensables talleres y aulas de estudio para sus fines. Todo esto dentro de las mesuradas proporciones y de la modestia del decoro que deben acompañar las edificaciones de verdadera “edificación cultural”, a la vez idealistas y prácticas. 143 La creación del Museo fue aprobada, en sesión extraordinaria, por el concejo municipal el 21 de agosto de 1941, y se inauguró oficialmente el 27 de junio del año siguiente, en un edificio de la calle Condell. En esa ocasión, su primer director y administrador, Augusto D’Halmar, leyó un discurso inaugural entorno a la palabra emoción. Como quedó consignado en la prensa, el escritor “agregó que el no creía haber empleado jamás esa palabra, empero podía confesar que esta vez se sentía realmente emocionado al ver convertida en realidad una obra que constituía su más grande ambición.” Augusto D’Halmar (Valparaíso, 1882 - Santiago, 1950) es recordado como un importante escritor modernista y una figura crucial para el desarrollo de los primeros movimientos artístico-literarios, de principios del siglo XX en Chile. Pero pocos recuerdan su labor en la creación y formación del MMBAV. En parte porque el mismo Museo, hasta hace poco, había estado en el olvido. Evidenciando el escaso conocimiento sobre las iniciativas culturales llevadas a cabo por D’Halmar en sus últimos años de vida, en particular aquella que constituyó su obra de mayor ambición, el museo. Desde 1941 D’Halmar se encargó de conformar la colección del Museo, ubicarlo en la ciudad y dotarlo de interés público y social. En sus primeros años como director, se concentró en descolgar y reunir las obras que eran propiedad del Municipio y que se encontraban repartidas por sus dependencias, en promover la donación de obras por parte de particulares y artistas, y en gestionar la incorporación de 130 pinturas que el Museo Nacional de Bellas Artes de Santiago le cedió en calidad de préstamo, las que permanecieron en el Museo hasta 1944, cuando un incendio amenazó la seguridad de las obras y provocó el retiro del préstamo, marcando el inicio de la crisis institucional. A demás organizó exposiciones temporales y conferencias de artistas nacionales e internacionales, entre ellos, el español Antonio Viladons, el mexicano David Alfaro Siqueiros y el chileno Carlos Hermosilla. Sin embargo, su gestión se vio interrumpida por desavenencias políticas con las autoridades regionales de la época, quienes criticaron su labor al mismo tiempo que el Director criticó el progresivo abandono y la falta de apoyo hacía el Museo. Por medio de una carta fechada el 27 de febrero de 1945, D’Halmar presentó su renuncia al nuevo Alcalde de Valparaíso, en los siguientes términos: “Con esta fecha declino ante Us. con pena y alivio, mi cargo en el Museo Municipal de Bellas Artes, creado por mi y conmigo História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 144 en Agosto de 1941, durante la Administración Contreras, para ausentarme definitivamente de aquí”. Y agrega sobre su labor realizada: “Los hombres pasan, con sus malas o buenas pasiones; sus obras quedan, las buenas como las malas y sólo el tiempo las aquilata”. El Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaíso, es uno de los primeros y de los pocos museos de este tipo que se construye fuera de Santiago. Y no es casualidad que sea en Valparaíso, ya que en esta ciudad a finales del siglo XIX, y en paralelo a los primeros proyectos de museos que se concebían desde la capital del país, el artista Alfredo Valenzuela Puelma creó el Museo de Pintura de Valparaíso, compuesto por una colección de obras que se exhibían al interior del Teatro Victoria, que funcionó desde 1893 hasta 1906, cuando el edificio fue destruido por el terremoto que arruinó gran parte de la ciudad. En Santiago desde 1880 se había comenzado a conformar el Museo Nacional de Bellas Artes, que en 1885 se instaló en el edificio Partenón de la Quinta Normal gracias a la gestión de la Unión Artística encabezada por el pintor Pedro Lira. Pedro Lira y Valenzuela Puelma representaron una oposición dentro de la escena artística de la época, y la rivalidad entre ellos provocó que Valenzuela Puelma dejará la capital para formar el Museo de Pinturas en Valparaíso y con ello una escena artística alternativa desde la región. En este sentido, la iniciativa de Valenzuela Puelma es excéntrica, se sale del centro, de la capital del país que es el núcleo principal de desarrollo artístico, y se perfila como un insólito antecedente al proponer el primer museo de arte en región, que fue la base para re-fundar el Museo de Valparaíso en 1941. Las obras que lograron sobrevivir del Museo de Pintura, y que eran propiedad del Municipio, pasaron a formar parte de la colección del MMBAV. Entre ellas figuran dos obras del propio Valenzuela Puelma, un paisaje de Valparaíso de Juan Mauricio Rugendas, un retrato de Juan Francisco González y un autorretrato de Manuel Thomson. A esta primera parte se sumaron las obras provenientes de la donación de Pascual Baburizza, un importante empresario de origen croata, que coleccionaba pintura europea, principalmente, del siglo XIX. De hecho, la constitución legal del museo fue detonada por las condiciones testamentarias que el Señor Baburizza determinó para su legado y repartición de sus bienes. Un pie forzado que apresuró la consolidación del proyecto, ya que habían otras ciudades interesadas en adjudicarse su colección. A esto se sumó un conjunto de obras Amalia Cross Gantes 145 donadas por ciudadanos y artistas a modo de colaboración con el proyecto, específicamente, con su director. Y a partir de estos fondos D’Halmar logró configurar la colección fundacional del Museo. De la totalidad de obras que componen actualmente la colección (390), la mayoría corresponden a pinturas. Entre ellas existe un porcentaje importante realizadas por artistas chilenos o extranjeros cuyo tema es Chile, particularmente, paisajes y escenas de Valparaíso que se enmarcan en un periodo temporal que va desde mediados del siglo XIX a mediados del XX. Y resalta como un rasgo particular de la colección del Museo la presencia de una gran cantidad de obras que representan a cabalidad un período específico en la historia de la pintura chilena, precisamente, el periodo donde se inscribe Augusto D’Halmar como critico de arte. II. La crítica de arte Augusto D’Halmar fue el seudónimo que en 1902 adoptó Augusto Thomson a la edad de 20 años. Creció en Valparaíso, y en 1898 se fue a vivir a Santiago. En la capital se desenvolvió como escritor y promotor de la escena artística que conformó la generación del 900. En su casa, ubicada en el barrio Yungay, llevó a cabo tertulias y discusiones sobre arte, que fueron el núcleo para la formación de la Colonia Tolstoiana y del grupo Los Diez, los primeros movimientos artísticos de avanzada en nuestra historia del arte (Fig.1). Se reunían en la casa de D’Halmar, intelectuales, artistas y escritores, donde: Desde las amplias paredes de la sala, cubierta de cuadros, grabados y curiosidades artísticas, miraban con sus ojos inmóviles, los rostros venerables de artistas contemporáneos (…). Thomson poseía el arte de convertir su sala de trabajo en una especie de museo rancio y lleno de colorido. Audaces armonizaciones de Juan Francisco González, una gallarda cabecita del pintor Molina, saudosos paisajes de Valenzuela Llanos, bosquejos de Valenzuela Puelma, alguna miniatura escultórica de Simón González, formaban un conjunto que caía sobre los circunstantes como un baño de colores que estimulaba y tonificaba los nervios. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 146 En esta imagen, que construye el escritor Fernando Santiván, se describe la pequeña colección de D’Halmar con obras de artistas que podremos encontrar, cuarenta años después, en las salas del Museo. Y es que D’Halmar desde muy temprano sintió una atracción por coleccionar arte y establecer relaciones con los artistas de su tiempo. Como lo recuerda el propio escritor en sus memorias, escritas en tercera persona y protagonizadas por su otro heterónimo Cristian Delande: Mucho más que entre los de su oficio, o sea, los llamados “hombres de letras” – bellas letras y letras bellacas: literatura y periodismo – cúpole a Delande convivir con pintores y escultores. (…) Así hemos de pensar más bien en cierta inclinación natural de nuestro protagonista hacia la Hermandad del Caballete, bien poco hermanable por cierto, la Orden del desorden, quisquillosa, pendenciera y mal avenida de los Caballeros del pincel y del cincel, artesanos y artistas, que todo viene a ser uno en esta artesanía del arte. Entre ellos el autor nombra a Juan Francisco González, su gran amigo y maestro, y a “cuanto coetáneo y conterráneo suyo pintarrajea tela o borronea papel”. Desde Helsby a Benito Rebolledo, pasando por Onofre Jarpa, Pedro Lira, Álvaro Casanova, Valenzuela Llanos, Valenzuela Puelma, Ernesto Molina, Rafael Correa, Enrique Lynch, Pedro Reska, Agustín Araya, Alfredo Melossi, Fosa Calderón y Arturo Gordon, los franceses Laroche y Richon Brunet, el madrileño Santiago Pulgar, y los escultores: Nicanor Plaza, José Miguel Blanco y Virginio Arias, primero, y luego Simón González, Ernesto Concha y Canut de Bon. Varios de estos artistas están representados en la colección del Museo, y constituye un inventario de los artistas que componen la escena de un periodo inicial de la historia del arte chileno, en el cambio de siglo. Y todos ellos fueron: …amigos inmejorables del joven escritor, dispensándole su confianza y tratando cada uno de catequizarlo. Conciliar sus diversas y contrapuestas tendencias no hubiera sido lable; sin embargo, lo fue el que unánimemente le dieran beligerancia a sus críticas de arte, sin creerlo intruso ni filisteo y considerándolo, en cierto modo, los unos como un peón suyo y como un campeón los otro. Amalia Cross Gantes 147 El interés por el arte de su época, junto a su oficio de escritor, provocó en D’Halmar la urgencia de dedicarse a la escritura sobre arte. Y lo hizo con un tono renovado que dejó a un lado el comentario relativo, para ser pionero en el género de la crítica de arte moderna. En su escritura encontramos –progresivamente- un lenguaje analítico ante las obras, un estudio sobre los artistas y una consideración del contexto histórico donde se inscriben, al mismo tiempo que se deja entrever una reflexión sobre la función de la crítica y el rol que tiene el crítico de arte en la escena. Esto marcó el paso desde la literatura hacía la escritura sobre arte e inauguró un género (y una figura) que continuaron -con igual importancia para la historia del arteJuan Emar en los años veinte y, desde mediados de la década del cincuenta, el poeta Enrique Lihn. D’Halmar comenzó a escribir en 1900 en la revista Instantáneas de Luz y sombra. Y retomó sus críticas sobre arte a finales de la década del treinta, como antesala a la creación del museo. Sus textos son fuentes fundamentales para la investigación en historia del arte chileno, materiales de trabajo elementales para el estudio de obras. Textos en los que sus impresiones y análisis dan cuenta de la recepción del arte en un determinado contexto, a través de los cuales podemos documentar la producción de los artistas y reconstruir una parte de nuestra historia, en los albores de la modernidad artística. III. Investigación y escritura de historia La investigación se articula desde la figura de Augusto D’Halmar, como hilo conductor y motor de búsqueda, en dos líneas de trabajo que se cruzan inevitablemente. La primera consiste en documentar la formación de la colección histórica del museo bajo la dirección de D’Halmar. Y la segunda propone aproximarse a las obras a través de su pensamiento estético plasmado en sus textos críticos sobre arte. La primera línea tiene un sentido práctico que contribuye a la organización del museo, pero también un sentido histórico que nos informa no sólo de la obra, su autor y la fecha de ingreso a la colección, si no de quienes y con qué objetivo la hicieron llegar a éste. Como es el caso de la primera obra, La boca del maule (1921) del pintor francés radicado en Chile, Ricardo Richon Brunet (Fig.2). La obra fue donada al Museo en 1942 por sus ex discípulos y admiradores; Carlos y Roberto Humeres Solar, el historiador História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 148 del arte Eugenio Pereira Salas, los pintores Ana Cortés Jullian y Camilo Mori, todos ellos figuras claves de la escena artística del momento. Y como señala D’Halmar, en una carta de agradecimiento, esta donación adquiere un doble significado como primero y valioso aporte al museo en formación: …por la alta calidad de los donantes y porque en su nota de ofrecimiento se sirven expresar que me la dirigen como testimonio de afecto al artista y al amigo”. “Estoy seguro que tan noble ejemplo servirá de incentivo a otras generosas ofrendas y que, gracias a ellas, este nuevo museo en Chile, en este puerto tan querido de todos los chilenos, podrá ser un sitio más de esparcimiento para los espíritus selectos y, para el pueblo, otra escuela de cultura. La segunda línea se centra en estudiar las obras por medio de la recopilación de textos escritos por D’Halmar, donde se encuentran referencias a las pinturas o a los artistas de la colección. Hasta el momento aquellos casos a los que D’Halmar dedicó artículos en su sección “Los 21. Estudios sobre artistas” de la revista Instantáneas de luz y sombra, entre 1900 y 1901. La mayoría de ellos eran artistas que marcaron tendencia, y sobre los cuales D’Halmar defendió sus propuestas artísticas, muchas veces a contra pelo del gusto de la época. Casos paradigmáticos, tanto por el enfoque que propone el crítico como por la importancia de estos artistas al interior de la colección del Museo, son Alfredo Valenzuela Puelma y Juan Francisco González, entre otros artistas que conformaron la generación del 900 y que – para el historiador del arte Antonio Romera- son precisamente, maestros de la pintura chilena. En el tercer estudio sobre artistas, D’Halmar aborda la obra de Alfredo Valenzuela Puelma, para él un hombre excéntrico y mortificado pero “el más pintor de todos los artistas chilenos” (Fig.3). En el texto se refiere a sus obras presentadas en el último Salón. Estas eran composiciones de temas bíblicos y alegorías osadas con personajes desnudos, las que fueron destrozadas por la critica, para D’Halmar por “la critica necia, fatua y parcial, esa que sin comprender nada lo despedaza todo”. Y para demostrar su indiscutible talento como pintor, D’Halmar describe sus logros en otro género de pinturas menos polémico. En sus palabras: Valenzuela Puelma ha hecho retratos admirables de vida y carácter; ¿acaso no existe en el Museo (MNBA) uno del pintor Mochi? ¿no conocéis los de Enrique del Campo y de Somaraga? Nadie como Amalia Cross Gantes 149 él ha sabido estampar en la tela el parecido perfecto unido al movimiento más animado; él, como un dios, infunde el soplo de vida a los inanimados personajes que surgen del pincel, les comunica calor y la viveza que arde en su imaginación, y de modelos muertos, sólo preocupados de pozzar y de parecer bien, hace artísticos retratos, interesantes cabezas que hablan en la expresión y piensan en los ojos; poderosos retratos muy humanos y muy espirituales, como si latiese en ellos la existencia y palpitase vigorosamente la razón. El Retrato de Enrique del Campo (Fig.4) fue realizado por Valenzuela Puelma en 1894, y forma parte de la colección que se desprende del Museo de Pintura de Valparaíso que el mismo artista creo un año antes de pintar esta obra. En el cuadro aparece de medio cuerpo un hombre vestido con traje y corbatín, sentado sobre una silla, apoyando sobre la mano izquierda su cabeza inclinada. La pose melancólica del retratado – similar a la de D’Halmar en la fotografía (Fig.1)- es acompañada hacía el fondo por tres obras, probablemente bocetos y pinturas adosadas a la pared del taller del pintor, que es un fondo recurrente en sus retratos. Así como los retratos en la pintura de Valenzuela Puelma, la escritura de D’Halmar sobre artistas son estudios, retratos hablados o semblanzas, que intentan dar con la identidad del pintor y su obra, por medio de la descripción de su personalidad, sus pensamientos y obsesiones, la elección de temas y la preferencia de géneros, como también nos informa de su manera de trabajo, de su taller y de los procedimientos artísticos que en el tienen lugar. En sus críticas, específicamente en las primeras que refieren al pintor Juan Francisco González, ocurre en su escritura una vinculación formal, no sólo temática, con la pintura a modo de écfrasis. La imagen que describe sería el equivalente en palabras de una pintura. Lo que se debe al hecho que González contribuyó activamente en su formación de escritor, ocupando la figura de maestro. D›Halmar solía acompañar a González a «paisajear» (pintar al aire libre) y sus paisajes fueron - precisamente- las obras preferidas del escritor. Sabemos, a través de una carta, que al instalarse en Valparaíso a finales de la década de 1930, D›Halmar tenía en su casa una colección de ocho pinturas de este pintor. Y no sería erróneo pensar que algunas hayan pasado a formar parte del museo, como ejemplo de donación de su propio director, considerando que González es el artista más representado. En el Museo existen História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 150 catorce telas del pintor, y de ellas ocho son paisajes, de sus viajes a Europa, América y de sus recorridos por la zona central de Chile. Para D›Halmar una de las mayores pasiones de González, eran “...las torres antiguas, los pequeños campanarios derruidos, las rejas coloniales, toda esa hermosura austera y artística de otras edades más sinceras y más grandes”. Y señala: “Le he visto preciosos apuntes de Lima y de Granada y de Sevilla y de Valencia”, los que se corresponden con algunas de las obras del Museo, entre ellas, Otoño y casas viejas, Puente sobre el Rimac y San Francisco el grande (Fig. 5). D’Halmar supo ver que González sería una figura clave en la historia de la pintura chilena. Frente a la enseñanza del arte académico de la época, de composiciones rígidas y temas clásicos, González desarrolló una pintura de paisajes campestres y ciudades, donde el color es fuerte, pastoso y la pincelada espontánea. Estableciendo los principios que articularon la renovación de la pintura chilena. Pero advierte también que: Largo tiempo transcurrirá antes que la pintura de Juan Francisco González sea comprendida y sea estimada entre nosotros. Las innovaciones padecen una difícil gestación en sociedades retrogradas y rutinarias. Aún no apreciamos a Tolstoy y a Zola o a Baudelaire y a Verlaine; además, González, habiendo iluminado la pintura nacional, habiendo sembrado la simiente buena, no es tal vez el llamado a cosechar el laurel del triunfo: los descubridores y los iniciadores jamás gozan de sus afanes, ello es para que los que vengan más tarde, para los que encuentren el rumbo ya trazado. Acaso al atrevido impresionista le quepa el triste y heroico papel de Claudio Lantier. Con estas ideas e impresiones se desprende de los escritos de D’Halmar una lectura crítica y asertiva sobre la obra de los artistas. Sus pensamientos y juicios sobre arte nos permiten aproximarnos a las obras y trazar un relato que yace en la colección del Museo mediante la escritura del propio D’Halmar. A través de sus textos podemos comprender con mayor profundidad las directrices que definen la colección y, al mismo tiempo, estudiar el contexto de producción y recepción de las obras que la componen. En sus textos hay referencias a obras que -de una forma u otra- terminaron colgadas en las paredes del MMBAV, haciendo real la existencia de un museo que antes fue imaginado en su escritura. Tal vez en esto último radique lo ambicioso de su proyecto; la creación de un museo como su obra máxima de escritor. Ya que D’Halmar construye, a partir de un contrapunto Amalia Cross Gantes 151 entre arte y literatura, un relato que sería el guión de la colección. El que todavía debemos transcribir para la historia del arte chileno. Por último, es posible reflexionar sobre la historia de los museos en Chile e inscribir el proyecto del MMBAV en un contexto político y cultural más amplio, que da luces de un proceso específico del país en la década del cuarenta. Fue con los gobiernos radicales, específicamente con el primero de ellos presidido por Pedro Aguirre Cerda, y su lema “gobernar es educar”, que se diseñó e implementó un programa substancial de educación que promovió la investigación científica y el desarrollo cultural del país. En este sentido, la fundación del MMBAV se enmarca en una serie de reformas e iniciativas, estatales y gremiales, que buscaron responsabilizarse del campo cultural del país por medio de la creación de museos y la puesta en valor de su patrimonio artístico, con el objetivo de conocer y resguardar en ellos las piezas con las que armamos nuestra historia. Bibliografía AA. VV. El Palacio Baburizza. Museo de Bellas Artes de Valparaíso: restauración y habilitación museográfica. Turín: Compagnia Italiana di Conservazione, 2007. D’Halmar, Augusto. Recuerdos olvidados. Santiago: Editorial Nascimiento, 1975. Gorigoitía, Raúl. “Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaíso”. Revista de Arte nº15. Santiago, octubre 1961. Loebell, Ricardo. “Croquis de una crítica en albores del siglo por Augusto D’Halmar”. En: Chile 100 años de Artes visuales. Modelo y representación 1900 – 1950. Santiago: MNBA, 2000. Romera, Antonio. Historia de la pintura chilena. Santiago: Editorial Andrés Bello, 1976. Santiván, Fernando. Memorias de un tolstoiano. Santiago: Editorial Universitaria, 1997. Thomson, Augusto. “Los 21. Estudios sobre artistas por Augusto G. Thomson. III Alfredo Valenzuela Puelma”. Instantáneas de luz y sombra, Año II, nº 57. Santiago, abril 1901. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 152 Thomson, Augusto. “Los 21. Estudios sobre artistas por Augusto G. Thomson. VIII Juan Francisco González”. Instantáneas de Luz y Sombra, Año II, nº 66. Santiago, junio 1901. Zegers, Roberto. Juan Francisco González. Santiago: Ediciones Ayer, 1981 Amalia Cross Gantes 153 Figura 1 Augusto D’Halmar (1905). Archivo fotográfico del Archivo del Escritor. Biblioteca Nacional. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 154 Figura 2 Richon Brunet, Boca del Maule (1921). Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaíso. Amalia Cross Gantes 155 Figura 3 Portada sección “Los 21. Estudios sobre artistas, por Augusto G. Thomson ” Revista Instantáneas nº57 año 1901. Caricatura del pintor Alfredo Valenzuela Puelma dibujado por Santiago Pulgar. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 156 Figura 4 Alfredo Valenzuela Puelma, Retrato de Enrique del Campo (1894). Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaíso. Amalia Cross Gantes 157 Figura 5 Alfredo Valenzuela Puelma, Retrato de Enrique del Campo (1894). Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaíso. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 158 coleções e museus O Lugar das coleções museológicas na definição de um patrimônio no IPHAN Eduardo Augusto Costa Doutorando no IFCH – Unicamp. Professor da Escola da Cidade O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – guarda, em seu Arquivo Central, um conjunto de livros dedicados ao registro dos documentos fotográficos incorporadas a este instituto desde sua fundação, no ano de 1937. Tratam-se de livros de suma importância para o reconhecimento do empenho dos servidores deste Instituto não apenas no que se refere diretamente ao patrimônio tombado e reconhecido enquanto referencial para a constituição de uma memória da cultura brasileira, mas, especialmente, quanto às práticas, a um fazer cotidiano responsável pela definição de uma narrativa do patrimônio. Neste sentido, pode-se notar um sensível empenho na recolha de registros responsáveis pela definição de uma iconografia essencialmente vinculada aos processos de tombamento e restauro dos bens patrimoniais. O primeiro volume deste conjunto de livros – intitulado ‘Inventário’ – traz um retrato bastante contundente da importância dessa documentação no processo cotidiano de organização de uma feição original para o patrimônio nacional. Para além dos registros de cidades e bens passíveis de serem preservados, registra-se, ao longo de suas 200 páginas, dezenas de documentos cartoriais e escritos, mas, especialmente iconográficos como mapas, telas, croquis, desenhos técnicos e livres, retratando vistas, fachadas e interiores de edifícios listados pelo seu interesse patrimonial. Primeiramente, na sessão dedicada exclusivamente à série ‘Personalidades’1, pode-se acompanhar de maneira clara o interesse e a dedicação que os técnicos do IPHAN tiveram ao solicitar aos mais variados fotógrafos – anônimos e profissionais2 – o registro de obras de arte, que representassem 1 Uma subdivisão da série inventário. E aqui grandes nomes da fotografia brasileira, como Marcel Gautherot e Erich Hess, tiveram um papel fundamental, na medida em que eram eles os capazes de produzir registros condizentes com a qualidade técnica, a precisão, necessária para este tipo de registro. 2 159 elementos importantes para a cultura material brasileira. Nomes como os de Almeida Júnior, Pedro Américo, Benedito Calixto, Jean-Baptiste Debret, Charles Landseer, Victor Meireles, Johann Moritz Rugendas e Nicolas Antoine Taunay representam apenas uma breve amostra das quase três centenas de artistas representados nesse arquivo fotográfico3. A riqueza e importância desta documentação pode também ser avaliada pela significativa quantidade de documentos destinados a esta finalidade. Tratam-se mais de mil e duzentos registros fotográficos realizados apenas na primeira década de funcionamento deste instituto e registrados no Arquivo Central do IPHAN. Em termos quantitativos, equivale a dizer que, de cada 25 fotografias arquivadas, uma era destinada ao registro de obras de artes. Parece ainda importante notar que esta atividade perdurou por toda a história desta Instituição, conservando em seu arquivo, por exemplo, fotografias de telas de Frans Post, realizadas, em 1942, pelo fotógrafo Kazis Vosylius, e fotografias de arte plumária realizadas pelo fotógrafo Pedro Lobo, em 19854. A série ‘Personalidades’ do Livro de Registros de Fotografias parece dar destaque à intenção do IPHAN em constituir um repertório iconográfico a partir da obra de artistas consagrados, organizando assim um referencial visual da cultura brasileira. No entanto, essa finalidade aparece ainda melhor definida quando associada diretamente às cidades e seus bens imóveis. Nota-se, por exemplo, a presença de desenhos de Hercules Florence junto ao inventário relativo às cidades de Campinas e Limeira, no Estado de São Paulo; uma gravura de Johann Moritz Rugendas, representando uma casa identificada como de Porto da Estrela, em Magé no Rio de Janeiro; um painel de Henrique Bernardelli, identificado como casa nº97, da praia de Icaraí em Niterói, também no Rio de Janeiro; ou uma pintura a óleo de Frans Post, relativo a um engenho em Sirinhaém, no Estado de Pernambuco. Outras tantas reproduções fotográficas de obras de arte executadas seja por anônimos ou artistas consagrados não deixam dúvidas quanto a esta operação realizada pelo IPHAN, abrangendo todo o território nacional. Muitas vezes identificadas apenas como ‘gravura antiga’, Vale ainda destacar que, para além dos artistas que tiveram uma atividade ligada de maneira direta com a representação das cidades e dos bens históricos brasileiros, o Arquivo do IPHAN também apresenta nomes como o de Caravaggio, De Chirico, Joan Miró, Goya, Degas, Rafael e Renois, o que destaca não só o cuidado que o IPHAN teve em organizar um referencial iconográfico brasileiro, mas que, ainda, teve um olhar sensível à arte ocidental. 3 4 Livro de Registro de Fotografias. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 160 ‘desenho antigo’, ‘documento’, ‘panoramas da cidade’, ‘reprodução de telas’, esta documentação parece indicar de maneira eloquente a intenção dos servidores do IPHAN em associar os bens materiais com documentos e coleções de obras de arte, de posse de bibliotecas, arquivos e museus, especialmente, públicos e brasileiros, mas não exclusivamente. A documentação fotográfica dessas coleções de documentos e obras de arte expõe, antes de mais nada, a singularidade destas instituições frente à formação e à estabilidade de uma identidade para o patrimônio das nações. Trata-se de algo que o IPHAN parece corroborar ao incorporar reproduções destes documentos no processo de inventário, especialmente no que se refere ao patrimônio material e imóvel. Organizada através da documentação fotográfica, a vinculação do bem material inventariado com a iconografia pertencente às coleções públicas dá ensejo à singularidade assumida por essas instituições na organização e renovação das sociedades, especialmente no decorrer do século XVIII. Sem deixar de atentar para as bibliotecas e arquivos públicos, os museus foram instrumentos chaves para a regeneração das sociedades. Elas atuaram no sentido de organizar uma memória de uma dada cultura, assumindo, portanto, um importante lugar no jogo de poderes institucionais, como ocorrera de maneira latente durante a Revolução Francesa5. Os interesses que regeram a organização e criação de museus, bibliotecas e arquivos, no caso brasileiro, sofreram alterações no decorrer da história do país. Se a visão científica aparece de maneira marcada no século XIX, Schwarcz indica que há uma profunda transformação desta perspectiva, no início do século XX6. No entanto, especialmente no que se refere aos museus brasileiros de história, seja através de suas coleções ou até mesmo de seus espaços físicos em si, como é o caso do Museu Paulista, estas instituições exerceram um papel importante na manutenção de uma representação do imaginário social. Seria este o Theatrum Memoriae, destacado pelo historiador Ulpiano Bezerra de Meneses. O Museu, ao ordenar, registrar, interpretar e organizar uma síntese cognitiva da apresentação visual, exerceria, nas palavras do historiador, um “notável impacto pedagógico”7. CHAGAS, M. Museus: antropofagia da memória e do patrimônio. In: Revista do Patrimônio, nº31. Brasília: IPHAN, 2005. pp.15-25. 5 6 Idem. MENESES, U. ‘Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e o conhecimento histórico’. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. V.2. p.9-42 jan./dez. 1994. p.10. 7 Eduardo Augusto Costa 161 Seriam, portanto, os museus os responsáveis pela elaboração, manutenção e projeção de uma segurança identitária, mantida através da inter-relação de seus objetos, documentos e narrativas. Pela semelhança documental ou mesmo iconográfica entre os objetos, seria possível manter uma estabilidade, um ritmo à cultura, reafirmando e garantindo uma dada ordem, que seria responsável pela manutenção de uma didática e uma disciplina para a cultura brasileira. Esta identidade, mantida também através da relação entre estas instituições, parece ser elemento chave para o entendimento do que levou o IPHAN a documentar estas telas, desenhos, mapas e tantos outros documentos representativos para a cultura nacional. O registro fotográfico de determinados documentos e objetos de arte espalhados por museus, bibliotecas e arquivos no território brasileiro, além de documentos sobre o Brasil e de posse de instituições internacionais, parece indicar de maneira bastante contundente uma intenção deste Instituto em estabelecer não só um referencial comum, mas um vínculo com estas instituições, especialmente comprometidas com uma representação de país. Enquanto Instituto responsável pelo patrimônio e pela herança da cultura nacional, ao trazer para seu interior uma documentação autorizada e reconhecida socialmente, ou, ao menos, identificada enquanto documento iconográfico de um passado autorizado do país, o IPHAN ocupa-se de uma representação ‘arquivada’ sob a guarda de instituições nacionalmente reconhecidas, o que viria a assegurar e validar um lugar para si, no cenário nacional. A incorporação de registros fotográficos de importantes obras de arte, reconhecidas como lugar de identidade de uma cultura nacional, parece, portanto, servir ao IPHAN como meio de filiação à cultura da nação. Esta necessidade de projeção sobre a documentação da iconografia brasileira aparece em diversos momentos através de discursos oficiais e paralelos ao IPHAN. Uma das evidências mais significativas foi o tombamento, na primeira década de funcionamento deste Instituto, de uma série de coleções museológicas. Neste sentido, pode-se destacar o tombamento, em Belém, da ‘Coleção arqueológica e etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi’, em 1940; em Pernambuco a ‘Coleção que constitui o Museu em Formação, anexo à Biblioteca, atual Museu do Estado de Pernambuco’, em 1938; em Juiz de Fora – MG – as ‘Coleções que constituem o Museu Mariano Procópio’, em 1939; no Rio de Janeiro o ‘Museu de Magia Negra’, em 1938, e a ‘Coleção arqueológica Balbino de Freitas de Conchais do Litoral Sul (no Museu Nacional)’, em 1948; em História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 162 São Paulo as ‘Coleções arqueológicas, etnográficas, artísticas e históricas do Museu Paulista (Ipiranga)’, em 1938; em Curitiba a ‘Coleção etnográfica, arqueológica e histórica e artística do Museu Coronel David Carneiro’, em 1941, e a ‘Coleção etnográfica, arqueológica, histórica e artística do Museu Paranaense’, em 1938; em Porto Alegre a ‘Coleção arqueológica, etnográfica, histórica e artística do Museu Júlio de Castilhos’, em 1938; e, finalmente, em Santa Maria – RS – a ‘Coleção que constitui o Museu da União dos Caixeiros Viajantes no Museu Vitor Bersani’, em 19388. Vale ainda notar que, dos Museus relacionados com documentos fotográficos incorporados ao Arquivo Fotográfico, entre 1937 e 1948, pode-se indicar uma série de instituições9. Na Bahia: Museu de Arte Sacra de Salvador e Museu do Estado da Bahia; em Piauí: Museu Histórico; no Ceará: Museu do Bispo, Museu Histórico e Museu Rocha; em Pernambuco: Museu Instituto Arqueológico, Museu Regional e Pinacoteca do Estado; no Rio de Janeiro: Museu Ruy Barbosa, Museu Nacional, Museu Nacional de Belas Artes, Museu Histórico Nacional e Museu Imperial; no Espírito Santo: Museu Capixaba; em Minas Gerais: Museu Arquiepiscopal, Museu Dom Inocêncio, Museu Histórico, Museu da Inconfidência e Museu do Ouro; no Paraná Museu Dani Carneiro e Museu Revolução Federalista; em Porto Alegre: Museu das Missões e Museu Júlio de Castilhos. Parece portanto claro que o trabalho desenvolvido pelos servidores do IPHAN não se limitou exclusivamente ao tombamento dos bens imóveis, mas projetou-se, também, sobre coleções e conjuntos documentais de museus e instituições culturais. Esta atividade não minimiza a dedicação e a importância atribuída pelo IPHAN à classificação dos bens imóveis, como a bibliografia especializada tem apontado e reforçado, ao menos, nas últimas três décadas10. Por outro lado, este trabalho de tombamento das coleções e acervos, além da sua documentação fotográfica, parece sim LIMA, F; MELHEM, M.; POPE, Z. (Orgs.). “Bens móveis e imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: 1938-2009”. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2009. 8 Não há como precisar a data de incorporação de cada um destes documentos ao arquivo, uma vez que a anotação sistemática passou a ser realizada apenas a partir de 1948. Destaca-se, portanto, que estes documentos foram incorporados entre 1937 e 1948. 9 RUBINO, S. “As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937-1968”. Dissertação de Mestrado: IFCH- Unicamp, 1991; ANDRADE, A. “Um Estado Completo que pode jamais ter existido.” Tese (Doutorado). FAU-USP, 1993. 10 Eduardo Augusto Costa 163 destacar um viés duplo, onde ao mesmo tempo em que a documentação guarda características especialmente importantes para a cultura brasileira, no que se refere a sua natureza documental, ela também informa e qualifica os bens imóveis, no que se refere as suas características visuais. Neste sentido, através dos documentos preservados no Arquivo do IPHAN, de seus processos de tombamentos e dos próprios relatos dos servidores, podese acompanhar o lugar ocupado pelas coleções pertencentes às instituições brasileiras e estrangeiras na definição de uma visualidade para o patrimônio nacional. Um dos casos mais eloquentes a este respeito pode ser acompanhado através da Revista do Patrimônio. No ano de 1984, dedica-se o vigésimo volume desta revista ao tema “A restauração do Paço Imperial e o futuro da Praça XV no Rio”11, reforçando a importância deste debate, especialmente num momento de reestruturação da revista, após longo período sem ser editada. Além do cuidado em tratar da Praça XV, o centro do debate encontra-se nas questões suscitadas ao IPHAN, em decorrência das escolhas tomadas ao longo do processo de restauro do Paço Imperial. Entre os aspectos importantes desse serviço, deve-se destacar o fato de que este seria um dos grandes restauros executados pelo IPHAN, após longo período de reduzida atividade, fruto atrofia suscitada pelo Regime Militar. Mas é no simbolismo desta edificação que residiria a particularidade atribuída ao bem, já que atrelada à dezenas de importantes passagens da história do país, além de uma importante e vasta série de registros iconográficos produzidos ao longo de mais de três séculos. É neste sentido que Glauco Campello, superintendente da regional do IPHAN, no Rio de Janeiro e coordenador do restauro do Paço, apresenta, em artigo de sua autoria, um conjunto de 8 documentos iconográficos produzidos por Richard Bate, Thomas Ender, Karl Wilhelm von Theremin, Moreau & Buvelot e Marc Ferrez. Além da capa da Revista, que traz impresso o fabuloso Leque comemorativo da parada naval e militar no largo do Paço, impresso em cores, outros artigos também publicadas neste volume da Revista do Patrimônio apresentaram documentos iconografias, estes realizadas por Henry Chamberlain, Leandro Joaquim e William John Burchell. Para além de uma investigação in loco no sítio da edificação, a iconografia parece ter sido a documentação de maior valia para as resoluções tomadas no decorrer do restauro do Paço. Segundo Cyro Corrêa Lyra, 11 Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. nº20. Brasília: IPHAN, 1984. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 164 arquiteto que participou do processo, a pesquisa de restauro “foi facilitada pela existência de considerável iconografia do exterior do palácio, já identificada e analisada pelo historiador Gilberto Ferrez.”12. A importância da participação de Ferrez, no processo de restauro do Paço, é notória até mesmo na fala de Campello, que considerava a documentação iconográfica incompleta para a compreensão de todos os diferentes momentos da trajetória do edifício13. Vale notar, no entanto, que esta avaliação parece carregada de intenção, na medida em que a narrativa apresentada pelo autor atribui maior valor às escolhas e análises das técnicas construtivas realizadas in loco pelo próprio arquiteto, relegando, assim, à segundo plano o trabalho de Gilberto Ferrez. Tratava-se, portanto, da defesa de uma linha de projeto, já que muito contestada, como indicado pela arquiteta Lia Motta14. Ainda, é certo que, diante da complexidade dos tempos históricos superpostos no decorrer da trajetória desse edifício, que passara por diversas reformas e transformações, seria muito difícil encontrar documentação capaz de bem retratar todas as etapas desse processo em perfeição de detalhes, como intencionado por Campello. Por outro lado, pode-se identificar com facilidade o reconhecimento da documentação iconográfica no processo de restauro do edifício, além da importância da participação de Ferrez na tomada de decisões, para o que viria a ser realizado pelo IPHAN. O próprio Campello destaca o papel deste historiador, juntamente ao do arquiteto José de Souza Reis, que, como conselheiros do IPHAN, “opinaram de saída pela recomposição da volumetria correspondente ao período colonial”15. A participação de Ferrez e a opção pelo uso da documentação iconográfica no processo de restauro do Paço parecem, por fim, destacados numa outra publicação dedicada à história do edifício e a sua trajetória iconográfica. Editado pelo SPHAN/Pró-Memória e pela Secretaria da Cultura, Gilberto Ferrez organiza o livro intitulado ‘O Paço da Cidade do Rio LYRA, C. ‘O novo Paço: uma obra para debates’. In: Revista do Patrimônio. Nº20. Op. Cit. p.152. 12 13 CAMPELLO, G. ‘A restauração do Paço: revendo 240 anos de transformações’. In: Revista do Patrimônio. Nº20. Op. Cit. p.139. 14 Entrevista concedida ao autor em 11 de dezembro de 2013. 15 Idem. p.143. Eduardo Augusto Costa 165 de Janeiro”16. Composto por 60 ilustrações, entre desenhos, mapas, litogravuras, aquarelas, pinturas, e fotografias, o livro parece adquirir uma certa independência, já que funciona como uma espécie de exaustivo inventário iconográfico do Paço. Cyro Lyra, responsável pelo texto de ‘Apresentação’ do livro, logo deixa claro que a iconografia apresentada teria servido como “pedras angulares do trabalho de restauração arquitetônica.”17. Neste sentido, é reveladora a síntese realizada por Lyra ao descrever alguns destes documentos, frente às tomadas de decisões no processo de restauro. A passagem é longa, mas esclarecedora: “Os desenhos de Thomas Ender, William John Burchell e Theremin [Fig.1], notadamente as fachadas retratadas por Ender e a visão panorâmica do Rio de Janeiro, de Burchell, foram argumentos básicos para a decisão que levou à demolição de grande parte do pavimento superior. Ao contrário da maioria dos desenhos do Paço, as aquarelas notáveis do pintor austríaco [Fig.2; Fig.3] captaram com precisão a força das fachadas principais do prédio à época de D. João VI. Força esta que resultava mais das qualidades da composição arquitetônica do que de atributos próprios aos edifícios palacianos (...) inexistentes no nosso palácio. Os desenhos de Ender tiveram o efeito de convencimento que outros trabalhos não produziram. Debret, por exemplo, cujas ilustrações são muito mais difundidas, ao retratar o Paço, falta à verdade, modificando proporções e detalhes arquitetônicos, talvez por estar mais interessado na captação do espaço urbano do largo do Paço do que propriamente nos edifícios que o circundam. Entretanto, se as imagens transmitidas por Ender convenceram os restauradores, já não foram suficientes para justificar racionalmente uma reconstituição. Foi através dos desenhos realizados pelo inglês Burchell [Fig.4], do alto do morro do Castelo, que se tornou possível redescobrir (...) a volumetria do monumento, de um ângulo (...) essencial para o trabalho de restauração.”18 O Arquivo Fotográfico do IPHAN parece ser uma instituição imprescindível para que se possa refazer o elo estabelecido entre este Instituto e as instituições museológicas. A restauração do Paço Imperial, assim como uma série de outros restauros realizados, deixa clara que O registro da Biblioteca Nacional indica o ano de 1984. Apesar de haver grafado no livro uma outra data, a de 1985, a primeira será considerada. FERREZ, G. “O Paço da Cidade do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-Memória, 1984. 16 17 Idem. p.7 18 Ibidem. p.7 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 166 a iconografia foi documento necessário à justificativa e à autorização da intervenção na materialidade do bem, resultando em demolições e reconstituições. Finalmente, parece clara que a iconografia foi elemento fundamental para que se pudesse reconectar o tectônico a uma visualidade institucionalizada por museus e instituições nacionais e internacionais. Vale notar que estes procedimentos, ao se associarem a um conjunto de instituições dedicadas à formação de uma cultura para a nação, compõem algo estruturante e formador do próprio engenho cultural, organizado ao longo do século XX no Brasil. É a destreza com que estes restauros se apropriam da iconográfica brasileira que torna o patrimônio material, em especial a arquitetura, parte indissociável da cultura brasileira, já que associada às coleções museológicas nacionais e internacionais relativas à cultura brasileira. Através da perspicácia de se associar a uma visualidade, os servidores do IPHAN parecem ter tomado de assalto uma cultura ou, quem sabe, contribuído radicalmente para a formação de uma cultura moderna brasileira, talvez, a própria tradição moderna. Cultura que se dá a partir do vínculo entre as coleções de determinadas instituições com a materialidade do patrimônio histórico tombado, restaurado e preservado em seu Arquivo Fotográfico. Referências bibliográficas ANDRADE, A. “Um Estado Completo que pode jamais ter existido.” Tese (Doutorado). FAU-USP, 1993. CAMPELLO, G. ‘A restauração do Paço: revendo 240 anos de transformações’. In: Revista do Patrimônio. Nº20. Op. Cit. p.139. CHAGAS, M. Museus: antropofagia da memória e do patrimônio. In: Revista do Patrimônio, nº31. Brasília: IPHAN, 2005. pp.15-25. FERREZ, G. “O Paço da Cidade do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-Memória, 1984. LIMA, F; MELHEM, M.; POPE, Z. (Orgs.). “Bens móveis e imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: 1938-2009”. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2009. Eduardo Augusto Costa 167 LYRA, C. ‘O novo Paço: uma obra para debates’. In: Revista do Patrimônio. Nº20. Op. Cit. p.152. MENESES, U. ‘Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e o conhecimento histórico’. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. V.2. p.9-42 jan./dez. 1994. p.10. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. nº20. Brasília: IPHAN, 1984. RUBINO, S. “As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937-1968”. Dissertação de Mestrado: IFCH- Unicamp, 1991. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 168 Figura 1 O Paço da Cidade tomado da rampa, 1818. Desenho original de Theremin foi litografado por Loeillot e colorido a mão. Coleção Gilberto Ferrez. Eduardo Augusto Costa 169 Figura 2 Haupteingang in den koenigl. Pallast. 1.Koemigl. Hof Capelle 2.Capella dos Terceiros 3.Der Molo (Entrada principal no Paço Real. 1. Real Capela da Corte 2. Capela dos Terceiros 3. O Cais. Lápis aquarelado 390 x 527mm – Thomas Ender). História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 170 Figura 3 Ansicht des koenigl. Pallastes mit der Hauptwache 1. Fort SoSebastiao. 2 Telegraph (Vista do Real Palácio com a guarda princial. 1. Forte de São Sebastião 2. Telégrafos. Lápis aquarelado 372x525mm – Thomas Ender) Eduardo Augusto Costa 171 Figura 4 Uma das pranchas do grande panorama de 360 graus executado do alto do morro do Castelo, em 1825, por William John Burchell a lápis e aquarela. Coleção Biblioteca de Johannesburg – África do Sul História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 172 coleções e museus Imagen, materia y memoria: un acercamiento a la colección de estampitas religiosas del Museo Histórico Nacional Hugo Rueda Ramírez Licenciado en Historia y Magister en Estudios Latinoamericanos por la Universidad de Chile. Asesor de Colecciones del Museo Histórico Nacional, Dibam. www.museohistoriconacional.cl Las estampitas del Museo Histórico Nacional La Colección de Libros y Documentos del Museo Histórico Nacional de Chile custodia un conjunto de tarjetas conmemorativas asociadas a prácticas rituales propias del catolicismo. Se trata de un amplio repertorio compuesto por alrededor de 130 representantes que, a manera documental, atestiguan mediante una imagen la celebración de un rito particular: bautismos, primeras comunión, matrimonios, congregaciones y ordenaciones, entre otras, son contenidas material y visualmente por un soporte conocido tradicional y popularmente como estampita. Comprendidas como materialidades condensadoras –y al mismo tiempo, evocadoras- de un rito, las estampitas católicas provienen de una larga tradición europea que es posible rastrear desde los grabados religiosos del siglo XVI, contexto en el que pertenecían al ámbito de las devociones privadas1. Legitimadas institucionalmente por el episcopado durante el Concilio de Trento en 15632, las imágenes sagradas adquirirán un valor único como agentes estratégicos de una pedagogía de la evangelización de carácter visual. En ese contexto, las estampitas se inscriben como elementos claCfr: Laugerud, Henning y Skinnebach, Laura Katrine (eds)., Instruments of Devotion. The Practices and Objects of Religious Piety from the Late Middle Ages to the 20th Century. Aarhus, Aarhus University Press, 2007. 1 Sobre el asunto, Trento decreta que “Se saca mucho fruto de todas las sagradas imágenes, no sólo porque recuerdan al pueblo los beneficios y dones que Cristo les ha concedido, sino también porque se exponen a los ojos de los fieles los saludables ejemplos de los santos, y los milagros que Dios ha obrado por ellos”. (Sesión XXV: “La invocación, veneración y reliquias de los santos y de las sagradas imágenes”.) 2 173 ve entre el repertorio configurador de un imaginario visual sobre lo sagrado. Sin embargo, la importancia documental, estética, social y simbólica que este tipo de imágenes ofrece ha sido históricamente relegada a un lugar secundario. Recién hacia 1932 el historiador del arte alemán Aby Warburg en su obra El Renacimiento del Paganismo: Aportaciones a la historia cultural del Renacimiento Europeo3 apunta la necesidad de enfocarse en las estampitas para abrir nuevos campos de investigación sobre las imágenes y su relevancia para la cultura popular. En particular, Warburg se detiene en la idea de que este tipo de soportes poseen una vida ponderada por Dios en tanto presentan un carácter vivo y activo que no se reduce a un sentido únicamente iconográfico o lingüístico, sino más bien a uno mayor que transita entre la construcción de sentido de campos visuales y sociales. Desde ese lugar, y acogiendo la hoy primitiva propuesta del autor germano, comprendemos la estampita como soporte cargado de signos que, desplegados en contextos particulares, es capaz de ejecutar una acción y funcionar como elemento constructor de sentido. La pregunta de esta ponencia se relaciona, entonces, con los tránsitos, distancias, y espacios en que la estampita conmemorativa es capaz de configurar una red que, mediante usos y recepciones específicas, establece diversos sistemas de representaciones: desde un uso local y familiar enmarcado en el rito que permitió su emergencia, a uno distinto de carácter global y patrimonial, enmarcado por su ingreso a las colecciones del Museo. La estampita: presentar, representar, crear Dentro de la tradición iconográfica cristiano-católica, existe una usanza según la cual la copia de una imagen perpetúa su valor sagrado y muchas veces milagroso. El antropólogo alemán Hans Belting ha estudiado cómo en la iconografía cristiana oriental este principio se aplica, donde se considera como el primer ícono religioso la impresión del rostro de Jesucristo en el pañuelo de Verónica4, y de allí descienden las imágenes conocidas como 3 Warburg, Aby. El Renacimiento Del Paganismo: Aportaciones a La Historia Cultural Del Renacimiento Europeo. Madrid, Alianza, 2005. Especialmente ver el capítulo 4: “Acerca de las imprese amorose en las más antiguas estampas florentinas (1905)”, pp. 135-146. Esta leyenda tiene pormenores histórico-políticos que no viene al caso desarrollar en el contexto de esta ponencia; sin embargo, cabe destacar que la Iglesia Ortodoxa actual sostiene la leyenda opuesta, en la que Cristo envía como regalo a un rey su rostro impreso 4 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 174 no hechas por mano humana5. La copia de una imagen sagrada tiene un gran valor simbólico, y esta práctica se replicará con respecto a ciertas obras del arte europeo que serán impresas en grabados para el uso popular6. En este sentido, no pretendemos una comprensión de la estampita desde una dimensión ontológica (no nos preguntamos por la veracidad de la figura religiosa representada); sino más bien lo hacemos desde una de carácter cultural. Nos interesa su lugar en la construcción de imaginarios sobre lo sagrado, los significados de su representación, y los re-significados a los que ésta puede ser sometida. Nuestra propuesta apunta, entonces, a descifrar las distintas significaciones y usos que la estampita es capaz de representar. Anclada en la significación quizás más obvia del concepto –el re-presentar es volver a presentar, es la sustitución de un cuerpo ausente por una imagen parecida-, la estampita representa tanto una imagen sagrada como la conmemoración y el recuerdo de un rito. Asumimos, citando a Roger Chartier, que “toda representación se presenta representando algo”7, y en este caso, la estampitas lo hacen de aquello conmemorado que, materializado, configura una memoria. Sin embargo, es importante establecer la diferencia entre aquello que el soporte representa y aquello que presenta, entendiendo a ambas nociones como conceptos operativos distintos. El historiador del arte británico Norman Bryson trabaja esta dicotomía reparando en la distinción conceptual del binomio, pues mientras el representar implica una mímesis –la repetición de aquello que ocurrió-, una realidad conocida; lo presentado es aquello que ocurre única y exclusivamente dentro de la composición. Bryson sostiene que “la doctrina de la mimesis describe la representación como un proceso de correspondencia perceptual por el que la imagen trata de igualarse (imagen y semejanza), con distintos grados de éxito, a una realidad previa y plenamente constituida”8. Acogienen un pañuelo. O imágenes acheiropoieticas, según la transliteración del griego. Cfr. Freedberg, David. El Poder de las Imágenes. Estudios Sobre La Historia Y Teoría de La Respuesta. Madrid, Cátedra, 2009. 5 Cfr. Belting, Hans. Imagen Y Culto. Una Historia de La Imagen Anterior a La Era Del Arte. Barcelona, Akal, 2009. 6 Chartier, Roger. Entre poder y placer. Cultura escrita y literatura en la edad moderna. Madrid, Cátedra, 2000. p. 76. 7 8 Bryson, Norman. Visión y pintura: la lógica de la mirada. Madrid, Alianza, 1991. p. 54. Hugo Rueda Ramírez 175 do su propuesta, sostenemos que las estampitas son capaces de representar un rito a través de la presentación de una materialidad de características visuales asociadas a un imaginario sobre lo sagrado. Es lo que sucede, por ejemplo, con la estampita conmemorativa de la Primera Comunión de María Avendaño [fig. 1]. Siguiendo la lógica propuesta, el soporte material acoge la representación del rito, anclada en una materialidad que presenta una imagen visual sagrada: el relato bíblico en el que María y José huyen a Egipto junto a Cristo niño tras la amenaza del emperador Herodes9. En este caso, la representación es de carácter evocativo: rememora mediante el soporte aquel 28 de enero de 1923 en que la pequeña María tomó el sacramento en que recibió el cuerpo de Cristo. Entendiendo el concepto de mímesis como un sistema de representación basado en la fundamentación y la correspondencia, proponemos el carácter mimético no solo de la estampita que conmemora la comunión de María Avendaño, sino de todo el conjunto en tanto categoría. La mimesis sería, bajo este análisis, una propiedad de las estampitas pues éstas tienen por principal objetivo generar una relación de representación evocativa que pone el acento en la sustitución de una práctica ausente –el rito-, transformándola en presencia constante e infinita. Utilizando referencias a la iconografía sagrada, las estampitas son capaces de contener un discurso que transita entre elementos activos en constante acción. Denotando un recorrido de traducción y transmisión de signos, las estampitas establecen profundas conexiones entre imagen e imaginario, formando parte del repertorio de agentes constructores de sentido en quienes las consumen, a saber principalmente, el espacio social católico y romano. Como ha sido señalado, las estampitas se inscriben en un recorrido de larga tradición iconográfica. Sin embargo, la especificidad de su formato es identificable en términos masivos hacia finales del siglo XIX gracias a la producción artesanal en serie que se inició en los talleres del barrio circundante a la iglesia Saint-Sulpice en París, Francia. De hecho, la estampita del bautizo de María Avendaño indica claramente su lugar de producción: la imprenta parisina Bouasse-Jeune, uno de los talleres más importantes en lo referente a manufactura de imágenes sagradas y materialidades de devoción decimonónica. 9 Cfr. Mt. 2:13-15 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 176 El taller Bouasse-Jeune entró al mercado de las tarjetas religiosas en 1867 como competencia directa de la compañía Bouasse-Lebel, también parisina y creada hacia mediados de siglo10. Ambos talleres permanecieron por años a la cabeza de la industria productora de imágenes sagradas, conocidas entonces por su delicado y prolijo trabajo primero manual y luego industrial mediante el uso de innovadoras tecnologías de impresión como la cromolitografía, técnica que permitía la creación de imágenes a partir de la superposición de varios bloques de piedra o madera sobre papel. La técnica, además, permitía un trabajo manual en la creación de los detalles finales de la imagen en construcción, los que se ven reflejados en la prolijidad de ciertos elementos como el sobredorado de las tarjetas. Sin embargo, para efectos de esta ponencia resulta clave la pregunta por el traslado de la práctica al espacio latinoamericano, y particularmente al chileno. Observando en detalle el acervo de estampitas que custodia el Museo Histórico Nacional, identificamos varios representantes de estas tarjetas religiosas fabricadas en los talleres parisinos que, exportadas al territorio nacional, sirvieron como materialidad conmemorativa del rito al que apelan; tal como sucede en la ya citada estampita de María Avendaño, producida en Paris, pero conmemorativa de un sacramento celebrado en Chile. Es en este punto donde proponemos, a manera de hipótesis, que el conjunto de estampitas custodiada por el Museo Histórico Nacional es una muestra del resultado de un sistema de producción en serie que masificó y homogenizó un imaginario específico sobre lo sagrado, permitiendo la democratización del acceso a imágenes religiosas de bajo costo y de carácter transportable. Como parte de los resultados de los procesos técnicos propios de la industria impresora durante el siglo XIX, las estampitas resultan –tanto material como visualmente- portadoras de un signo enraizado en la relación entre imagen y texto que configurarán un imaginario social y democrático sobre la visualidad cristiana. En este punto, acogemos la propuesta del historiador del arte norteamericano David Morgan quien sostiene que “sólo porque una imagen sea producida en masa no significa que debe ser recibida como un producto de poca o ninguna significancia 10 Cfr. University of Dayton. Bouasse-Lebel and Bouasse-Jeune holy cards collection. University of Dalton Website [online] < http://ead.ohiolink.edu/xtf-ead/view?docId=ead/ODaU0048. xml;query=;brand=default> Hugo Rueda Ramírez 177 local”11; muy por el contrario, nuestra propuesta apunta a relevar la importancia del formato en la construcción social de un amplio imaginario sobre lo divino. Del culto familiar al patrimonial El hecho de que el conjunto de estampitas aquí trabajadas pertenezcan hoy al acervo del Museo Histórico Nacional nos obliga a detenernos en otro punto: el tránsito producido desde su uso local y familiar, hacia uno otro, distinto, determinado por su transformación en objeto patrimonial, parte de las colecciones de un museo. En ese sentido, es importante destacar que estos objetos fueron producidos con la intención de circular en un espacio reducido: el ámbito doméstico. En su génesis, las estampitas forman parte de un tipo de culto particular fuertemente asociado a los recuerdos de familia; es decir, configuran una memoria específica y particular restringida al ambiente de lo privado. Las estampitas, limitadas a un espacio primigenio de circulación -a saber, el familiar-, evocan un uso específico asociado a un tipo de religiosidad doméstica practicada en y desde aquel espacio. Es, entonces, en el lugar íntimo donde las estampitas adquieren las propiedades que le otorgan sentido a su materialidad; y viceversa, es en ese mismo espacio donde aquella materialidad configura el sentido de su uso. Otra de las características de la estampita inscrita en un sistema de circulación y uso familiar es aquella que se asocia a un nivel de cercanía con sus receptores/consumidores: las estampitas son objetos producidos para mantenerse cerca del cuerpo, su formato permite gran portabilidad y tienden a reproducir imágenes sagradas y oraciones. En ese sentido, este tipo de soporte no está hecho para su exhibición, muy por el contrario, lo está para ser custodiado a manera de tesoro íntimo, personal y privado. Dentro de este campo, es de nuestro particular interés lo que se ha descrito como experiencia háptica, es decir, aquella en la que prima el tacto de la imagen por sobre la visualidad. La antropóloga británica Frances King sostiene que los objetos se deben considerar desde su “piel”, enfatizando su carácter corporal: Morgan, David. Visual Piety: A History and Theory of Popular Religious Images. Berkeley, University of California Press, 1998. p.134. (la traducción es nuestra) 11 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 178 “Esta noción de ‘piel’ del objeto, una analogía muy corporal, nos hace más fácil el aprehender el significado de la teoría de la visión háptica para el estudio de artefactos materiales de la cultura popular, porque (…) se aleja de la idea de las imágenes como objetos visuales y se concentra en considerar las muchas otras formas en que interactuamos con los objetos de nuestro entorno. Nosotros los tocamos, pero ellos también nos tocan.”12 Es lo que sucede, por ejemplo, con la estampita conmemorativa del bautismo de Alfonso Leopoldo Duhart Peña [fig. 2], de 1955. En ella el soporte ofrece claros indicios de un acercamiento donde conviven lo táctil y lo visual: la pequeña imagen de un angelical niño enmarcada en sobredorado se posiciona sobre una materialidad cuyos pliegues invitan al roce entre cuerpo y materia. En el soporte conviven, además, otros formatos: la imagen del infante, el papel que recepciona el texto, la cinta que lo decora, y una pequeñísima medalla en la que, a partir de relieves, se presenta un querubín. A pesar de sus evidentes variables asociadas a una dimensión sacra, este tipo de tarjetas religiosas nos permiten corroborar la idea aquí propuesta, a saber, que las estampitas son capaces de perpetuar una memoria particular asociada al espacio de lo íntimo. Es en este punto donde develamos la doble propiedad de las estampitas, hoy parte del acervo de nuestro museo: por un lado son portadoras de signos que evocan una memoria personal, y por otro urden una relación en la que aquella memoria adquiere una connotación patrimonial en tanto tema social. Adhiriendo a los postulados de la historiadora chilena Olaya Sanfuentes “entendemos que la dimensión privada de esta relación es importante, pero la consideramos como una experiencia base y anterior a la de la dimensión pública”13. Las estampitas hoy parte de la Colección de Libros y Documentos del Museo Histórico Nacional, re inscritas en un espacio distinto al de su génesis, han sido sometidas a un proceso de resignificación en el que su condición primera, íntima y familiar, es resemantizada hacia una segunda, de carácter público y patrimonial. 12 King, Francis. Material Religion and Popular Culture. Abingdon, Routledge, 2009. p. 39. (la traducción es nuestra) Sanfuentes, Olaya “¿Por qué recordar? Algunas reflexiones acerca de la relación entre memoria y patrimonio”. En: Marsal, Daniela (comp) Hecho en Chile. Reflexiones en torno al patrimonio cultural. Santiago, Andros, 2012. p. 58 13 Hugo Rueda Ramírez 179 Bajo este postulado se inscriben todas las tarjetas conmemorativas que componen el conjunto aquí trabajado. Sin embargo, nos detendremos a manera de ejemplo en la que conmemora la bendición del órgano de la Iglesia de San Vicente de Paul en 1908 [fig. 3]. En términos iconográficos, el soporte presenta la representación del cáliz y la hostia consagrada junto a dos ángeles custodios y la leyenda Viva Jesús sacramentado Viva y de todos sea alabado; mientras en su reverso el texto recuerda el rito solemne que permitió su emergencia y circulación. Lo que nos interesa de esta estampita, en tanto representativa de todo el conjunto, es que es capaz de soportar en su formato la resignificación de una memoria, pues transita desde una local (los feligreses de la Iglesia) a una global, ya que en tanto objeto perteneciente al Museo forma parte de aquel conjunto que configura un patrimonio global. De esta manera, concluimos el carácter mnemotécnico de las estampitas hoy parte de nuestro museo en tanto sus posibilidades de lectura no se agotan ni se restringen a la idea del recuerdo, sino que son más bien capaces de prolongar evocaciones de una memoria distinta y de carácter social y comunitario, es decir, una memoria patrimonial. La noción de patrimonio implica la elaboración de una red de elementos sígnicos que registran y perpetuán una memoria comúnmente asociada a lo monumental. Sin embargo, uno de los objetivos de esta ponencia ha sido validar la respuesta a la pregunta por el cómo las estampitas son capaces de rebasar esa dimensión, haciendo de aquello que alguna vez perteneció al espacio de lo íntimo y lo cotidiano, sea también materia capaz de transformarse en parte de una memoria amplia y simbólica anclada entre un repertorio de agentes elaboradores de una identidad. Es ahí donde relevamos el carácter dinámico de la memoria, y las estampitas como uno de los tantos elementos constitutivos de aquel dinamismo. Las estampitas donadas al Museo Histórico Nacional registran una voluntad de ser no solo reconocidas, sino también perpetuadas. En esa dimensión, concebimos su formato como uno apto de dar cuenta de los fenómenos inmateriales y rituales que permitieron su producción, recepción, circulación y usos. En esta última dimensión, aceptando su lugar como objetos componentes del acervo total de un museo de carácter histórico, su reconocimiento implica también su instalación en los procesos de construcción de una memoria colectiva. He ahí, entonces, nuestro interés en presentarlas como materialidades constitutivas de la misma. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 180 Bibliografía Belting, Hans. Imagen y Culto. Una Historia de la Imagen anterior a la era del Arte. Barcelona, Akal, 2009. Bryson, Norman. Visión y pintura: la lógica de la mirada. Madrid, Alianza, 1991. -----------. Volver a mirar: cuatro ensayos sobre la pintura de naturalezas muertas. Madrid, Alianza, 2009. Chartier, Roger. Entre poder y placer. Cultura escrita y literatura en la edad moderna. Madrid, Cátedra, 2000. Freedberg, David. El Poder de las Imágenes. Estudios sobre la historia y teoría de la respuesta. Madrid, Cátedra, 2009. King, Francis. Material Religion and Popular Culture. Abingdon, Routledge, 2009. Laugerud, Henning y Skinnebach, Laura Katrine (eds). Instruments of Devotion. The Practices and Objects of Religious Piety from the Late Middle Ages to the 20th Century. Aarhus, Aarhus University Press, 2007. Morgan, David. Visual Piety: A History and Theory of Popular Religious Images. Berkeley, University of California Press, 1998. Sanfuentes, Olaya “¿Por qué recordar? Algunas reflexiones acerca de la relación entre memoria y patrimonio”. En: Marsal, Daniela (comp) Hecho en Chile. Reflexiones en torno al patrimonio cultural. Santiago, Andros, 2012. Warburg, Aby. El Renacimiento Del Paganismo: Aportaciones a la Historia Cultural del Renacimiento europeo. Madrid, Alianza, 2005. Hugo Rueda Ramírez 181 Figura 1 Estampita de recuerdo de la Primera Comunión de María Avendaño celebrada en 1923. Impresión y tinta sobre papel, 10.9 x 6 cm. Paris, Ca. 1923. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 182 Figura 2 Estampita de recuerdo del bautismo de Alfonso Leopoldo Duhart Peña celebrado en 1955. Impresión y tinta sobre papel y cartón. 10.2 x 8.6 cm. [Santiago], 1955. Hugo Rueda Ramírez 183 Figura 3 Estampita de recuerdo de la bendición del órgano de la Iglesia San Vicente de Paul celebrado en 1908. Impresión sobre papel. 11.2 x 6.5 cm. [Santiago] 1908. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 184 coleções e museus Coleção de desenhos da Princesa Isabel no Museu Imperial de Petrópolis e no Museu Mariano Procópio: expressão de um sentimento religioso1 Maraliz de Castro Vieira Christo Professora Associada Universidade Federal de Juiz de Fora Ao ser estudada a construção da memória do Império Brasileiro, através da cultura material, duas instituições se complementam: o Museu Imperial, criado em 1940, com esse fim específico, e o Museu Mariano Procópio, fundado em 1921, por Alfredo Ferreira Lage para abrigar sua coleção, composta em grande parte por objetos oriundos dos palácios imperiais. Dentre os dois vastos acervos, nos fixaremos aos desenhos realizados pela Princesa Isabel. São meros exercícios de cópia, cuja temática muito nos revela sobre a própria Princesa. O professor da Princesa: José Mariano de Almeida A Princesa Isabel recebera formação tanto clássica quanto científica, dedicando-se quase quinze horas diárias ao estudo do grego, latim, alemão, italiano, francês, inglês, literatura, filosofia, mitologia, história universal, história de Portugal, do Brasil, da França, da Inglaterra, história antiga, medieval, moderna, eclesiástica, retórica, álgebra, geometria, cosmografia, física, química, economia política, geografia, geologia, mineralogia, astronomia, botânica, zoologia, desenho, pintura, piano e catecismo. As disciplinas eram organizadas em função de uma escala prescrita pelo próprio Imperador de acordo com o dia da semana.2 Para a elaboração do presente texto, contamos com a ajuda dos colegas: Elaine Dias, Robert Daibert Jr. e Samuel Mendes Vieira. 1 Ricardo Martim. A educação das Princesas. IHGB. Coleção Leão Teixeira. Lata 755. Pasta 51. Cit. por DAIBERT JR., Robert. Princesa Isabel (1846-1921):A “política do coração” entre o trono e o altar. Rio de Janeiro, 2007 (Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social, UFRJ). 2 185 Em documento de 1862, observa-se o planejamento das atividades das princesas, incluindo os horários estabelecidos para aulas de desenho: segundas e quartas-feiras, entre meio-dia e duas da tarde, bem como aos sábados, entre oito e nove e quinze da manhã3. Perfaziam, portanto, 5 horas por semana, em meio a uma jornada de estudos estafante. Nesse período, Mariano José de Almeida (?-1877-8)4era professor de desenho de suas Altezas Imperiais, as Princesas Isabel e Leopoldina. Mariano é, hoje, artista desconhecido, ignorado pela maioria dos dicionários brasileiros. Esteve matriculado na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), entre 1843 e 1850, sendo aluno de Félix Taunay; destacando-se no desenho e na pintura histórica5. Na década de 1850, seu nome aparece como professor do Liceu de Artes e Ofícios, criado pela Sociedade Propagadora das Belas Artes do Rio de Janeiro, em 18566. É possível que Félix Taunay, antigo professor de francês e desenho de Pedro II, agora professor de francês de suas filhas, tenha indicado seu ex-aluno da AIBA para mestre de desenho de suas altezas, atividade à qual Mariano José de Almeida se dedicou de 01 de agosto de 18607 a 15 de dezembro de 18648. Entretanto, a Princesa prosseguiu seu estudo de desenho, segundo Maria de Fátima Moraes Argon, com Victor Meirelles, entre 1865 e 18679. LACOMBE, Lourenço L. “A educação das princesas”. Anuário do Museu Imperial, v.7, 1946, p. 255-257 3 4 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro - 1844 a 1885. Correspondências de Félix Émile Taunay para o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, datadas de 07 de junho de 1845 (UFRJ-P47/ s/n-s/n), 08 de setembro de 1845 (UFRJ P48/395-395) e 29 de junho de 1849 (UFRJ-P48/394-394). Certificado datado de 30 de outubro de 1863 (UFRJ-015/ s/n-s/n). 5 MORAES, Frederico de. Cronologia das artes plásticas no Rio de Janeiro: da missão artística francesa à geração 90.Topbooks, 1995, p.82-83 6 Nomeacão de Mariano José de Almeida a Mestre de Desenho de S.A. Imperiais. 1-81860. (1 doc. 4 ans. 5 fls.) Publicações do Arquivo Nacional - Volumes 39-40 - Página 63, Officinas Graphicas do Arquivo Nacional, 1957. 7 Anuário do Museu Imperial, Volume 7, 1946. A data indicada pelo Anuário refere-se ao término do contrato em decorrência do casamento de D. Leopoldina, mas as aulas de D. Isabel encerraram-se dois meses antes, quando esta se casou. 8 ARGON, Maria de Fátima Moraes, “O mestre de pintura da princesa regente”. TURAZZI, Maria Inez, Victor Meirelles, novas leituras. Florianópolis, SC: Museu Victor Meirelles/ IBRAM/MinC; São Paulo: Studio Nobel, 2009, p. 107. 9 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 186 Os desenhos O ensino de desenho dos príncipes não diferia do ministrado aos alunos da Academia Imperial de Belas Artes, cujo início se dava pela cópia. Os desenhos de D. Pedro II e de suas irmãs, existentes no Museu Mariano Procópio e no Museu Imperial, confirmam o método, a exemplo de alguns exercícios de expressão realizados por D. Pedro II10, tendo como base a conhecida obra de Charles Le Brun (1619-1690)11. Emoldurado e fixado à parede de uma das salas do Museu Mariano Procópio, encontra-se um desenho destacando o busto de uma jovem, com a cabeça levemente inclinada, coberta por tecido, o colo adornado por crucifixo, pendente do pescoço, e por pequena flor, presa ao decote da veste clara12. A legenda o apresenta como de autoria da Princesa, intitulado simplesmente “retrato”, datado de 13 de outubro de 1863 (Fig. 1). No mesmo período em que a Princesa Isabel iniciou os estudos com Mariano José de Almeida, o francês Bernard-Romain Julien (1802-1871) organizou um curso elementar de desenho por meio de estampas litografadas. Publicação destinada inicialmente ao ensino nas escolas públicas da França, circulou amplamente nas academias e ateliês, precedendo ao famoso Le Cours de dessin, de Bargue-Gérôme. Julien foi aluno de Antoine-Jean Gros e dedicou-se à pintura histórica e a retratos, tornando-se, contudo, conhecido como litógrafo, cuja técnica expôs no Salon de Paris de 1833 a 1850. Há, no acervo do Museu D. João VI (EBA-UFRJ), trinta e três estampas produzidas por Bernard-Romain Julien; dentre elas identificamos a que motivou o desenho realizado pela Princesa Isabel, pertencente ao Museu Mariano Procópio (Fig. 2)13. O desenho é cópia espelhada da estampa “Rosto de mulher”, do Cours élémentaire, nº 160, litografada por Julien e Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-292 e MI-336, Desenhos a lápis, Assinados “D. Pedro 2º”. 10 Les expressions des passions de l’âme, représentées en plusieurs testes gravées d’après les dessins de feu. M. Le Brun. 11 Princesa Isabel, Retrato, 15 de outubro de 1863. Desenho, técnica mista, papel, crayon, grafite e lápis de cor, 42 x 52 cm., Museu Mariano Procópio. 12 Nosso primeiro contato com essa gravura foi a partir da comunicação de pesquisa de Fátima Alfredo, “O estudo da representação humana e a ciência da forma”, apresentada no III Seminário do Museu D. João VI, ver para crer: visão, técnica e interpretação na Academia, em 2012. 13 Maraliz de Castro Vieira Christo 187 impressa por François Delarue, em Paris, produzida a partir de uma obra de Constant Joseph Brochart (1816-1899), ainda não identificada14. É possível perceber pontos de contato entre D. Isabel e a jovem litografada: os olhos claros e os cabelos cacheados, aparentemente loiros. Mais: a expressão religiosa advinda do semblante sereno, da cabeça coberta e do crucifixo pendente do pescoço15. O desenho do Museu Mariano Procópio ganha sentido quando o aproximamos da coleção de desenhos de autoria da Princesa Isabel, existente no Museu Imperial16. Constitui-se de aproximadamente 40 desenhos, oriundos da coleção de D. Tereza Cristina, abrangendo um período de dez anos, entre 1857 e 1867, concentrando-se o maior número entre 1863 e 1865. São exercícios de cópia, aparentando certa habilidade. Há dois estudos típicos de partes do corpo: um, apresenta pés calçando sandálias antigas, outro, um braço, cuja mão segura uma lapiseira17. As cópias, segundo os originais identificados, demonstram estarem espelhadas, em processo similar ao desenho do Museu Mariano Procópio, e serem, em alguns casos, recorte da obra original, a exemplo da cópia18 da Madonna della Seggiola, de Rafael Sanzio19, que excluiu a imagem de São João Batista. A cronologia dos desenhos revela a volta a alguns exercícios, talvez visando verificar o avanço técnico, como é o caso dos desenhos de uma jovem com folhas no cabelo, datados de 12 de novembro de 1860 e 23 de fevereiro de 186320, ou de uma mulher de perfil, com véu, datados de 19 de outubro de 1863 e 24 de junho de 186421. 14 Representou jovens, por vezes delicadamente sensuais, com tronco quase de perfil a direcionar levemente o rosto inclinado ao expectador, como se vê na obra Portrait of a girl, with a pot (http://www.1st-art-gallery.com/Constant-Joseph-Brochart/Portrait-Of-A-Girl,-With-A-Pot.html) . Imagem igualmente próxima à estampada por Julien, pelo fato de sua personagem portar um crucifixo ao pescoço. Particularmente sobre esse desenho ver: CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira, Exercícios de desenho no acervo do Museu Mariano Procópio: ser ou não ser a Princesa Isabel? Comunicação apresentada no V Seminário do Museu D. João VI, realizado em agosto de 2014. 15 Agradecemos ao Museu Imperial, particularmente a Maria de Fátima Moraes Argon a possibilidade de estudarmos esses desenhos. 16 17 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MIII-55 e MI-252. 18 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-254. Madonna della Seggiola (Sedia), 1514, óleo s/madeira, diâmetro 71 cm., Galleria Palatina (Palazzo Pitti), Florence. 19 20 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-270 e MI. 21 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-255 e MI-256. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 188 Quanto à temática, em menor número, existem estudos de flores, animais e paisagens, alguns buscando o domínio das cores pela aquarela. Dentre as paisagens, a predileção recai sobre a arquitetura europeia, a exemplo do Chateau de Chillon22, conhecido castelo suíço, que será, uma década após, representado em uma série de pinturas por Gustave Courbet (18191877). Como caso isolado, existe na coleção uma aquarela enfocando a paisagem tropical, uma marinha com bananeira23. Observa-se quanto ao humano, o predomínio da figura feminina e cenas familiares envolvendo crianças. São meigos rostos infantis, como o copiado24 de outra litografia de Julien, agora après Mme. Brune25; crianças abraçando animais ou brincando, a exemplo de Hue! dada26, que Jules Gay esclarece pertencer o original a uma coleção de cenas infantis, Les Mignardises, desenhadas por Desandré, Beaumont e March, litografadas por Regnier, Bettannier e Morlon27. Há mães envolvendo os filhos carinhosamente, seguindo o exemplo da madona de Rafael, ou ensinando-lhes a rezar, como se vê em L’innocent en prière28. Dois desenhos expõem a figura paterna: uma, beijada pelo filho, Bonjour, Petit Père29, outra, sentada, sustentando delicadamente um bebê ao colo30. As narrativas fluem em ambiente rural e simples, onde os afetos, a vida familiar e religiosa são valorizados. Um desenho em particular chama a atenção. Apresenta duas jovens: uma, a tocar piano, outra, debruçada sobre o instrumento31. Ambas olham para a direita, mas apenas veem uma parede forrada por papel estampado com elementos fitomorfos. A atitude das jovens passa a ser compreensível, quando se coteja com o original. Trata-se do quadro em que Isidore Pils (1813-1875) representou Rouget de l’Isle cantando pela primeira vez 22 Museu Imperial, Arquivo Histórico. 23 Museu Imperial, Arquivo Histórico. 24 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-253 e MI-259. 25 Etude aux deux crayons, nº60 26 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-272. GAY, Jules, Iconographie des estampes a sujets galants et des portraits de femmes célèbres par leur beauté. Genève: Chez J. Gay et fils, éditeurs, 1868, p.602. 27 28 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-272. 29 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-261. 30 Museu Imperial, Arquivo Histórico. 31 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-251. Maraliz de Castro Vieira Christo 189 a Marseillaise32. No quadro, as jovens, situadas na extrema esquerda, olham Rouget de l’Isle no centro, a entoar para um atento grupo do lado oposto, observando-se um biombo com elementos fitomorfos ao fundo. À Princesa Isabel não interessou o conteúdo histórico do quadro, destacando apenas os personagens femininos. Para realizar a cópia, curiosamente, a Princesa não inverteu a imagem. Talvez por não copiar uma estampa de estudos, mas a que decorava a casa, trazida pelo Conde d’Eu do palácio de São Cristovão, onde a encontrara, como anotará André Rebouças em seu Diário: “14 de janeiro [1867] – Convidou-me [o conde d’Eu] para assistir ao seu sarau (...) Na sala de estudo da Princesa Imperial, onde se tomou chá, notamos, entre retratos da Família Imperial, o célebre quadro de Rouget de Lisle, improvisando a Marselhesa em Estrasburgo. O Conde d’Eu disse ser entusiasta da Marselhesa, que prefere à fria canção En partant pour la Syrie, da Rainha Hortência; que tinha achado esta gravura no Palácio de São Cristóvão e que não lhe tomava a responsabilidade.”33 O recorte realizado na cópia revela o interesse pela figura feminina, isolando as jovens de cena mais complexa, compositiva e ideologicamente, assim como o fez ao desenhar apenas o menino34, presente no extremo inferior direito, do quadro de Jean-Baptista Greuze, Les oeufs cassés35. Difícil mensurar a representatividade da coleção do Museu Imperial em relação à totalidade da produção artística da Princesa Isabel. Entretanto, percebe-se nítida coerência quanto à temática figurativa. As obras originais copiadas expõem a felicidade da vida familiar em harmonia. Desde o final do século XVIII, avolumam-se as representações da mãe boa e feliz e do pai amoroso, sem refletirem, porém, a realidade social; tampouco ideais comumente aceitos. Manifestam o novo conceito de família desejado pelo iluminismo, contrapondo-se à concepção tradiIsidore Pils. Rouget de l’Isle chantant à la première fois la Marseillaise à l’Hôtel de la Ville de Strasbourg au chez Dietrich, 1849. Musée Historique de la Ville de Strasbourg. 32 REBOUÇAS, André, Diário e notas autobiográficas, p. 144. Apud. LACOMBE, Lourenço Luiz, Isabel, a Princesa Redentora. Petrópolis: Instituto Histórico de Petrópolis, 1989, p. 162. 33 34 Museu Imperial, Arquivo Histórico, MI-266. Jean-Baptista Greuze, Les Oeufs casses, 1756, óleo s/tela, 73 x 94 cm., New York, The Metropolitan Museum of Art. 35 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 190 cional, mediante a qual o casamento significava apenas a descendência, a manutenção de propriedades e privilégios. As relações entre os esposos, pais e filhos eram frias e distantes, baseadas na autoridade. Não se buscava amor e afeto, apenas veneração e obediência. A novidade residia no fato de serem pais e mães conscientes e muito felizes de se verem simplesmente pais e mães, esposos e esposasl36. Artistas como Greuze e Fragonard, ou o menos conhecido Étienne Aubry, divulgaram em suas telas a nova família ambicionada pelo iluminismo37. Se as obras copiadas falam da família feliz, o que nos diz a Princesa Isabel sobre seus próprios sentimentos, ao escolhê-las? O primeiro desenho data de 13 de setembro de 1857 e mostra uma boneca sentada numa cadeira, tema apropriado a uma menina de onze anos. Em 03 de novembro de 1862, encontra-se a primeira representação de uma família, Bonjour, Petit Père, onde o camponês pausa o trabalho para receber, sorridente, o alimento da esposa e o beijo carinhoso da filha pequena. A Princesa estava com dezesseis anos e D. Pedro II intensificava as extensas negociações com membros de dinastias europeias para o seu casamento. Em 15 de outubro de 1864, a Princesa se casou com Gaston d’Orléans, o Conde d’Eu, que conhecera dois meses antes. Era em tudo um casamento tradicional, um negócio de Estado visando a continuidade da dinastia. Entretanto, desde que o conhecera, a Princesa se declarara apaixonada. Roderick Barman, em biografia sobre a Princesa Isabel, pesquisando-lhe a correspondência pessoal, defende a tese de ter sido a Princesa mais preparada para ser mãe e esposa que imperatriz. Sobre o casamento escreveu: A lua-de-mel em Petrópolis inaugurou uma coisa que só se pode definir como uma devoção apaixonada e para a vida toda. Nada na educação da princesa lhe ensinara a igualar o matrimônio ao amor romântico. O imperador, secundado pela condessa de Barral, decerto incentivou a filha a ver no conde d’Eu um príncipe encantado, não uma mercadoria. Não estranha então que, depois de casada, D. DUCAN, Carol, ”Madres felices y otras nuevas ideas en el arte francês del siglo XVIII”. In: REIMAN, Karen Cordero e SÁENZ, Inda (org.) Crítica feminista en la teoría e Historia del Arte. México DF: Universidad Iberoamericana, 2007, p. 197-218. 36 Ver como exemplo as obras: Jean-Baptiste Greuze, La mère bien aimée, 1765, óleo s/ tela, 99 x 131 cm., Madrid, Collection Laborde; Jean-Honoré Fragonard, Le berceau de la famille heureuse, c. 1770, Paris, Coleção Arthur Veil-Picard; Étienne Aubry, L’Amour paternel, 1775, Birmingham, Barber Institute of Fine Arts. 37 Maraliz de Castro Vieira Christo 191 Isabel tenha se apaixonado perdidamente pelo marido. Notável foi a facilidade e a rapidez com que aprendeu a adornar o matrimônio com os conceitos e a linguagem do amor romântico. Convenceu-se a si mesma de que, desde o começo, aquela fora uma verdadeira união de corações, na qual ela exercera a escolha38. O autor, consultando-lhe apenas a correspondência, afirma que “Nada na educação da princesa lhe ensinara a igualar o matrimônio ao amor romântico.” Entretanto, os desenhos permitem-nos atenuar essa afirmação. Os desenhos da Princesa, no Museu Imperial, atestam sua identificação com o modelo de família baseado na harmonia, na aceitação feliz dos papeis de esposa e mãe, que vinha sendo construído desde o final do século XVIII. Sua religiosidade igualmente corrobora tal aproximação. O sentimento religioso conservador e exacerbado, manifesto pela Princesa Isabel, foi apontado pelo movimento republicano como um dos empecilhos para o Terceiro Reinado. Robert Daibert Jr, ao analisar a presença de uma religiosidade católica na identidade e nas práticas de D. Isabel, sintetiza: Como católica fiel, suas crenças orientavam coerentemente sua conduta. Pelo menos era assim que ela se auto definia e se apresentava.39 O mesmo autor, ao indagar sobre as possíveis origens de sua forte religiosidade, nos fala da relação desde a infância com religiosos; dos exercícios de ortografia e caligrafia realizados, quando menina, a partir da cópia de textos de conteúdo religioso; das redações, em que a Princesa valorizava os governantes devotados ao exercício da caridade, ou apresentava o catolicismo como portador de uma verdade universal, solução para os erros do mundo moderno; das cartas escritas para a mãe, D. Teresa Cristina, em que relata o cotidiano de suas práticas devocionais.40 BARMAN, Roderick J. Princesa Isabel do Brasil. Gênero e poder no século XIX. Editora UNESP, 2005, p.95. (Grifos nossos) 38 DAIBERT JR., Robert. Princesa Isabel (1846-1921):A “política do coração” entre o trono e o altar. Rio de Janeiro, 2007 (Tese de doutorado, História Social, UFRJ), p. 44. 39 40 DAIBERT JR., idem., p. 101-102. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 192 Desenho e pintura na vida da Princesa As aulas com Mariano José de Almeida terminaram ao casar-se a Princesa Isabel com o Conde d’Eu. Entretanto, o gosto pelo desenho e pela pintura permaneceu. Em viagem à Inglaterra, em 1865, ainda em lua-de-mel, a princesa teve aulas de pintura com o italiano Domenico Morelli (1826-1901), professor de Marguerite d’Orléans, sua nova cunhada, e fez inúmeras visitas a galerias de arte e a museus41. De volta ao Rio de Janeiro, estudou com Victor Meirelles até 1867. Diversos eram os destinos das cópias produzidas. Algumas foram utilizadas na decoração do Paço Isabel, sua residência em Laranjeiras42. Francisco Marques dos Santos, em trabalho relativo ao leilão dos bens encontrados no Paço de São Cristovão, após o banimento da família imperial, publicado no Anuário do Museu Imperial, em 1940, informa sobre a existência de cópias da Princesa na residência de seu pai. Descrevendo os objetos presentes em cada cômodo, o autor apresenta a sala anterior à de D. Teresa Cristina: “Na ante-sala estavam dois quadros a óleo representando, no tamanho natural, D. Pedro e Dona Tereza, em 1844. Junto destacava-se outro: pequena cópia do “Enterramento de Cristo”, feito pela Princesa Isabel, aliás, ótima desenhista e pintora, discípula de Mariano José de Almeida e que, na Exposição da Academia de Belas Artes, em 1867, apresentara, sem que o soubessem os visitantes, três belos quadros a óleo”. Consultando o catálogo da Exposição Geral de Belas Artes de 1867, verifica-se que, sob a referência Sem nome de autor, foram expostos três trabalhos enviados pela Princesa Isabel: “0120/015 Paisagem da Escócia. Propriedade: Sua Majestade Imperial (exposto por Sua Alteza Imperial Dona Isabel) 0121/015 Cães de caça. Propriedade: Sua Majestade Imperial (exposto por Sua Alteza Imperial Dona Isabel) Carta de D. Isabel a D. Teresa Cristina, sem local, 21/09/1870.Arquivo Grão Pará (XLI4-13), citado por BARMAN, op.cit., p. 104, e ARGON, op. cit., p.106. 41 42 BARMAN, op. cit., p.123. Maraliz de Castro Vieira Christo 193 0122/015 O acordar. Propriedade: Sua Alteza Real o Conde d’Eu (exposto por Sua Alteza Imperial Dona Isabel)”43. Lendo outra carta da Princesa ao pai, datada de 14 de junho de 1867, a autoria das obras enviadas às EGBA confirma-se: “Veio cá hoje o Victor Meirelles para nos convidar a ir às Bellas Artes e me pedir que expusesse algumas das minhas pinturas, este ano havendo muitas de amadores. Se Papai não acha isso má eu lhe pediria que mandasse pelo portador desta carta os cães de caça e a paisagem escocesa que lhe fiz. Uma vez que se expõe alguma coisa é melhor expor uma coisa bem feita, e feita só pela pessoa.”44 Além de confirmar a autoria das obras, a carta revela-nos partir o convite do pintor da Academia Imperial de Belas Artes, Victor Meirelles, nesse momento professor da Princesa. Igualmente, mostra-nos a participação feminina nas EGBA, na classe das amadoras, e a preocupação da Princesa com a imagem pública, ao perguntar ao pai sobre a conveniência de expor seus trabalhos. Demonstra atenção com a qualidade das pinturas e sua exclusiva autoria, embora ainda sejam um exercício de cópia. Embora não tenhamos a resposta do Imperador à solicitação da filha, o fato desta ter exposto as obras como de sua propriedade, mas anônimas, permite depreender a resposta, em parte negativa, e o desejo de manter as habilidades artísticas da Princesa Imperial restritas ao mundo doméstico. A Academia Imperial de Belas Artes acolheu os trabalhos da Princesa Isabel nas EGBA apenas como um sinal de respeito: O extremo respeito e acatamento que deve e consagra a Comissão a Sua Alteza Imperial a Sra. D. LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Período Monárquico. Catálogo de artistas e obras entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1990, p. 207-8. 43 “Carta da Princesa Isabel ao Imperador D. Pedro II”. Rio de Janeiro, 14 de junho de 1867. Arquivo do Grão-Pará. Correspondência Ativa de Dona Isabel Cristina, Princesa Imperial e Condessa d’Eu. Pasta XL, item 2. Aput. DAIBERT JR., Robert. Isabel, a “Redentora de escravos”: uma história da Princesa entre olhares negros e brancos (1846-1988). Bauru, SP: EDUC, 2004, p. 91-92. 44 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 194 Isabel, também não permitem analisar os quadros números 120 e 121, nem o desenho número 122, executados e expostos por Sua Alteza Imperial45. A princesa realizava cópias e se orgulhava de expô-las no âmbito privado, no Paço Isabel, em Laranjeiras, ou na residência dos pais, o Palácio de S. Cristovão, como também mostrava-as em eventos beneficentes46 ou, anonimamente, no maior evento de artes do país, as exposições promovidas pela Academia Imperial de Belas Arte. Considerações finais Os desenhos nos revelam a educação refinada da elite feminina da época, o gosto da Princesa pelas artes plásticas e como elas se inseriram em sua vida pessoal, ocupando-lhe o tempo, decorando-lhe a casa e servindo para presentear amigos muito próximos, como a Baronesa de São Joaquim, possuidora do desenho exposto no Museu Mariano Procópio. São cópias e, como tais, não expressam a criatividade da Princesa Isabel. Entretanto, nos permitem indagar sobre as escolhas, sobre a temática privilegiada e seu significado. Quem selecionou as estampas a serem copiadas, seu professor ou ela mesma? Copiar estampas era uma forma de serem transmitidos valores à Princesa, a exemplo dos textos que copiara, quando menina, durante os exercícios de ortografia e caligrafia? Elegia D. Isabel as estampas de acordo com a própria visão de mundo, tendo em vista que a temática a acompanhou para além do período de aprendizagem com José Mariano de Almeida? Difícil saber, mas tendemos a aceitar que os desenhos manifestam uma forma de pensar, plasmada anteriormente. Seja como for, os desenhos valorizam a harmonia familiar, os papéis a desempenhar como esposa e mãe, coadunados perfeitamente à religiosidade, que a norteou ao longo da vida. Livro 4 de Atas da Academia Imperial de Belas Artes, p. 85 v. Sessão de 03/07/1867. Museu D. João VI. Pesquisa devida ao Prof. Donato de Melo Júnior. Cit. por LACOMBE, Lourenço Luiz, Isabel, a Princesa Redentora. Petrópolis: Instituto Histórico de Petrópolis, 1989, p. 163. 45 Carta de D. Isabel a D. Teresa Cristina, sem local, 17/12/1870. Arquivo Grão Pará (XLI3-15). Cit. por ARGON, op. cit., p.106. 46 Maraliz de Castro Vieira Christo 195 Bibliografia e fontes Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro - 1844 a 1885. ARGON, Maria de Fátima Moraes, “O mestre de pintura da princesa regente”. In: TURAZZI, Maria Inez, Victor Meirelles, novas leituras. Florianópolis, SC: Museu Victor Meirelles/IBRAM/MinC; São Paulo: Studio Nobel, 2009. BARMAN, Roderick J. Princesa Isabel do Brasil. Gênero e poder no século XIX. Editora UNESP, 2005, CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira, Exercícios de desenho no acervo do Museu Mariano Procópio: ser ou não ser a Princesa Isabel? Comunicação apresentada no V Seminário do Museu D. João VI, realizado em agosto de 2014. Correspondências de Félix Émile Taunay para o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, datadas de 07 de junho de 1845 (UFRJ-P47/ s/n-s/n), 08 de setembro de 1845 (UFRJ P48/395-395) e 29 de junho de 1849 (UFRJ-P48/394-394). Certificado datado de 30 de outubro de 1863 (UFRJ-015/ s/n-s/n). DAIBERT JR., Robert. Isabel, a “Redentora de escravos”: uma história da Princesa entre olhares negros e brancos (1846-1988). Bauru, SP: EDUC, 2004. DAIBERT JR., Robert. Princesa Isabel (1846-1921):A “política do coração” entre o trono e o altar. Rio de Janeiro, 2007 (Tese de doutorado, História Social, UFRJ). DUCAN, Carol, ”Madres felices y otras nuevas ideas en el arte francês del siglo XVIII”. In: REIMAN, Karen Cordero e SÁENZ, Inda (org.) Crítica feminista en la teoría e Historia del Arte. México DF: Universidad Iberoamericana, 2007, p. 197-218. GAY, Jules, Iconographie des estampes a sujets galants et des portraits de femmes célèbres par leur beauté. Genève: Chez J. Gay et fils, éditeurs, 1868. LACOMBE, Lourenço L. “A educação das princesas”. Anuário do Museu Imperial, v.7, 1946, p. 255-257. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 196 LACOMBE, Lourenço Luiz, Isabel, a Princesa Redentora. Petrópolis: Instituto Histórico de Petrópolis, 1989. Les expressions des passions de l’âme, représentées en plusieurs testes gravées d’après les dessins de feu. M. Le Brun. LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Período Monárquico. Catálogo de artistas e obras entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1990. MORAES, Frederico de. Cronologia das artes plásticas no Rio de Janeiro: da missão artística francesa à geração 90.Topbooks, 1995. Nomeacão de Mariano José de Almeida a Mestre de Desenho de S.A. Imperiais. 1-8-1860. (1 doc. 4 ans. 5 fls.) Publicações do Arquivo Nacional - Volumes 39-40 - Página 63, Officinas Graphicas do Arquivo Nacional, 1957. Maraliz de Castro Vieira Christo 197 Figura 1 Princesa Isabel (1846-1921), Retrato, 15 de outubro de 1863. Desenho, técnica mista, papel, crayon, grafite e lápis de cor, 42 x 52 cm. MMP História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 198 Figura 2 Cours elémentaire, nº 160. Estampa litografada por Julien e impressa por François Delarue, em Paris, après Brochart. Maraliz de Castro Vieira Christo 199 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 200 coleções e museus A propósito da coleção do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro: Reflexões sobre a escultura brasileira oitocentista Alberto Martín Chillón Doutorando no programa de pós-graduação em Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista de pesquisa do PNAP, Fundação Biblioteca Nacional. Como bem afirma o catálogo do acervo do Museu Nacional de Belas Artes, a configuração da coleção de escultura do século XIX não resultou de uma politica artística governamental ou da própria Academia, originadora do núcleo artístico fundador da coleção, nem de uma série de aquisições programadas ou relativas aos desejos museológicos e expositivos da instituição, mas de “obras acumuladas no início do ensino oficial da arte, com os acréscimos eventuais, institucionais na sua maioria, e particulares, situação nunca modificada desde o início do século XIX até hoje”1. A coleção do Museu Nacional de Belas Artes pode ser considerada como a mais importante coleção de escultura imperial brasileira, ainda que poucas de suas peças possam ser exibidas. Sem dúvida a maior coleção do país, originada no centro artístico mais importante do Império, a Academia Imperial de Belas Artes, tem muito a dizer sobre o período, os artistas, as políticas culturais, o mecenato e outros múltiplos aspectos. Assim, nesta comunicação pretendemos realizar uma aproximação à dita coleção além de tratar de entendê-la como um documento excepcional sobre a escultura brasileira imperial, desde sua origem na Academia Imperial de Belas Artes, depois Escola Nacional de Belas Artes, que anos depois, em 1937, sofrerá uma divisão para formar duas coleções: a do Museu dom João VI e a do Museu Nacional de Belas Artes. Em um primeiro momento, ainda na Academia de Belas Artes, podemos falar do labor colecionador do acaso e do tempo, um pequeno agrupamento de “peças criadas por professores e alunos, deixadas no prédio por LUSTOSA, H (coord.). “Acervo Museu Nacional de Belas Artes”. São Paulo: Museu de Belas Artes, 2002, pág. 96. 1 201 razões desconhecidas”2. De acordo com o catálogo descritivo das obras de pintura e escultura de 18933, sob a presidência do escultor Rodolpho Bernardelli, somente constam sete esculturas, todas elas de Bernardelli, e um busto original de Antinoo, o que resulta estranho, pois, ainda que a Academia não se caracterizou por um forte interesse colecionador, seria impensável considerar que, até a chegada de Bernardelli, a instituição apenas guardasse uma escultura, aspecto este reforçado na leitura do catálogo de 19234, no qual são registradas 65 esculturas e 56 moldagens em gesso. Destas peças, numa revisão dos catálogos da Academia, podemos rastrear a presença de algumas dos irmãos Marc e Zéphyrin Ferrez, como, por exemplo uma escultura em terracota representando América com seus atributos, situada no vestíbulo5; de Marc Ferrez, o Busto de dom Pedro I, o Busto da baronesa de Sorocaba e dois Medalhões em gesso com os retratos de Martim Francisco Ribeiro e Carlos de Andrada Machado; e somente de autoria de Zéphyrin Ferrez, os modelos em cera sobre placa de louça para as Medalhas da Academia, com a imagem do imperador, e o Busto de D. Pedro II, 1846, fundida em bronze em Paris por Peulvé. Outras obras de professores da Academia apareciam nas coleções, como as de Francisco Manoel Chaves Pinheiro ou Honorato Manoel de Lima: o primeiro com uma figura de José Bonifácio e a estátua equestre do Imperador dom Pedro II na rendição de Uruguaiana, doada em 1870 pelo escultor; e o segundo com um Busto de Domingos Jose Gonçalves de Magalhaes. Outros escultores professores também doaram suas obras, como a Herma de homem, de José da Silva, 1858. Além das obras dos professores, existem outras de grandes escultores não ligados à Academia, como o Relevo de José Clemente Pereira, de Ferdinand Pettrich e a imponente efigie em mármore de Dom Pedro I, 1828, obra em mármore de Francesco Benaglia. Outras obras chegaram à Academia através dos envios ou encomendas aos seus pensionistas, dos que somente três viajaram na modalidade de escultura: Francisco Elídio Pânfiro, que não aparece representado na coleção, pelo menos a exibida, Cândido Caetano Almeida Reis, com seu envio de primeiro ano, O Paraíba, 1866, e Rodolfo Bernardelli, com suas obras A 2 LUSTOSA, Op. Cit: pág. 98. “Catálogo explicativo das obras expostas nas galerias da Escola Nacional de Bellas Artes”. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Belas Artes, 1893. 3 “Catálogo geral das galerias de pintura e de esculptura da Escola Nacional de Bellas Artes”. Rio de Janeiro, O Norte, 1923 4 5 LUSTOSA, Op. Cit: pág. 98 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 202 Faceira, 1880, Vênus Calipigia, 1882, Vênus de Médicis, 1885, e Cristo e a adúltera, 1884. Também Manuel de Araújo Porto-Alegre, em 1857, solicitou ao governo a compra de 20 estátuas e várias moldagens em gesso com fins didáticos. Esta preocupação pela compra de moldagens em gesso será contínua e constituirá uma coleção escultórica muito mais estruturada, respondendo a uma ideologia e necessidades básicas num estabelecimento acadêmico, o aprendizado dos modelos clássicos e renascentistas. Assim, uma das primeiras compras da Academia seria precisamente a coleção de gessos de Marc Ferrez, trazida junto com ele da Europa, e que foi adquirida pelo mesmo preço que o escultor pagou, em pequenas quotas mensais extraídas do reduzido orçamento para despesas miúdas. O diretor «julgou indispensável fazer a compra da nova coleção de gessos que se vê exposta na Classe de Escultura, entre os quais contam-se: o Gladiador inteiro, o tronco do Laocoonte, e muitos bustos formosos»6. Já em 1859, o diretor Tomaz Gomes dos Santos assinala a importância dos modelos para diversas aulas da Academia, importância e necessidade reconhecida também pelo Governo, e solicita novos “modêlos de gêsso antigo; pois que os que possui a Academia, além de serem poucos, estão muito estragados pela poeira, pela humidade e pelo uso”7, modelos que deveriam vir de Paris. No ano de 1860, entraram na Academia Laocoonte e seus filhos, Antinoo do Capitólio, Amazona e Adonis, restaurados pelo escultor Quirino Antonio Vieira8. Em 1866 chegou uma nova coleção de estátuas em gesso, moldagens de obras clássicas, que foi muito criticada por Chaves Pinheiro, que afirma que são obras moldadas sobre cópias infelizes de originais antigos; outras, vazadas em fôrmas já cansadas, gastas, e que apresentam defeitos9. Uma parte dos gessos hoje existentes no Museu provém de uma doação pessoal do imperador, que Chaves Pinheiro restaurou em 1877. No momento, não sabemos se todas as peças provenientes de Paris que chegaram em 1877, um dos grupos mais numerosos que entraram na coleção, seriam todas uma doação do imperador, ou só uma parte delas. Já em 1878, GALVÃO, A. Notas sobre as moldagens em gêsso da ENBA da UB. Peças preciosas da coleção escolar. Arquivos da escola de Belas artes, 1957, pág. 128. 6 7 Ibid: pág. 129. 8 Ibid: pág. 130. 9 Ibid: pág. 130. Alberto Martín Chillón 203 Chaves Pinheiro restaurou outras obras como O centauro e o amor, o Fauno tocando flauta, a Estátua de Antínoo, a Estátua do Discóbolo, a Venus de Milo, a Diana caçadora, Os lutadores, e o Apolo sauroctono, entre outros. A própria imperatriz também doaria, em 20 de julho de 1880, a única peça clássica original da coleção, o Busto de Antínoo com atributos de Baco, encontrado nas escavações perto de Roma. As doações foram uma das principais fontes de entrada de peças. Uma das maiores doações para as coleções de escultura foi a do pintor Henrique Bernardelli, quem doou quase 300 obras do seu irmão, Rodolpho Bernardelli, dentre elas 14 estátuas, 56 estatuetas, 31 bustos, 17 medalhões, 32 relevos, além de maquetes, telas e desenhos10, que constituem o maior volume na coleção. Posteriormente, em 1951, foram doadas duas obras de Chaves Pinheiro por Elio Pederneiras, a Alegoria do Império Brasileiro e Ceres e, em 1985, foi doado, por uma descendente do escultor José Berna, o busto em mármore de Zacarias de Goes e Vasconcelos. Da mesma forma, obras de Almeida Reis chegaram ao Museu por doação. O positivista Generino dos Santos, guardião da obra do escultor após sua morte, no seu testamento, manda fundir em bronze Dante ao voltar do exílio e Alma Penada11, hoje na Galeria do século XIX, e as doa à Escola Nacional de Belas Artes em 193312. Além dessas obras, doaria todas as obras do escultor conservadas por ele, dentre elas dois modelos de caboclos em madeira, os fragmentos dO Crime ou Expiação. De grande importância para a coleção foi a grande Exposição de arte contemporânea e retrospectiva, que teve lugar no dia 13 de novembro de 192213, numa época de recuperação da arte imperial, quando algumas peças foram fundidas em bronze como O Paraíba, de Almeida Reis, ou Santo Estevão e Martyrio de S. Sebastião, de Rodolpho Bernardelli,14 conservadas em gesso até esse momento. Nesta exposição figuraram também várias obras de Correia Lima e a Maquete do monumento a dom Pedro I, de Louis Rochet, adquirida em 1882. Posteriormente, em 2009, foi adquirido o Busto 10 “Galeria Irmaos Bernardelli”. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes. [194-]. SANTOS, G, R. dos. “O estatuário brasileiro C. C. Almeida Reis”, vol. VII do Espólio literário de Generino dos Santos: Humaniadas: o mundo, a humanidade, o homem. Rio de Janeiro: Editor Typ. do Jornal do commercio, 1938, pág. 197. 11 12 SANTOS, Op. Cit: pág. 50. 13 O Paiz, 15 de novembro de 1922. 14 O Paiz, 5 de março de 1921. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 204 de Marc Ferrez em gesso, modelo do realizado em mármore por Honorato Manoel de Lima, conservado no Museu dom João VI. Precisamente Honorato Manoel de Lima, professor de escultura de ornatos da Academia, e especialmente este retrato do seu mestre Marc Ferrez, assinalado como o primeiro escultor brasileiro por seu domínio do mármore, foi o protagonista de um dos primeiros textos sobre escultura: um texto publicado na Illustração Brasileira em 185415, O novo estatuário, obra de Manuel de Araujo Porto-Alegre, quem pretende criar um texto fundador em vário sentidos. O desejo de outorgar o título de primeiro escultor brasileiro foi uma constante na genealogia da escultura imperial e foi outorgado em várias ocasiões, ao mestre Valentim, a Ferdinand Pettrich, a Honorato Manoel de Lima, a Almeida Reis e a Rodolfo Bernardelli. Muitas outras vezes foram nomeados os primeiros escultores, dignos desse nome, em terras brasileiras. Sobre Almeida Reis, em 1870, lia-se na imprensa da época: “Se até agora não tinhamos um digno representante na estatuaria, podemos de hoje em diante affirmar que encontramos um homem”16. O caráter renovador e moderno será um fato decisivo na hora de nomear o primeiro escultor brasileiro. Assim, do mesmo modo que Honorato Manoel de Lima se destacava por seu domínio da nova técnica, Almeida se destacava por seu caráter, segundo a crítica, antiacadêmico e moderno, destacado especialmente na sua obra prima, O Paraíba, 1866. O mesmo aconteceria anos depois com o jovem Rodolpho Bernardelli, considerado como o verdadeiro renovador da escultura brasileira, apresentado como inovador, um artista livre das prescrições e das normas acadêmicas17, que se constituiu como um ponto de inflexão, um ponto de ruptura, o iniciador de uma nova escola. Igualmente ao Busto de Marc Ferrez e aO Paraíba, Cristo e a mulher adúltera “inaugurou uma nova era para a escultura no Brazil, já que até esse momento só haviam existido reproduções de modelos clássicos, seguindo a arte grega”18. O academismo ou classicismo será o elo condutor do desenvolvimento da escultura carioca, fosse destacando ou atacando os preceitos clássicos. E precisamente esse conceito nos leva ao que tradicionalmente se considera 15 Illustração Brasileira, julho de 1854, pp. 139-141. 16 MORAES FILHO, M. A Reforma, 18 de março de 1870. DAZZI, C. O moderno no Brasil ao final do século 19. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 11, 2012, pág. 91. 17 18 O Paiz, 21 de novembro de 1885. Alberto Martín Chillón 205 como um ponto chave na arte brasileira, a criação de um ensino regrado e a Academia de Belas Artes sob os moldes europeus, com a chegada da conhecida como Missão Francesa, em 1816, que grande parte da historiografia considerou como uma espécie de início da arte brasileira. Este início se reflete também na lógica expositiva da coleção, que quase começa com as obras da Missão, excetuando as poucas talhas religiosas em madeira adquiridas a finais do século XX. A preocupação pela escultura brasileira anterior à Missão Francesa foi inaugurada por Manoel de Araujo Porto-Alegre, a grande figura na formação da arte nacional, quem, apenas dois anos depois do Novo estatuário, dentro da Iconographia brasileira, pensada como uma série de imagens junto com apontamentos biográficos com a intenção de criar um pensamento nacional, começada em 1852, dedicou um texto ao Mestre Valentim, na revista do Instituto Histórico Brasileiro. Araujo resgata a figura de Valentim de Fonseca e Silva, representante da “arte borromínica”, cuja recuperação teria sido impossível apenas 15 anos atrás “sem desafiar os animos d´aquelles que seguiram a escola chamada clássica”19. Assim, Araujo se ocupa de reclamar o lugar do mestre Valentim, junto com outro artistas cariocas, na história da escultura brasileira, na procura de uma arte autenticamente nacional, destacando, em contraposição, a escassa atenção que Araujo dedica aos integrantes da Missão Francesa. A construção do nacional e o denominado «projeto civilizatório», intimamente ligados, são uma das principais ideias que aparecem no estudo da arte e da escultura brasileira. Já desde seus inicios, a Academia foi uma ferramenta de civilização e progresso. Nesta preocupação do Império as artes terão um papel fundamental, por ser fonte de riqueza, já que as Belas Artes eram «o influxo de todas as industrias, as bases de toda a perfeição manufactureira»20, e seriam as geradoras da indústria, por sua vez geradora do comércio. O mais importante defensor desse projeto, que procurava equiparar o Brasil com os países civilizados, seria o próprio imperador, empenhado na reforma intelectual. Este desejo será de extrema importância no estudo da escultura imperial, uma vez que orientará o rumo da escultura quase até finais do Império, e dele se derivarão vários problemas e traços definidores desta arte. 19 PORTO-ALEGRE, M. Iconographia Brazileira. Revista do Instituto histórico e Geographico do Brazil, tomo XIX, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1856, pp. 369-370. 20 O Brazil Artístico, 1857, pp. 17-18. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 206 Em um primeiro momento, a Missão Francesa foi uma resposta a esta necessidade, criando a Academia de Belas Artes. No entanto, este primeiro período se caracteriza por um caráter mais efêmero, como bem assinala Porto-Alegre, para quem esta época produziu vários “trabalhos plásticos que havião figurado nas festas nacionaes, porém estes fructos de uma pompa transitoria não havião deixado nada de permanente, nem fixado sobre o solo um pensamento nobre e duravel como os trabalhos da actualidade”21. Estes trabalhos da atualidade aos que se refere o autor faziam parte de um projeto ou iniciativa22 desenvolvida entre a década de 40 e de 60 para erigir uma série de monumentos, inspirados em grande parte por ele mesmo, com o apoio político de José Clemente Pereira, e que se iniciou com a chegada do escultor alemão Ferdinand Pettrich. Neste projeto, o labor do escultor seria fundamental, pois seria o estatuário “quem demonstra ao mundo intelligente o estado moral do povo para quem elle trabalha; se opera para immortalisar o heroismo, ou outra virtude social, a sua obra magnifíca o paiz em que elle está, exorna o solo em que se mostra, e ensina na praça publica o culto de todos os dotes da moral eterna”23. O estatuário se converte num historiador, “o historiador do passante, do peregrino e do povo” e “a sua obra domina o pedestal em que repousa, extorna o nicho em que se eleva, ennobrece os typanos que anima, e sagra os altares em que colloca as suas magestosas representações”24. “As estatuas individualisam as grandes virtudes, e os escriptos as generalisam e perpetuam”25. Uma vez realizadas as obras de Pettrich na Santa Casa da Misericórdia, destacáveis por inaugurar uma nova época na arte e na civilização, era necessário dar um passo a mais, logrando erigir o primeiro monumento público, já que “o vento que lava a estatua do heróe na praça publica, leva em si aos confins do império um fluido regenerador, um principio vital mais amplo, mais universal do que aquelle que respiramos no ar do interior de um edificio, como o da santa casa, ou do hospicio Pedro II, onde em breve PORTO-ALEGRE, M. O Novo estatuário. Illustração Brasileira, julho de 1854, pp. 139141. 21 MIGLIACCIO, L. A escultura monumental no Brasil do século XIX. A criação de uma iconografia brasileira e as suas relações com a arte internacional. Anais do XXIII Colóquio do Comité Brasileiro de História da Arte, 2003, pág. 240. 22 23 PORTO-ALEGRE, 1854, O novo estatuário, Op. Cit: pág. 353. 24 Ibid: pág. 353. 25 Ibid: pág. 353. Alberto Martín Chillón 207 se collocará em marmore o resumo historico do provedor José Clemente Pereira”26. A estátua equestre de dom Pedro I era “a primeira pagina solemne que a cidade e provincia do Rio de Janeiro offerecem para a edificação do futuro, e testemunho de gratidão nacional”27. O escultor se converte no “traductor da gratidão nacional, o ostentor da gloria, o que perpetua a memoria do homem, e o que o immortalisa”28. Este projeto civilizatório derivará em várias questões relevantes para a escultura. A necessidade de produzir e dominar os materiais nobres da escultura, mármore e bronze, dominará grande parte das preocupações artísticas e políticas, levando o governo a “importar” escultores estrangeiros, o que provocará uma reação nacional em defesa dos artistas, materiais e indústria local, uma tensão que dominará grande parte da cronologia imperial. Araujo Porto-Alegre destaca esta importância, assinalando como, até a chegada de Ferdinand Pettrich, o cetro da estatuária não estava no Brasil, já que todas as obras coloniais e do primeiro reinado vieram do estrangeiro, e o país contava com poucas obras em mármore, trazidas pelos esforços individuais do imperador, com a falta de um gosto e de um mercado local. Neste momento, segundo Araujo, começaram “as primeiras negociações entre Carrara e o Brasil, entre a arte americana e a Italia; principou esse commercio de marmores, que na estatistica das nações civilisadas demonstra o grau de perfeição da esculptura e da industria, e que hoje denota um seguro estado de civilisação”29. Não à toa o grau mais elevado da produção escultórica seria o de estatuário, o homem do mármore e do bronze, o que motivaria que muitos dos estatuários fossem chamados do exterior, como o caso de Luigi Giudice, outro importante escultor oitocentista, encarregado junto com outros três artistas genoveses de localizar e explorar os recursos nacionais de mármore e que acabará realizando outras obras escultóricas, diante do fracasso do projeto. Também Leon Despres de Cluny, francês, Camillo Formilli e José Berna, italianos, ou Blas Crespo Garcia, espanhol, 26 PORTO-ALEGRE, 1856, Op. Cit: pág. 352. 27 Ibid: p. 352. 28 PORTO-ALEGRE, 1856, Op. Cit: pág. 352 PORTO-ALEGRE. M. Apontamentos sobre os meios práticos de desenvolver o gosto e a necessidade das Belas Artes no Rio de Janeiro, feitos por ordem de Sua Magestade Imperial o senhor dom Pedro II, imperador do Brasil, pág. 33. In: MELLO JÚNIOR, D. Manuel de Araújo Porto-alegre e a Reforma da Academia Imperial das Belas Artes em 1855: a Reforma Pedreira. Revista Crítica de Arte, n.4, 1981, pp. 139-140. 29 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 208 se assentaram durante maior ou menor tempo em terras cariocas por conta do domínio do mármore. Esta hegemonia provocaria uma forte resposta nacional, que se sentia especialmente desprotegida frente às encomendas estrangeiras, que já assinala Porto-Alegre, quando apresenta o novo estatuário Honorato Manoel de Lima, que, uma vez alcançada a destreza no material, só esperava as encomendas dos brasileiros. Uma situação na qual «o próprio Govêrno manda vir da Europa estátuas e outros objetos para ornar os jardins e edifícios públicos; os monumentos nacionais são arrematados por artistas estrangeiros e executados na Europa»30, como o monumento a dom Pedro I, fundido na França por Rochet, da mesma forma que o monumento a José Bonifacio, anos depois. Como parte desse projeto nacional, estava a necessidade de construir uma imagem, mas feita por nacionais, e solucionar a situação na qual “a maior parte dos nossos jovens conhecem mais as riquezas e as tradições alheias do que as proprias; conhecem mais os individuos estranhos do que os nacionaes”31. A modo de conclusão, podemos dizer que a coleção de escultura do Museu Nacional de Belas Artes supõe um documento excepcional para entender o panorama escultórico do século XIX, ainda mais levando-se em consideração a escassa conservação das criações oitocentistas, em sua maioria realizadas em gesso, que, pela fragilidade do material somado ao desinteresse para a sua conservação e o escasso mercado, fez com que as peças conservadas não fossem muitas, e raramente obras de grande porte e grupos. A coleção, formada em origem pelas obras da antiga Academia Imperial, sem uma lógica colecionadora definida, foi sendo complementada com a recuperação posterior da arte imperial, fundindo em bronze várias peças e resgatando muitas outras que se encontravam disseminadas pela cidade, para posteriormente incluir algumas peças anteriores à Missão Francesa, estabelecendo um percurso expositivo desde a arte colonial até a figura de Bernardelli, que cria um ponto de inflexão na produção escultórica, dando passo à galeria de arte brasileira moderna e contemporânea. A compreensão da coleção e da escultura resultaria impossível sem entender algumas das preocupações da época, que tentamos ilustrar aqui, como o projeto civilizatório e suas repercussões artísticas, com as iniciativas AZEVEDO, M. “O Rio de Janeiro. Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades”. Rio de Janeiro: Garnier, 1877, pág. 198. 30 31 PORTO-ALEGRE, Op. Cit: p. 352. Alberto Martín Chillón 209 de Manuel de Araujo Porto-Alegre, e sua reflexão, sobre a escultura e seus artífices e seu papel para a sociedade e para a nova nação, que marcaria a escultura. São importantes as necessidades imperiais para, além de civilizar, criar uma imagem e uma consciência nacional coletiva, na qual a escultura teve um papel principal, e como esta necessidade definiu a escultura por sua necessidade de mão-de-obra qualificada que dominasse os materiais nobres, criando una situação paradoxal: a criação de uma imagem nacional com materiais e escultores estrangeiros, que provocou amplas reações em defesa, justamente, do nacional. Bibliografia AZEVEDO, M. “O Rio de Janeiro. Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades”. Rio de Janeiro: Garnier, 1877. DAZZI, C. O moderno no Brasil ao final do século 19. Revista de História da Arte e Arqueologia , v. 11, 2012. GALVÃO, A. Notas sobre as moldagens em gêsso da ENBA da UB. Peças preciosas da coleção escolar. 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Revista do Instituto histórico e Geographico do Brazil, tomo XIX, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1856. SANTOS, G, R. dos. “O estatuário brasileiro C. C. Almeida Reis”, vol. VII do Espólio literário de Generino dos Santos: Humaniadas: o mundo, a humanidade, o homem. Rio de Janeiro: Editor Typ. do Jornal do commercio, 1938. “Catálogo explicativo das obras expostas nas galerias da Escola Nacional de Bellas Artes”. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Belas Artes, 1893. “Catalogo geral das galerias de pintura e de esculptura da Escola Nacional de Bellas Artes”. Rio de Janeiro, O Norte, 1923. “Galeria Irmaos Bernardelli”. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes. [194-]. Illustração Brasileira, julho de 1854. O Paiz, 21 de novembro de 1885. O Brazil Artístico, 1857. O Paiz, 15 de novembro de 1922. O Paiz, 5 de março de 1921. Alberto Martín Chillón 211 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 212 coleções e museus Visconti nos acervos museológicos do Brasil Mirian Nogueira Seraphim Pesquisadora. Comitê Brasileiro de História da Arte Brasileiro por escolha, o pintor nascido na Itália, Eliseo d’Angelo Visconti (1866-1944), tem obras suas conservadas em diversos acervos públicos, espalhados por pelo menos dez estados brasileiros e mais o Distrito Federal. Embora ainda não tenha recebido a justa homenagem de um museu dedicado exclusivamente ao seu trabalho, nem alcançado uma representatividade à altura do seu talento, pode-se dizer que o acervo público de Visconti é bastante característico dos diversos problemas, infelizmente encontrados na maioria desses acervos, especialmente nos museológicos. O maior acervo público de Visconti é de longe o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro, que conta com 26 pinturas a óleo, incluindo algumas de suas obras-primas, além de onze trabalhos em outras técnicas. É também neste museu que se encontra a maioria dos casos significativos de situações problemáticas, algumas remontando quase aos primórdios da instituição. O acervo do Museu Nacional de Belas Artes foi inicialmente constituído pelo conjunto de obras trazidas pela Missão Artística Francesa em 1816 e pelos quadros particulares da Família Real portuguesa que vieram para o Brasil entre 1808 e 1821. A essas obras se juntaram aquelas produzidas por professores e alunos da Academia Imperial de Belas Artes, inaugurada em 1826. Este conjunto de obras constituirá primeiramente o acervo da Pinacoteca da Academia, que será herdado pela Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), quando instituída em 1890, então com seu volume ampliado através de aquisições e doações dos trabalhos que se destacavam nas exposições de belas artes, iniciadas em 1829, e pelos concursos de prêmio de viagem, a partir de 1845. Visconti participou da última exposição organizada pela Academia, em final de março de 1890, depois de seis anos de interrupção. 213 O catálogo da mostra de 1890 apresenta as 131 pinturas a óleo expostas pela primeira vez ao grande público, dentre as quais, seis eram de Visconti, que apresentou ainda, na seção seguinte, um retrato a crayon. Das pinturas a óleo de Visconti, o catálogo destaca a primeira, Ladeira do Monte Alegre (paisagem), como quadro “premiado com a medalha de ouro no último concurso escolar”. Aluno da Academia desde 1885, e antes do Liceu de Artes e Ofícios, desde 1882, Visconti destacou-se logo cedo, recebendo sucessivas medalhas dos diversos cursos que frequentou. Apoiados nas informações de Alfredo Galvão em 1958, vários autores apontam uma medalha de ouro recebida por Visconti pela tela Mamoeiro, em 1891. Ora, essas medalhas concedidas pela Academia, destacavam, no início de cada ano, os melhores trabalhos realizados no ano letivo anterior. Como a pintura Mamoeiro é datada de 1889, certamente não poderia receber esse prêmio dois anos depois. Então, existe a possibilidade desta pintura ter recebido sua medalha em 1890, sendo a mesma Ladeira do Monte Alegre, registrada no catálogo na exposição de 1891, uma vez que Mamoeiro representa um terreno em aclive. De qualquer forma, Mamoeiro foi a primeira pintura de Visconti a fazer parte do acervo da Pinacoteca da Academia, pois é a única que consta do Catalogo Explicativo das Obras Expostas nas Galerias da Escola Nacional de Bellas Artes, editado em 1893. Neste catálogo, a pintura de Visconti é identificada com o título genérico, Paisagem, mas não resta dúvida que se trata de Mamoeiro, pois as dimensões registradas coincidem com as desta obra. A Pinacoteca da Academia/Escola teve a maior parte de seu acervo oriundo das suas próprias “atividades didáticas: exercícios de alunos, ‘envios’ de pensionistas, cópias de obras dos mestres mais importantes da tradição europeia, material didático usado nos ateliês e obras vencedoras de diversos concursos”. Excetuando-se o material didático, Visconti contribuiu com obras suas de cada um desses segmentos. A grande coleção da Pinacoteca da Escola foi desmembrada em 1937, da seguinte forma: A maior parte – e também a que foi considerada na época mais nobre – passou a constituir o recém-criado Museu Nacional de Belas Artes. A outra parte, em geral de caráter mais didático, continuou nas salas de aulas e nos ateliês da ENBA. As duas instituições, no História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 214 entanto, ocupavam o mesmo prédio: O MNBA a parte da frente, voltada para a Avenida Rio Branco, e a ENBA a parte posterior. É interessante ressaltar que aquela primeira obra de Visconti a ser incorporada ao acervo da Pinacoteca, pintura realizada quando ele ainda era aluno da Academia, foi considerada nobre, uma vez que passou a integrar o acervo do MNBA. No entanto, várias obras suas ficaram no acervo da Escola, o qual só foi reunido para sua melhor conservação, em 1979, com a criação do Museu D. João VI. Ali se encontram de Visconti várias de suas academias pintadas e enviadas como obrigação de pensionista, dos primeiros anos de seu estágio em Paris. E também, a academia masculina que foi executada durante o primeiro concurso de Prêmio de Viagem ao Exterior do período republicano, em 1892. É curioso notar que, apesar do Museu D. João VI guardar toda a documentação do concurso, inclusive os registros dos pseudônimos usados pelos candidatos, não se encontra em seu acervo, nem do MNBA, a pintura de Visconti realizada na última etapa do concurso, com o tema sorteado “A Aparição dos três anjos a Abraão”. Como obra do vencedor do concurso, era de se esperar que passasse a fazer parte da Pinacoteca da Escola. Tampouco se encontrou, em qualquer outro acervo, uma pintura de Visconti com esse tema, ficando assim, por enquanto, contada entre suas obras desaparecidas. No entanto, mesmo quatro de suas academias desenhadas, e uma pintada, Dorso de mulher (1895), também envios de pensionista dos primeiros anos, passou a fazer parte do acervo do MNBA. Assim como as composições que Visconti enviava para figurar nas Exposições Gerais de Belas Artes (EGBA), que voltaram a ser anuais, após outra interrupção desde aquela de 1890, reiniciando sua contagem, e sendo considerada a de 1894, como a 1ª EGBA. É o caso da pintura representando duas meninas nuas numa cama – um tema ousado e inusitado para o final do século XIX, tratado pelo artista com sensibilidade e sem afronta. No catálogo da Exposição Individual que Visconti organizou em 1901, na ENBA, para mostrar sua produção do tempo de pensionista na Europa, essa pintura aparece com o título As duas irmãs, e a especificação “Trabalho de pensionista”. Esta expressão sugere que ela foi, desde então, incorporada à Pinacoteca da Escola, como as demais assim designadas no catálogo. Outra pintura intitulada No verão aparece com a especificação: “Pertence ao Estado – Salon de 1894”. Mirian Nogueira Seraphim 215 Logo após a mudança do acervo da Pinacoteca da ENBA para as galerias e o novo pavimento construídos em 1922, no prédio projetado por Moralles de los Rios, na Avenida Central, onde a Escola funcionava desde 1908, foi editado, em 1923, o Catálogo Geral das Galerias de Pintura e de Escultura da ENBA. Neste catálogo, a pintura das duas meninas foi registrada apenas como Estudo de nu, o que pode ser verificado pelas dimensões apontadas; e aquela com o título No verão apresenta as dimensões 0,65 x 0,81, que correspondem à que hoje conhecemos como Menina com ventarola (1893). Em algum momento depois desta publicação, essas duas pinturas tiveram seus títulos trocados. Isto ocorreu, provavelmente, porque as qualidades observadas por tantos comentaristas na pintura das duas meninas – composição bem elaborada; escorço admirável; ângulo singular; leveza do colorido; sutileza da cena; jogo dos contrastes; profundidade das expressões e sensualidade inquietante – não se conformaram à designação tão redutora que lhe foi dada. Já no catálogo da grande Exposição Retrospectiva de Visconti, organizada no MNBA em 1949, No verão (1894) traz a designação “(as duas irmãs)” e está registrada com as dimensões da pintura das duas meninas; e a outra, aparece como Estudo de nu (menina com ventarola), e as dimensões correspondentes. Esta última, que representa a menina nua sobre a mesma cama, havia recebido a medalha de 2ª classe na 1ª EGBA, em 1894, e um pouco antes participado do Salon de Paris com o título En été; fatos que foram, por muito tempo, computados para a pintura das duas meninas. A troca dos títulos só foi percebida muito recentemente, a partir de uma pequena descrição da tela medalhada: “É uma menina nua, abanando-se com uma ventarola”, encontrada em um artigo publicado na ocasião da 1ª EGBA. Embora não restem dúvidas sobre a troca de títulos, fica difícil restituir a cada obra seu título original, uma vez que elas já foram bastante reproduzidas e comentadas com aqueles registrados no MNBA. Por outro lado, mantendo-se os títulos como estão, permanece ainda a confusão histórica das trajetórias iniciais de cada uma. É interessante notar que a primeira mudança significativa de título ocorreu num momento de transferência e registro do acervo, em 1923, quando a pintura antes designada As duas irmãs, passou a ser chamada apenas Estudo de nu, o que certamente gerou a troca, que deve ter ocorrido após a instituição do MNBA, e a divisão do acervo da Pinacoteca da ENBA. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 216 Ainda dentre as obras enviadas por Visconti durante seu pensionato, existe uma que é um caso bastante triste. Trata-se da cópia da pintura de Velazquez, A rendição de Breda (1634/35), que Visconti realizou por determinação de seus antigos professores na ENBA, para o seu terceiro ano de estágio. Embora a contragosto – o que se depreende da correspondência trocada entre o pintor e Rodopho Bernardelli, durante o ano de 1895 – Visconti se desincumbiu da obrigação de forma excelente, como testemunha seu filho Tobias, num depoimento escrito em 1992: Como pensionista do Estado, só tinha a obrigação de fazer uma cópia em tamanho reduzido. Tal cópia perfeita e com as dimensões do original ficou exposta na entrada da antiga Escola Nacional de Belas Artes, na Avenida Rio Branco, por mais de sessenta anos. Quando foram retirá-la [...] o fizeram sem o devido cuidado, e a tela apodrecida partiu-se em muitos fragmentos. Em 1938, foi publicado num jornal carioca um artigo sobre as reformas que aconteciam no prédio do recém-instituído MNBA. Ilustrava o artigo uma foto da cópia de Visconti já danificada, e a informação: “Helios Seelinger mostra, com profunda demonstração de tristeza, o rombo que é de mais de dois palmos”. A legenda da foto diz que a tela estava sendo reconstituída, no entanto, ela permanece até hoje à espera de socorro, em algum recanto do MNBA. Há no acervo deste museu mais três pinturas de Visconti, criadas ainda no mesmo período de estágio na Europa, que foram incorporadas em ocasiões diferentes. No registro de Oréadas (1899), que conquistou uma medalha de prata na Exposição Universal de Paris em 1900, consta apenas “transferência, Escola Nacional de Belas Artes, 1937”, como se observa em tantas outras obras. Recompensa de São Sebastião (1898) fora finalmente comprada em 1938 – portanto, para reforçar o acervo do museu recémcriado – muitos anos depois de uma campanha acirrada feita por Adalberto Mattos pelas páginas da revista Ilustração Brasileira, dizendo ser ela “obra que o governo tinha por dever adquirir, mas que continua no atelier do pintor, porque os que nos dirigem absolutamente não sabem distinguir o joio do trigo”. No entanto, Gioventù (1898), considerada a obra-prima por excelência de Visconti, já tão celebrada que dispensa comentários, teve que esperar a benevolência de seu proprietário, E. G. Fontes, que entendeu a Mirian Nogueira Seraphim 217 importância de socializar a sua fruição, doando-a ao MNBA, em janeiro de 1941. Ao longo dos anos, várias outras pinturas de Visconti de grande importância, passaram a integrar o acervo da Pinacoteca da Escola através de diversos procedimentos, como a aquisição de obras destacadas em Exposições Gerais, sem que isso ficasse registrado nos arquivos. Ocorreu em, pelo menos, dois anos consecutivos, primeiramente com a Igreja de Santa Teresa, apresentada ao público na 34ª EGBA, em 1927, e adquirida naquela ocasião, como consta do catálogo na exposição do ano seguinte; fato que se repete com A caminho da escola, exposta em 1928, na 35ª EGBA. Entretanto, não é o que acontece com o Retrato de Gonzaga Duque (190810). Nas resenhas sobre a 19ª EGBA, de 1912, esse retrato foi sempre destacado, e um jornal anuncia que uma proposta de aquisição desta pintura havia sido entregue ao ministro da Justiça. Apesar da importância do retratado e do fato de ele ter falecido um ano antes, a pintura não foi adquirida nessa ocasião. No catálogo da Exposição Retrospectiva, comemorativa do Centenário da Independência, em 1922, a pintura aparece com o complemento “(pert. á Exma. viúva Gonzaga Duque)”. Pelos registros do MNBA, ela foi transferida da Pinacoteca da ENBA, em 1937, sem nenhuma outra informação. Algumas doações aparecem catalogadas no MNBA. Uma delas, feita pelo próprio Visconti, já no final de sua carreira: pintado e doado em 1943, o Retrato de Manoel Cícero Peregrino da Silva, que foi entre outras coisas Diretor Geral da Biblioteca Nacional (1900-1924), Reitor da Universidade do Rio de Janeiro (1926-30), e Presidente do IHGB (1938-39). Após a grande Retrospectiva de Eliseu Visconti, realizada em novembro de 1949, foi feita por sua família, a doação do Autorretrato ao ar livre (1943), a pedido de Regina M. Real, uma das conservadoras do MNBA àquela época. Apesar de celebrada, a doação feita ainda em 1923, do Retrato da escultora Nicolina Vaz de Assis (1905) não consta dos registros do museu. Porém, segundo informa a revista Illustração Brasileira, ao lado da reprodução da pintura, de página inteira e em tricromia, ela foi ofertada por seu proprietário José Marianno Filho, à Pinacoteca da ENBA. Mais emblemático de situações irregulares que ocorrem nos acervos museológicos, é o caso da pintura Revoada de pombos, que segundo os registros do MNBA, foi comprada de Cecília Ferreira de Oliveira Fontes, História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 218 sem indicação da data. A pintura foi considerada por Antonio Bento, durante sua exposição na Retrospectiva de 1949, um quadro moderno na fatura, como nos seus valores plásticos. E é certamente pintura pura, podendo a composição ser assinada pelo mais ortodoxo dos abstratos. É apenas um jôgo de cores da maior pureza. Só um grande pintor seria capaz de fazer êsse quadro. Em virtude dessas suas características tão apreciadas, no catálogo da Retrospectiva de 1949, que foi organizado cronologicamente, essa pintura foi colocada em penúltimo lugar entre os óleos, considerada uma das últimas realizações da carreira de Visconti. No entanto, no confronto com outras obras catalogadas do mestre, revelou-se muito provavelmente um dos vários estudos para uma composição maior, Pombos do meu ateliê, datada de 1927; e aparece numa foto do ateliê de Visconti, publicada em O Jornal, de 1926. Porém, o fato mais insólito relacionado a ela, é que se encontra ainda hoje no Palácio da Alvorada, em Brasília, na parte restrita da residência presidencial, para onde foi levada, segundo a etiqueta do MNBA em seu verso, para uma exposição pelo período de dois anos, por um convênio de fevereiro de 1991. Outro importante acervo museológico brasileiro é a Pinacoteca do Estado de São Paulo (PESP). Ela guarda poucas obras de Visconti, apenas seis pinturas a óleo, mas duas delas são também bastante representativas dos percalços que ocorrem às obras de arte nas casas que as abrigam. O caso mais simples é o de um título inadequado. Um longo comentário, de uma obra que raramente chama a atenção dos críticos, apesar de constantemente exposta na Pinacoteca, mostra-se muito interessante por abordar, de forma bem diferente, o tema do nu adolescente viscontiano: Estranhamente intitulada “Dorso de mulher”, esta obra mereceria título mais correto de “Retrato de moça de dorso nu”. De fato, tratase de uma menina, como mostram o rosto amuado numa expressão entediada, os ombros estreitos e modesto volume dos seios. [...] Tratado numa escala cromática extremamente restrita, este estudo de nu é, ao mesmo tempo, tradicional pelo estilo e pela composição, e ousado pelo realismo cru, quase provocante. [...] O sentimento de mal estar que emana desta obra comprova a força de penetração psicológica de Visconti e de seu precursor desprezo Mirian Nogueira Seraphim 219 pelo Belo, um dos cânones mais constantes na pintura acadêmica. Pela exploração profunda do real, ele revela o que está aquém e além de um rosto. O autor faz notar aquilo que se mostra uma constante na obra do mestre – a conciliação do tradicional com o ousado. Ele também observa, muito acertadamente, o equívoco do nome dado à pintura, porém sugere outro título ainda inadequado. A correção do título foi novamente sugerida há pouco mais de dez anos, porém o museu exigia para isso uma fonte que indicasse seu título original, alegando que aquele registrado constava do documento de doação da obra. Para não fugir muito ao seu registro no acervo da PESP, e ao mesmo tempo corrigir o equívoco, essa pintura foi apresentada com o título Torso de mulher, quando participou da exposição “Erotica – os sentidos na arte”, no CCBB de São Paulo e do Rio de Janeiro, em 2005 e 2006, respectivamente. Com a recente mudança na direção da Pinacoteca, um título bastante apropriado foi finalmente adotado para ela: Torso de menina. A PESP também tem em seu acervo uma obra-prima de Visconti: a pintura Maternidade (1906) é sempre aclamada por suas qualidades plásticas. “O efeito é uma harmonia melodiosa, sinfonia de cores verdes, azuis e rosas. [...] As zonas de luz e sombra se alternam e se integram pelas infiltrações dos raios de sol, num jogo sutil de captação atmosférica”. Sua entrada no acervo, porém, ainda guarda algum mistério. No ano 2000, constava na legenda ao lado da pintura em exposição permanente, “transferida do Museu Paulista”. No entanto, essa informação só é verdadeira para outra pintura de Visconti daquele acervo: A Providência guia Cabral (1899). Esta consta, com o título Cabral, de um documento datado de 19 de fevereiro de 1948, no qual o diretor da PESP recebia do diretor do Museu Paulista, dez pinturas ali relacionadas, “que por se tratarem de obras de interêsse mais pròpriamente artístico do que histórico e documental, passam, nesta data, a serem transferidos do Museu Paulista, para a Pinacoteca do Estado”. Da lista de obras deste recibo não consta a Maternidade, no entanto, ainda na publicação de 2009, Arte brasileira na Pinacoteca do Estado de São Paulo, no “Histórico das obras”, encontra-se para esta pintura de Visconti uma informação contraditória: “Transferido do Museu Paulista, entrou para o acervo por ocasião da regulamentação da Pinacoteca, em 1911”. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 220 Entre 1905 e 1911, ano em que a Pinacoteca passa a ter uma regulamentação jurídica, são incorporadas ao acervo 33 pinturas, sempre por iniciativa do Governo do Estado. A procedência é em muitos casos, ainda controvertida, pois uma parte dos documentos originais desse período se perdeu. Certamente também no que se refere à pintura Maternidade. A grande composição foi exposta no Salon de Paris, em 1906, como Maternité, e apresentada no Brasil, na 15ª EGBA, em 1908, ocasião em que foi destacada em várias resenhas. Depois de participar da Exposición Internacional de Bellas Artes, que em setembro de 1910 inaugurava o prédio do Museo Nacional de Bellas Artes, em Santiago do Chile, a pintura foi apresentada ao público paulista no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, na 1ª Exposição Brasileira de Belas Artes, inaugurada em 24 de dezembro de 1911. No dia 12 de janeiro, começava uma campanha em favor da aquisição de Maternidade, tendo sido publicado no jornal O Estado de S. Paulo: Sabemos que havia também a intenção de comprar a grande e esplendida tela de Eliseu Visconti – ‘Maternidade’, que é um dos mais fortes de todos os quadros expostos. O preço marcado no catalogo, porém, era de 6:000$000. O governo estava disposto a dar apenas 5:000$000. Mas o artista não cedeu e a compra não se fez. O artigo referia-se a um documento assinado por Amadeu Amaral, e datado de 31 de dezembro de 1911, que consultava o pintor se o preço pedido pela pintura – seis contos de réis – não poderia ser modificado, pois queriam que ela ficasse em São Paulo, mas havia dificuldades por questão de verba. O mesmo articulista, ainda no dia 19, insistia: Segundo ouvimos, algumas senhoras da nossa alta sociedade pensam em adquirir, por subscripção, a esplendida téla “Maternidade” do sr. Elyseu Visconti para offerecel-a a um dos nossos estabelecimentos de caridade. [...] Em compensação temos uma Pinacotheca do Estado, solenne instituição cujo maior merito consiste em possuir um nome sonoro e sugestivo... Mirian Nogueira Seraphim 221 Após esta severa crítica à administração cultural do governo paulista, o cronista encerra sua campanha. Acompanhando-se as próximas edições do jornal, encontram-se apenas, no início do mês de fevereiro, notas sobre o encerramento da exposição e nenhuma nova menção à tela de Visconti. Um ano mais tarde, um artigo sobre a PESP, que traz várias reproduções e a lista completa do seu acervo, já registra a presença de Maternidade. Não se sabe a data exata da compra, nem se o governo pagou o preço pedido pelo artista, se este decidiu conceder o desconto ou se algum benfeitor a comprou e doou à Pinacoteca. Mas certamente sua entrada no acervo se deu em 1912, como agora consta do site do museu. Para encerrar, dentre tantos outros casos, destaca-se o de um pequeno museu onde ocorreu o fato mais grave relacionado a uma obra de Visconti. Na década de 1960, Assis Chateaubriand lançou a Campanha Nacional dos Museus Regionais, projeto que pretendia criar museus regionais, de alto valor artístico, em vários pontos do país, e contava com a assessoria de Pietro Maria Bardi e Max Lowenstein. Porém, apenas cinco foram implantados, dentre eles o Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, que tem sede em Olinda, no prédio da antiga e única detenção eclesiástica do Brasil. Havia em seu acervo um autorretrato inacabado de Visconti, datado de 1901, que participou da Retrospectiva de 1949, quando então pertencia à coleção de Otto Sachs. O Autorretrato foi reproduzido no catálogo do museu, editado em 1982 pela FUNARTE, fazendo parte da Coleção Museus Brasileiros. No entanto, no final da década de 1980, esta pintura foi roubada do museu, e nunca mais recuperada, embora tivessem sidos feitos boletim de ocorrência e artigos na imprensa sobre o caso. O mais curioso é que, depois disso, ela aparece novamente reproduzida num catálogo editado em 1993 – Visconti; Bonadei – no qual o autorretrato é apontado como de coleção particular do Rio de Janeiro. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 222 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, M. M.; NASCIMENTO, A.P. & BARROS, R. T. 100 anos de Pinacoteca – A formação de um acervo. São Paulo: Pinacoteca/ Centro Cultural FIESP, 2005. BAECHLER, D. E. Pintura Acadêmica – Obras primas de uma coleção paulista – 1860-1920. São Paulo: Imprensa Oficial, 1982, 3 V. BENTO, A. “A Retrospectiva de Visconti” (As Artes), Diario Carioca, Rio de Janeiro, 20 nov. 1949, p. 6. DUPRAT, C. Pinacoteca do Estado de São Paulo. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2009. GALVÃO, A. Alunos Premiados da Academia Imperial de Belas-Artes. Rio de Janeiro: ENBA, 1958. MATTOS, A. Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, Ano 8, nº 1, set 1920. ________. “As nossas trichromias”. Illustração Brasileira, Ano IV, nº 32, abr. 1923. MOURA, Y. Coleção D. João VI – Museu Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: MNBA, 2008. PALHARES, T. H. P. (Org.), Arte Brasileira na Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo: Cosac Naify/ Imprensa Oficial/ Pinacoteca, 2009. PEREIRA, S. G. O novo Museu D. João VI. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA, 2008. SALA, D. “As origens históricas”. In: Acervo Museu Nacional de Belas Artes. São Paulo: Banco Santos, 2002, p. 18-27. SERAPHIM, M. N. “Eliseu Visconti e a construção da cultura artística de São Paulo”. Revista de História da Arte e Arqueologia. Campinas, IFCH/Unicamp, 2005, p. 109-124. ________ “1890 – o primeiro ano da República agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti”. In: CAVALCANTI, A.M.T.; DAZZI C. & VALLE, A. (Org.) Oitocentos: Arte brasileira do Império à Primeira República. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ/ DezenoveVinte, 2008, p. 257-272. Mirian Nogueira Seraphim 223 VISCONTI, T. S. (Org.) Eliseu Visconti: A arte em movimento. Rio de Janeiro: Hólos, 2012. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 224 Figura 3 ELISEU VISCONTI. Mamoeiro, 1889. Óleo sobre tela; 92 cm x 73 cm; Rio de Janeiro, MNBA. Foto: Photo Sintese, 2011. Mirian Nogueira Seraphim 225 Figura 2 ELISEU VISCONTI. As duas irmãs ou No verão, 1894. Óleo sobre tela; 58,9 cm x 80,4 cm Rio de Janeiro, MNBA. Foto: Photo Sintese, 2011. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 226 Figura 3 ELISEU VISCONTI. No verão ou Menina com ventarola, 1893. Óleo sobre tela; 65,1 cm x 81 cm. Rio de Janeiro, MNBA. Foto: Photo Sintese, 2011. Mirian Nogueira Seraphim 227 Figura 4 ELISEU VISCONTI. Revoada de pombos, c. 1926. Óleo sobre tela; 73 cm x 50 cm; Rio de Janeiro, MNBA. Foto: Mirian Seraphim, 2007. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 228 Figura 5 ELISEU VISCONTI. Torso de menina. s.d. Óleo sobre tela; 76 cm x 63 cm; São Paulo, PESP. Foto: Isabella Mateus, 2011. Mirian Nogueira Seraphim 229 Figura 6 ELISEU VISCONTI. Maternidade, 1906. Óleo sobre tela; 165 cm x 200 cm; São Paulo, PESP. Foto: Isabella Mateus, 2011. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 230 coleções e museus Apontamentos sobre o gênero do retrato, o colecionismo e a presença de artistas estrangeiros nas Exposições Gerais da Academia Imperial de Belas Artes brasileira Elaine Dias Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação de História da Arte, Universidade Federal de São Paulo. Ao analisarmos os catálogos das Exposições Gerais da Academia Imperial de Belas Artes, seja folheando suas publicações individuais, realizadas a cada ano em que a mostra ocorria, ou a compilação dirigida por Carlos Maciel Levy e editada em 19901, nota-se de modo imediato que o gênero do retrato foi aquele que ganhou mais espaço entre os anos de 1840 e 1884. Levy menciona o número de 991 retratos em meio a 3.315 obras em sua totalidade. Entre 1840, data da abertura das chamadas Exposições Gerais de Belas Artes, e 1884, ano da última exposição realizada no período imperial, artistas nacionais e estrangeiros expuseram esse grande número de retratos, dispostos nos catálogos com suas devidas titulações, indicados por seus autores e numerações ou nomeados apenas como “retratos”. Chama a atenção, desta forma, a quantidade exibida. Este número mostrava telas variadas, destacando-se retratos de Estado, em particular aqueles realizados para D. Pedro II, os retratos de governantes anteriores, como D. Pedro I e d. Leopoldina, os retratos de homens ilustres do Império, retratos de figuras ilustres do ambiente internacional e igualmente de civis da sociedade carioca, entre outros. Ao lado destas informações, em alguns retratos aparecia outra de especial relevância para o nosso contexto social e artístico no século XIX brasileiro. Algumas obras pertenciam a particulares e eram expostas na dita mostra, contendo no catálogo, ao lado do nome do artista e do título, o nome completo do proprietário. As questões que se levantam com esta prática que perdura em todo o período imperial apenas se iniciam aqui. Elas dizem também respeito a fa1 MACIEL LEVY, 1990. 231 tores fundamentais para a compreensão das engrenagens que impulsionam o mundo das artes no Rio de Janeiro, capital do Império de D. Pedro II, assim como o entendimento dos fatores relativos à circulação de modelos artísticos, de artistas que passaram pelo Brasil de maneira temporária ou permanente, de suas práticas em meio à sociedade, da consequente afirmação de um determinado gênero ao lado dos artistas brasileiros. Nesse sentido, é igualmente fundamental entender como se articulavam as encomendas de retratos na esfera pública e privada e a respectiva inserção do artista estrangeiro no sistema artístico brasileiro, assim como uma forma de sustento ao artista, incluindo-se também aqui o brasileiro; a divulgação de seu trabalho na imprensa da época e a recepção do público no contexto das exposições gerais, a divulgação do retrato e o papel da crítica de arte na análise das obras; a recepção destes artistas na Academia Imperial de Belas Artes, sua análise das obras e as premiações; e a formação destes estrangeiros fora do Brasil, suas referências artísticas e os modelos de retratística utilizados para fins específicos, além da comparação ao gênero do retrato nos Salões parisienses, local central de exposição de artistas franceses e estrangeiros na Europa. Além disso, atrai também a inserção nas exposições de cópias de pintura realizadas pelos artistas, seja de retratos de pintores já consagrados na história da arte, ou retratos realizados por outros artistas brasileiros ou estrangeiros, igualmente divulgados nas exposições gerais. Por último, convém destacar que a abordagem a este gênero inclui diferentes suportes e técnicas, entre os quais a estatuária - em especial os bustos - e a fotografia, embora a pintura constituía o maior número. Todas estas questões levantadas acima estão inseridas, assim, em um projeto de pesquisa que tem como objetivo o estudo da presença de artistas estrangeiros nas Exposições Gerais da Academia Imperial de Belas Artes, especificamente no âmbito da retratística. Embora a pesquisa esteja ainda em sua fase inicial, gostaria, assim, de realizar alguns apontamentos sobre estas questões neste encontro. Um gênero em destaque no Brasil Sabemos o quanto este gênero ocupou um lugar de destaque no Brasil desde o século XVIII. Jean-Baptiste Debret conta-nos sobre esta prática no História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 232 período colonial, em sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil2 . O retrato aparecia de forma contundente nos conventos, mosteiros, santas casas e irmandades de lugares como Rio de Janeiro e Salvador3, representando os principais doadores e aqueles ligados à hierarquia do clero, homenageados em vida ou após a morte para que sua memória e virtude permanecessem no local de suas benfeitorias. Em sua maioria, eram retratos simples pintados de corpo inteiro, geralmente com uma pequena paisagem ao fundo ou exibindo algum documento que indicasse seus atos naqueles locais. O exemplo moral enchia assim as paredes de instituições públicas, levados como modelo para novos benfeitores, para as tradicionais famílias e aos fiéis daquelas ordens específicas. Com o passar do tempo, os trajes foram se sofisticando e os atributos ganhando mais espaço, mas a pose austera e firme continuava a mesma. Aos poucos, sobretudo com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, o gênero começa a se deslocar da esfera religiosa e invadir o âmbito político e social, revelando artistas como Leandro Joaquim4, José Leandro de Carvalho5, Simplício Rodrigues de Sá, Franciso Pedro do Amaral, Manuel Dias de Oliveira, que realizavam retratos para os membros da Família Real. Eventos como a sagração de d. João VI em 1818, o casamento de Pedro I e Leopoldina de Habsburgo, além das figuras importantes da nobreza luso-brasileira, davam novos elementos para os artistas praticarem o gênero, decorando as instituições públicas com a efígie dos novos governantes6. Nesse contexto, os estrangeiros começam a ocupar certo espaço. Os Jean-Baptiste Debret e Nicolas-Antoine Taunay irão se inserir neste campo de modo contundente desde sua chegada em 1816, pois sobressair-se neste gênero na corte portuguesa, significava certamente obter privilégios como artista. Debret irá, desta forma, realizar alguns retratos para o Rei d. João VI, tanto em corpo inteiro quanto em meio corpo, em trajes majestáticos ou militares7. Taunay, em sua aproximação à Rainha, como já 2 DEBRET, 1975. 3 LEVY, 1945: 251. Entre eles, o Retrato de D. Luis de Vasconcelos e Souza, 1790c, hoje conservado no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. 4 Realizou o O Retrato de D. Maria I conservado também no Museu Histórico Nacional. Este é, possivelmente, o primeiro retrato da família real portuguesa produzido no Brasil no ano de sua chegada, 1808. 5 6 MIGLIACCIO, 2000. 7 DIAS, 2006. Elaine Dias 233 destacou Lilia Schwarcz8 em seus estudos sobre o artista, realiza os retratos de D. Carlota, das filhas da princesa e igualmente de seu neto, tornando clara a sua posição em meio ao turbulento casamento entre os Bragança e os Bourbon9. Ao lado dos eventos políticos da primeira metade do século XIX, é de suma importância à fundação e desenvolvimento da Academia, que não só teve um corpo de professores que trabalham para a criação da memória visual brasileira, mas levou à sociedade um corpo de artistas que ocuparão este gênero, principal meio de sustento no campo das artes no Rio de Janeiro do século XIX. José Correia de Lima, professor de pintura de história da Academia, substituto de Debret após seu retorno à França em 1831, foi um dos principais artistas a realizar uma série de retratos de D. Pedro II em suas diferentes idades, os quais foram distribuídos pelas repartições públicas das províncias brasileiras. Além dos chamados retratos de Estado, Correia de Lima também pintou retratos de membros da sociedade, que antes ou depois de estar na casa de seus comanditários, foram dispostos nas Exposições Gerais de Belas Artes. August Müller, professor substituto de pintura de paisagem, foi também um dos grandes artistas do retrato. Seu Mestre de uma sumaca foi exposto pela primeira vez em 1840, e esteve também presente na última exposição, em 1884. Revelava a coragem do mestre de uma sumaca, Manoel Correia dos Santos, herói solitário de uma fragata em Santa Catarina, cuja efígie servia de exemplo de bravura à sociedade. Muitos foram os artistas brasileiros que expuseram retratos nas Exposições Gerais de Belas Artes, levando o gênero ao grau máximo das exposições. Entre eles, destacam-se as obras realizadas por Joachim da Rocha Fragoso, retratista oficial do Conde d’Eu, alguns artistas já formados na Academia, como Poluceno Pereira da Silva Manoel, onde se vê claramente uma forma de sustento, entre vários outros em igual situação, e também os mais ilustres, entre eles Pedro Américo e Vitor Meirelles, pintores de história que também mantiveram presença constante como artista do gênero do retrato. Vitor Meirelles foi um dos grandes retratistas do período imperial no campo da pintura e, naquele da escultura, Francisco Chaves Pinheiro e Rodolfo Bernardelli ocuparam também lugares importantes tanto na retratística oficial do Imperador quanto na execução de bustos e estátuas de figuras ilustres do período. 8 SCHWARCZ, 2008. 9 DIAS, 2011. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 234 Além dos brasileiros, os estrangeiros ocuparam também espaço considerável, como veremos adiante. Os artistas estrangeiros na Exposições Gerais O levantamento inicial dos artistas estrangeiros presentes nas Exposições Gerais foi feito, primeiramente, por meio do primeiro volume publicado por Carlos Maciel Levy em 1990, que diz respeito ao período de nossa abordagem, isto é, entre 1840 e 1884, com alguns intervalos em decorrências de fatos políticos ou de questões acadêmicas. Em uma segunda etapa futura serão contempladas as chamadas Notícias ou Catálogos das exposições gerais em sua forma original - conservados nos arquivos da Escola de Belas Artes da UFRJ, no Museu Nacional de Belas Artes e na Biblioteca Nacional, conforme destaca Maciel Levy10 - verificando informações que podem ter sido suprimidas do catálogo, seja por repetição ou por espaço. É de especial importância ainda o artigo publicado por Donato Mello Júnior nos Anais do Congresso de História do Segundo Reinado, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, editado em 1984, que traça uma análise aguçada dos gêneros expostos no período e da história mesma das exposições no período imperial. Os dados recuperados nos levaram aos seguintes números, ainda que iniciais. Foram 26 exposições realizadas no período, verificando-se a presença de 72 artistas estrangeiros. Dentre estes, 44 são os artistas que apresentaram obras com ou sem título nas Exposições Gerais. É certo, porém, que o número corresponde a artistas cujas obras estão identificadas com títulos nos catálogos das exposições. Os artistas cujas obras são apenas identificados como “Retrato” ou com iniciais dos nomes dos retratados são 28. Isto nos impede, em princípio, de analisarmos as representações e sua recepção, entre outros fatores, embora nos permita verificar a sua inserção no sistema artístico do Rio de Janeiro. Também se destaca que os 44 artistas que apresentaram obras com títulos nos catálogos participaram também com obras sem títulos ou com iniciais em outras exposições, o que amplia sua participação efetiva nas mostras brasileiras, sem contar ainda telas de outros gêneros apresentados, que fogem do escopo desta pesquisa. Eles eram, em sua maioria, franceses, alemães, italianos e portugueses, realizan10 MACIEL LEVY, 1990. Elaine Dias 235 do retratos para a família imperial e para o público em geral. Nesta seleção, destacam-se os franceses Claude Joseph Barandier, François-René Moreaux e Auguste Petit, os alemães Ferdinand Krumholtz e Leopoldo Heck, e o português Antonio Alves do Vale de Souza Pinto, entre muitos outros. Nesta pesquisa que acaba de iniciar-se, gostaria de destacar finalmente, para esta comunicação, um elemento interessante dentro do sistema artístico. Trata-se da presença de “proprietários” das telas de artistas estrangeiros emprestadas à Academia para as exposições gerais. Seus nomes apareciam nos catálogos das exposições ao lado do nome dos artistas e das obras. O primeiro é um quadro de Ary Scheffer intitulado Retrato de sua alteza real a Princesa de Joinville, de propriedade de D. Maria Antonia de V. M. Da F, assim mencionado e exposto em 1844; uma tela de Claude Joseph Barandier, Retrato de sua Majestade a Imperatriz, de propriedade de dona Leopoldina de Werna Gusmão, exposto em 1848; uma pintura de Bartolomeu Ramenghi, dito Bagnacavallo, intitulado Marquesa de la Rovera, e de Domenico Zampieri, dito Domenichino, um retrato de Cardeal Agucchi, ambos de propriedade do Comendador Souza Ribeiro, expostos em 1859; duas telas de Rigaud intituladas “Retrato de Greuze” e “Retrato de um príncipe da igreja”, de propriedade de J. G. Le Gros, exibidos também em 1859; e algumas telas pertencentes à Sua Majestade o Imperador, assim denominadas, um retrato de sua Alteza o Príncipe Imperial, de Claude Joseph Barandier; um Retrato de sua Alteza Real Senhora dona Francisca, Princesa de Joinville, de François Meuret, expostos em 1844; um Retrato de sua Alteza Senhora Princesa dona Isabel e um Retrato de sua Alteza a Senhora Princesa dona Leopoldina, também de Claude Joseph Barandier, exibidos em 1848; um retrato de V. Feckout intitulado Lord Wellington em Waterloo, exposto em 1849; um quadro de Otto Grashoff, Retrato de Fernando Magalhães, presente na mostra de 1859; e por último o Retrato de Ana de Lagrange na Opera Norma, de Louis Auguste Moreaux, de propriedade da Academia Imperial de Belas Artes, oferecido por André Pereira de Lima, assim denominado, exposto em 1860. A coleção de artes do Imperador é algo mais comum dentro da Academia Imperial de Belas Artes. Antes dele, a família Real já havia levado suas obras para formarem a coleção acadêmica. D. Pedro II foi um frequentador assíduo das exposições, comparecendo nas aberturas, comprando obras expostas e igualmente financiando viagens de artistas. O empréstimo de obras para serem expostas servia não só para o incentivo História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 236 ao próprio empréstimo pela parte de outros, mas também para divulgar à sociedade os retratos da família imperial, confirmando o poder da corte de d. Pedro II. Os demais proprietários, todos ainda em fase de pesquisa nas coleções e na imprensa da época, mostravam nas exposições obras de outros gêneros, apresentando ao público uma coleção variada. A prática do empréstimo evidenciada nos catálogos mostrava não só a circulação destes artistas estrangeiros e sua presença nas coleções brasileiras, mas um exemplo a ser dado à sociedade, que podia igualmente iniciar suas coleções comprando obras expostas da Academia, desenvolvendo o mercado, incentivando o gosto privado e garantindo o sustento aos artistas. A pesquisa sobre os artistas estrangeiros que expunham suas obras na Academia está apenas em sua fase inicial, e são muitos os caminhos metodológicos e as fontes documentais e visuais para entender o processo de circulação de artistas, modelos e o desenvolvimento do gosto público e privado no Brasil. Bibliografia Catálogo ‘Memória Compartilhada: retratos na coleção do Museu Histórico Nacional’ in Anais do Museu Histórico Nacional, RJ, volume especial, tomo 35, 2003. DEBRET, J.-B. “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”. São Paulo, Brasília, Martins, INL. 1975. DIAS, E. “A representação da Realeza no Brasil: uma análise dos retratos de D. João VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret” in Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 14, n.1, p. 243-261, 2006. DIAS, E. “Os Retratos de Maria Isabel e Maria Francisca de Bragança, de Nicolas Antoine Taunay” in Anais do Museu Paulista, v. 19, p. 11-43, 2011. LEVY, H. “Retratos coloniais” in Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1945, no. 9, p. 251. MACIEL LEVY, C., R.. “Exposições gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes, Período Monárquico”. RJ, Ed. Pinakotheke. 1990. Elaine Dias 237 MIGLIACCIO, L. “Século XIX. Catálogo Mostra do Redescobrimento Brasil + 500”. São Paulo: Fundação Bienal. 2000. SCHWARCZ, L. “O Sol do Brasil. Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João”. São Paulo, Cia das Letras. 2008. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 238 coleções e museus Ciccarelli: paisagem em contradição Valéria Lima Professora do Curso de História, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo, Brasil. Samuel Quiroga Professor do Departamento de Artes, da Facultad de Artes y Humanidades da Universidad Católica de Temuco, Chile. Alessandro Ciccarelli (c. 1810, Nápoles – 1879, Santiago), com uma produção presente em coleções privadas e públicas, é o ponto de partida adotado nesta comunicação para abordar acontecimentos do campo das artes visuais da segunda metade do século XIX, no Brasil e no Chile. Este artista controverso, menosprezado por duríssimas críticas e protagonista de conhecidas polêmicas, foi causa de várias disputas entre aqueles que o apoiavam e os que o criticavam. A presença de sua obra em diversas coleções e publicações que evidenciam o reconhecimento de seu trabalho motivamnos a colocar em discussão narrativas e peculiaridades em torno de sua figura, a partir de vários estudos apresentados em Jornadas anteriores1. Além disso, e de forma particular, pretendemos reavaliar sua produção paisagística e sua aparentemente paradoxal negação do ensino do gênero Uma em 2006: Alegría L., Juan. “Cicarelli y la construcción del discurso artístico chileno.” Martínez, Juan Manuel (ed.). Arte americano: contextos y formas de ver. Terceras jornadas de Historia del Arte. Santiago: Rill editores, 2006. 167 - 176. E quatro em 2012: Guzmán, Fernando y Juan Manuel Martínez (Editores). Vínculos artísticos entre Italia y América. Silencio historiográfico. VI Jornadas de historia del Arte. Valparaíso, 1 a 3 de agosto del 2012: Lima, Valéria. “Da Itália ao Continente Americano: Alessandro Cicarelli entre Brasil e Chile.” (pág.185 – 195). Zamorano Pedro. “El discurso de Alejandro Cicarelli con motivo de la fundación de la Academia de Pintura: claves de un modelo estético de raigambre clásica.” (pág.197 – 205). Richter, Marisol y Cynthia Valdivieso. “La presencia del pintor italiano Alejandro Cicarelli (ca. 1810 - 1879) en la Academia de Pintura en Chile: sus actividades directivas.” (pág.207 – 217). Y, De la Maza, Josefina. “Duelo de pinceles: Ernesto Charton y Alejandro Cicarelli.” (pág.219 – 228). 1 239 no ambiente acadêmico, considerando exposições2 que incluíram quadros do pintor. Para além de sua experiência no continente americano, esta comunicação aponta urgências no sentido de retomar de forma mais aprofundada as relações entre sua trajetória no Brasil e no Chile e sua formação europeia, mais especificamente, sua produção no âmbito napolitano da primeira metade do século XIX. Se sua relação com a Corte dos Bourbon pode colaborar para explicar a familiaridade com a família real brasileira e com a dinâmica artística em um ambiente monárquico, sua experiência acadêmica italiana oferece pistas à compreensão do modelo imposto à Academia de Pintura chilena, razão de sua vinda para o país, em 1848, no bojo dos programas reformistas republicanos levados a cabo durante o governo de Manuel Bulnes. Ademais, foi em torno de sua atuação na instituição acadêmica que se produziram as já citadas polêmicas e críticas que envolveram o pintor napolitano, que se inventou diretor de academia em 1849, momento da inauguração da Academia de Pintura de Santiago. Sua produção pictórica e os desdobramentos de sua gestão acadêmica alimentam a história e a crítica de arte chilenas, indiciando um importante capítulo da cultura artística local, com reflexos nos mundos da arte3 latinoamericanos, cujas idiossincrasias seguem demandando estudos para que o fenômeno da circulação e atuação de artistas estrangeiros no continente seja compreendido em toda a sua complexidade. No Brasil, por motivações óbvias, a produção do pintor é bem menos numerosa do que aquela que se verifica no Chile, assim como a crítica que se realizou ao seu trabalho. Residente na capital do Império entre 1843 e 1848, o pintor manteve um vínculo com a Corte e com a sociedade letrada da época que, até hoje, permanece em relativa obscuridade e desperta a curiosidade dos estudiosos da cultura artística brasileira. Tendo inaugurado sua aparição no meio artístico local com a participação na Exposição Geral A inclusão da obra Vista de Santiago desde Peñalolén, exibida tanto em Territorios de Estado. Paisaje y cartografía. Chile, siglo XIX, realizada no Museo Nacional de Bellas Artes de Santiago, curada por Roberto Amigo, por ocasião da primeira Trienal de Chile, em 2009; como em Puro Chile. Paisaje y Territorio, realizada no Centro Cultural La Moneda, curada por Daniela Berger, Gloria Cortés e Juan Manuel Martínez, em 2014. E da pintura Árbol seco, na mostra Centenario. Colección Museo Nacional de Bellas Artes 1910 – 2010, em 2010. 2 O termo “mundo da arte” é aqui empregado no sentido que lhe é conferido por Howard Becker, em Los Mundos del Arte, 2008. O sociólogo destaca, nesta obra, o aspecto coletivo da criação artística e focaliza a complexidade das redes sociais envolvidas no trabalho artístico, para além dos juízos estéticos que lhes possam ser atribuídos. 3 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 240 de Belas Artes de 18434, logo após sua chegada ao país, o artista deixa poucas obras de seu período brasileiro, destacando-se uma única pintura histórica, uma paisagem e alguns retratos de controversa qualidade5. Ainda assim, sua curta permanência e limitada produção sugerem instigantes reflexões a partir da análise de sua inserção no contexto histórico e artístico da época. Tal investigação, porém, ressente-se da falta de documentos suficientes para a identificação de sua real inserção neste meio, com raras exceções. Alguns poucos documentos nos acervos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, do Museu Dom João VI e do Museu Nacional de Belas Artes desta mesma cidade, escassas informações museológicas das instituições que possuem obras do artista, bem como esparsas notícias na imprensa, resumem a lista de fontes disponíveis sobre o pintor no Rio de Janeiro. Compêndios e estudos sobre história da arte brasileira concentram-se sobre algumas de suas obras, nomeadamente a vista do Rio de Janeiro e a tela do casamento dos monarcas, silenciando sobre aspectos mais reveladores de seu desempenho na Corte carioca. A presente comunicação inicia, assim, um esforço conjunto no sentido de recuperar a trajetória do artista napolitano, a fim de problematizar a narrativa histórica e a crítica sobre os mundos da arte latino-americana do século XIX. No Brasil, Ciccarelli ocupa um lugar entre os pintores da Corte imperial6, meio com o qual estaria já familiarizado, considerando sua Nesta ocasião, expõe Revista no Campo de Marte, uma cena histórica napolitana, exemplar de sua produção italiana (cfr. Pereira Salas, 1992, pág.63), dois retratos e uma cena de gênero intitulada Reunião de pescadores e mulheres cantando arieta napolitana ao luar. Sobre a mostra, cfr. Mello Jr., Donato, As Exposições Gerais da Academia de Belas Artes no Segundo Reinado. 4 Casamento por procuração de S. M. Dona Teresa Cristina, 1846, o/t, 1,94 x 2,64 m, Museu Imperial de Petrópolis; Vista do Rio de Janeiro, 1844, ol/t, 82,3 x 117,5 cm, Pinacoteca do Estado de São Paulo; Retrato do Conde de Aljezur, 1848, ol/t, 92 x 73 cm; Retrato da Viscondessa de Aljezur, s.d., 91 x 73 cm e Retrato do Desembargador Rodrigo da Silva Pontes, 1848, 86,5 x 66 cm, pertencentes ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Este último fora executado em Montevideo, no momento da viagem do artista rumo a Santiago. 5 Carlos Martins (Revelando um Acervo. Coleção Brasiliana. São Paulo: Bei Comunicação, 2000: pág. 9) sugere que o artista integrava a comitiva da Imperatriz Dona Teresa Cristina, na função de seu professor de desenho. Alguns autores indicam o ano de 1840 como o momento da chegada do artista ao Brasil. Entre eles, Gonzaga-Duque (A Arte Brasileira, Campinas: Mercado de Letras, 1995: pág.102), Roberto Pontual (Dicionário de Artes Plásticas no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e Q. Campofiorito (História da Pintura Brasileira do Século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1983: pág.84). Segundo Martins, porém, “a versão mais aceita é que teria sido convidado a acompanhar a imperatriz d. Teresa Cristina como pintor de câmara e seu professor de pintura, tendo chegado ao Rio de Janeiro em 1843”. 6 Valéria Lima & Samuel Quiroga 241 inserção na Corte napolitana. Sua chegada está relacionada ao episódio que trouxe para o Brasil a princesa Real das Duas Sicílias, Dona Teresa Cristina de Bourbon, casada por procuração com D. Pedro II, em Nápoles. Mesmo que o motivo exato de sua vinda seja ainda obscuro, é importante destacar que talvez tenha desempenhado um papel neste sentido o fato de que Ciccarelli estivera em Roma como pensionista da academia, após vencer o concurso realizado em 1834. Tal experiência no currículo dos artistas napolitanos significava um diferencial no momento das escolhas dos comitentes e aproximava os ex-pensionistas dos interesses dos círculos da Corte.7 Contando, portanto, com uma proximidade destes círculos, Ciccarelli circulou, no Rio de Janeiro, entre a família imperial, os dignitários da Corte e a elite intelectual do país. Travou contato com os estrangeiros que visitavam ou se haviam instalado na capital carioca, sendo possível sugerir que tenha participado ativamente do meio artístico local, ainda que poucos documentos o comprovem, no estado atual das pesquisas sobre o artista, conforme ressaltado acima. Inicialmente, a recepção de Ciccarelli no Rio de Janeiro, como se pode apreciar em sua participação na Exposição Geral de Belas Artes em 18438, foi favorável. Pelo sucesso na mostra, recebeu de Dom Pedro II a insígnia de Cavalheiro da Ordem de Cristo9 e, alguns anos depois, o encargo de realizar uma tela do casamento real10, a qual não foi muito bem avaliada pela crítica posterior11. Sua trajetória na cidade segue apagada pelas fontes, emergindo apenas em dezembro de 1847, momento em que trava, nas páginas da imprensa carioca, um duelo com um crítico anônimo que Stefano Susino aborda a formação dos artistas napolitanos em Roma em artigo do volume Civiltà dell’Ottocento. Cfr. Susino, 1997: pág. 88. 7 Cfr. Gonzaga Duque. A Arte Brasileira. Luiz Gonzaga Duque Estrada; introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995: pág. 102-103. 8 9 Concedida em 8 de fevereiro de 1844. Cfr. Pereira Salas, 1992: pág. 64. Segundo Pereira Salas, Dom Pedro II, por decreto de 31 de dezembro de 1846, encomendou a Cicarelli uma grande tela de recordação de seu casamento com a imperatriz Dona Teresa Cristina, na Capela Real de Nápoles, com um honorário de 4.000 contos. Cfr: Pereira Salas, Eugenio, 1992, pág.64. Um ensaio interpretativo da obra encontra-se no artigo de Lima, Valéria. “Alessandro Ciccarelli e a tela Casamento por procuração da Imperatriz D. Teresa Cristina: um ensaio interpretativo”. Oitocentos – Arte Brasileira do Império à República. Tomo 2. Org. Arthur Valle, Camila Dazzi. Rio de Janeiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte, 2010, pág. 657 - 669. 10 O mesmo Gonzaga Duque, que resgatara críticas positivas às telas expostas em 1843, reprova abertamente a tela do casamento dos monarcas. Cfr. Gonzaga Duque, Op. Cit.: pág.103. 11 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 242 reprovara o retrato do Imperador Dom Pedro II, executado por Monvoisin e apresentado na Exposição Geral de Belas Artes de 1847.12 Logo após este episódio, apresentou-se a Ciccarelli a muito oportuna oferta do governo chileno, que lhe propôs fundar e dirigir a Academia de Pintura na capital do país. O contrato foi assinado no Rio de Janeiro, em 18 de junho de 1848, logo após o que embarca o artista na fragata de guerra inglesa Gorgona, “rumbo a Valparaíso, henchido con la meridional esperanza de poder transformar a Chile en la Atenas de América” 13. Foi recebido em outubro daquele ano em Santiago, por altos funcionários civis e eclesiásticos, bem como pelo próprio Presidente da República, o qual lhe ofereceu como ateliê uma sala do antigo Palacio de la Presidencia (atual Correo Central). 14 No Chile, a fundação da Academia de Pintura15 constituiu uma estratégia para profissionalizar a criação artística. Seu objetivo era instalar, no imaginário coletivo, a ideia de nação independente, desígnio ao qual Ciccarelli iria se dedicar, valendo-se de sua formação neoclássica, onde as novas ideias românticas não tinham espaço relevante.16 Esta opção tem sua razão de ser no fato de que a elite local buscava recriar, ainda que em contexto muito distinto, uma tradição e cultura alheias17, aderindo a formas artísticas que focalizavam mais o prestígio social do que um desenvolvimento cultural que fosse o resultado da reflexão e assimilação do fenômeno artístico como tal18. Essa matriz inicial apoiou-se em uma base político-social que adotou um ideal estético estrangeiro, mas que evidentemente não esteve isento de críticas e resistências. O discurso de Ciccarelli na inauguração da Academia, segundo Roberto Amigo, estabelece um primeiro parâmetro para a compreensão Sobre este duelo na imprensa, ver: Santos, Francisco Marques dos; James, David. “Raimundo Augusto Quinsac Monvoisin”. Anuário do Museu Imperial, 1946, pág. 29-50. 12 13 Pereira Salas, Op. Cit: pág. 64 - 65. 14 Pereira Salas, idem. Desde sua fundação, em 1849, Alessandro Ciccarelli (1810-1879) dirige a Academia por vinte anos, com uma orientação classicista; posteriormente, Ernesto Kirchbach (1832 - 1880) sucede-o, desde 1869 até 1875, sem grandes mudanças na orientação do ensino que a instituição aplicava. Somente a partir de Giovanni Mochi (1831 - 1892), que ocupou o cargo de diretor de 1876 a 1881, é que se inaugura uma flexibilidade até então desconhecida, voltada ao aperfeiçoamento das aptidões naturais dos alunos. Cfr. Galaz e Ivelíc, 1981: pág. 81-82; Cruz de Amenábar, 1984: pág.168. 15 16 Alegría, Op. Cit.: pág.174. 17 Cruz de Amenábar, Op. Cit.: pág.168. 18 Ivelic, 2000. Valéria Lima & Samuel Quiroga 243 do território de Chile como idealização19 da paisagem. Ainda assim, não estavam colocadas as possibilidades, no contexto em questão, de fazer da natureza, e de sua representação, ícones das propostas políticas associadas às reformas das quais a Academia de Pintura fazia parte. Se, em outros contextos, diretamente associados à trajetória de Ciccarelli,20 a pintura de paisagem assumiu a tarefa de comemorar a política oficial e ganhou um estatuto que lhe permitia ser a tradução de seus projetos, o mesmo não parece ter sido possível em solo chileno. A Academia de Pintura seria, no bojo das reformas republicanas, a evolução lógica de uma das áreas abertas pelo ensino de desenho, sendo este o suporte técnico fundamental do progresso. Em seu interior, portanto, imperariam as orientações normativas e os esforços empreendidos por seu diretor no sentido de garantir o sucesso da instituição, traduzido pela fidelidade à tradição clássica e ao compromisso com os valores vigentes. Neste sentido, podemos sugerir que Ciccarelli reconhecia válidas para sua gestão na instituição americana os preceitos orientadores do estabelecimento no qual se formara. Os estatutos do Reale Istituto di Belle Arti de Nápoles, vigentes a partir de 1822 e ainda válidos no momento da passagem de Ciccarelli pela instituição, determinavam que a instituição visava “proteggere stabilmente la istituzione della gioventù nelle arti del disegno con quei mezzi che l’esperienza di tutti i tempi ha fatto conoscere i più propri a formare valenti artisti, a perfezionare e diffondere nel pubblico il buen gusto”21 Não é difícil encontrar uma clara ressonância destas orientações no discurso pronunciado por Ciccarelli na abertura da Academia de Pintura, onde enfatiza a importância da fidelidade aos cânones clássicos e o compromisso dos jovens artistas formados no interior desta tradição com a elevação das artes e do bom gosto.22 Na academia Cfr. Amigo, 2009: pág. 171. O autor emprega o termo “ideologización”, o qual não possui tradução direta para o idioma português. Optamos pelo termo “idealização”, uma vez que o sentido desejado é o de adequar o sistema real (paisagem chilena) ao sistema ideal (Belo ideal, da tradição clássica), contemplando um dos componentes das ideologias, qual seja, o de apresentar-se como um programa de ação. 19 Referimo-nos ao papel da pintura de paisagem na corte de Ferdinando IV, rei de Nápoles, através da atuação de Jakob Philipp Hackert (1737-1807) e na corte bragantina no Rio de Janeiro, com Nicolas Antoine Taunay (1755-1830). Sobre o assunto, ver importante ensaio de Luciano Migliaccio, 2008. 20 21 Citado em Spinosa, 1997: pág. 65. A. Ciccarelli. Discurso pronunciado na abertura da Academia de Pintura, em 1849. Disponível em: http://www.mac.uchile.cl/catalogos/anales/cicarelli.html. Acesso: 01/03/2015. 22 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 244 italiana, tais preceitos alimentavam um Neoclassicismo cada vez mais comprometido com a política oficial, de tendência progressivamente conservadora nos anos 1830-40, traduzindo a ideologia da elite dominante através de uma iconografia celebrativa e de uma tipologia figurativa de forte inspiração davidiana. É no interior deste quadro que talvez fique mais claro compreender as opções de Ciccarelli diante do compromisso de fazer as artes servirem ao progresso na jovem nação republicana do Chile. Explicaria, talvez, a aparente contradição entre o que assinala Amigo sobre o papel da paisagem local em seu discurso e a conhecida oposição de Ciccarelli ao ensino da paisagem, uma vez que para ele tinha mais valor o desenho modelado da pintura de história e da pintura religiosa23. Ciccarelli iniciara sua formação artística no Reale Istituto di Belle Arti de Nápoles, e depois continuou seus estudos em Roma, onde os pensionistas eram submetidos a um forte rigor normativo, sob a direção de Vincenzo Camuccini (1771-1844). Ao privilegiar os temas antigos, fossem eles históricos, bíblicos ou mitológicos, Ciccarelli evidencia aquela formação. Em sua prática docente, seu objetivo era despertar nos alunos o entusiasmo e o fervor por esses temas, como fica demostrado nos títulos de suas obras: David dando muerte a Goliat, Muerte de Abel e Filócteles.24 Na Itália, o Neoclassicismo resistia mais do que em outros centros europeus aos inevitáveis contágios românticos, ainda que os anos 1830-40 tenham sido de forte clima romântico e religioso em Nápoles, inspirando uma pintura de forte evocação sentimental, como afirma Luisa Martorelli.25 A recepção à direção de Ciccarelli e à sua postura frente à pintura de paisagem foi problemática. Como exemplo, Antonio Smith — aluno da Academia — ao não aceitar a rigidez da formação que aquele instala na instituição, afasta-se dela em 1851. O próprio Smith, nas páginas da revista El Correo Literario26 de 1858, publica uma ácida caricatura de Ciccarelli, crítica que ativou os sentidos no meio artístico. No ano seguinte, outra vez através da imprensa, Ernesto Chartón envolveu-se em acesa polêmica com o diretor da Academia27. 23 Amigo, 2009: pág.176. 24 Galaz e Ivelíc, Op. Cit.: pág. 76 – 77. 25 Cfr. Martorelli, 1991. 26 Revista El Correo Literario. Santiago, Año I, N°8, 04 de septiembre de 1858. 27 Cfr.: De la Maza, 2012: pág. 219 - 228. Valéria Lima & Samuel Quiroga 245 É preciso destacar que, no Chile da época, entre pintores e estudiosos da arte o gênero da paisagem contava com uma avaliação favorável, distinta e inclusive oposta à que Ciccarelli impunha à Academia de Pintura. Dão conta desta avaliação a produção dos artistas viajantes e dos pintores vinculados ao ateliê de Antonio Smith, as publicações de Marcial González28 e de Vicente Grez29, e os prêmios outorgados em diversos concursos realizados em Santiago durante a segunda metade do século XIX30. Ao contrário, a Academia, valendo-se efetivamente de sua função diretiva no campo das artes visuais, impunha uma hierarquia de gêneros segundo a qual a paisagem foi relegada por ser considerada de escasso valor na formação artística. Levando em conta estes antecedentes, chama nossa atenção constatar que as paisagens de Ciccarelli constituam, apesar de seu reduzido número, um significativo aspecto de sua caracterização no continente, seja no Brasil ou no Chile. Diante disso, poderíamos nos perguntar o seguinte: no Chile, a postura de Ciccarelli frente à pintura de paisagem é contraditória? Seria-o também no Brasil? Ou esta polêmica é apenas um mito construído pelas narrativas? Por fim, se considerava a paisagem um gênero menor, por qual razão decidiu pintá-lo? É curioso pensar que a única paisagem conhecida de Ciccarelli no Brasil tenha se transformado em forte marca identitária de sua atuação no meio artístico local, facilitando sua inclusão na assim denominada “iconografia de viajantes”. Rio de Janeiro [Fig. 01], obra assinada e datada (“Eque. Ciccarelli Rio 1844”), apresenta uma vista da baía e de seu entorno, construída na chave clássico-romântica que tanto caracteriza as obras de artistas estrangeiros atuantes no Brasil neste período. O rigor do desenho não impede a emergência de tonalidades e artifícios compositivos de forte evocação sentimental. Ainda assim, a diversidade pitoresca da cena, que reúne as plácidas águas da baía, um recorte da cadeia de montanhas que envolve a cidade, elementos da flora local e a presença do homem inserido na paisagem, submete-se à cuidadosa ordenação que Ciccarelli lhe impõe, fiel aos princípios que o haviam orientado na Itália. A obra foi adquirida em 1996 pela Fundação Rank-Packard/Fundação Estudar, aos herdeiros González, Marcial. “Los pintores chilenos. El paisaje.” En: El Correo de la Exposición, Año I, N° 4, 23 de octubre de 1875, pág. 57 - 59. 28 29 Grez, 1882. Especificamente, os concursos de pintura: a Exposición de Pinturas de la Sociedad de Instrucción Primaria (1867), a Primera Exposición de Artes e Industrias (1872) e la Exposición Internacional (1875). 30 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 246 da coleção privada do antiquário de origem russa, estabelecido em Paris nos anos 1920, Jacques Kugel. Em 2007, foi doada à Pinacoteca do Estado de São Paulo e encontra-se em exposição permanente nas salas do museu. Desperta igualmente atenção e curiosidade o fato de que esta obra possua duas outras versões em instituições no Brasil e nos Estados Unidos. Vista do Rio de Janeiro [Fig.02], óleo não assinando nem datado, pertence ao acervo do Instituto Ricardo Brennand, na cidade do Recife. Possui dimensões um pouco menores do que a tela da Pinacoteca e, segundo informações do Instituto31, estivera guardada por algum tempo na instituição paulistana, antes de seguir para a capital pernambucana. Quanto à sua origem, ao contrário da maioria das obras de paisagem que integram hoje o acervo Brennand, oriundas da coleção da Cultura Inglesa, Sir Henry Joseph Lynch, a versão da paisagem de Ciccarelli teria chegado ao Instituto pelas mãos de Mario Fonseca ou de Max Perlingeiro32. A outra versão de que temos notícia encontra-se na Coleção Patricia Phelps de Cisneros, em Nova Iorque. Intitulada Vue de Rio de Janeiro depuis l’île de Cobras [Fig. 03], a obra está atribuída a Raymond Quinsac de Monvoisin (1790, Bordéus – 1870, Bolonha-sobre-mar), com datação aproximada entre 1848-1857. A Fundação Cisneros tem origem na Venezuela e foi criada nos anos 1970, com sede em Nova Iorque e Caracas. Vue de Rio de Janeiro depuis l’île de Cobras faz parte da coleção Paisagens das Américas, uma das cinco divisões do acervo da Fundação. A obra, pelo que permite ver a reprodução de que dispomos, é de fato uma versão da tela da Pinacoteca, porém, com indiscutível inferioridade técnica e com elementos distintos da paisagem original. O interesse de Ciccarelli pela pintura de paisagem, logo após sua chegada ao Brasil, pode estar relacionado à crítica positiva endereçada a seu Reunião de pescadores e mulheres cantando arieta napolitana ao luar, cena de gênero combinada à paisagem, na qual, considerando descrições contemporâneas da obra, o artista parece explorar efeitos comuns a certa tendência da pintura de paisagem napolitana no contexto de onde partira, onde era comum o recurso a noturnos em claro de luar33. Além disso, o ambiente favorável ao registro da natureza local, que atraía e ocupava os pincéis estrangeiros nos Hugo Coelho Vieira, Núcleo de Pesquisa e Documentação do Instituto Ricardo Brennand, 2012. 31 32 Respectivamente, antiquário carioca e editor e empresário cultural. 33 Cfr. Martorelli, Op. Cit. Valéria Lima & Samuel Quiroga 247 anos 1840, parece também tê-lo convencido das vantagens de dedicar-se ao gênero. Vale mencionar, nesse sentido, a observação de Manuel de Araújo Porto-Alegre, que em artigo na Minerva Brasiliense sobre a Exposição de 1843, elogia a participação dos “artistas estrangeiros que vieram residir em nossa pátria: sejam elles sempre bemvindos, venham elles, em troco da fortuna que procuram, illustrar este povo hospitaleiro, e sem prejuízos.”34 Uma das primeiras paisagens que Ciccarelli provavelmente realizou no Chile foi Reconstrucción del Fuerte Bulnes [Fig. 04], imagem capturada durante sua passagem pelo Estreito de Magalhães, quando se dirigia do Brasil a Valparaíso, da qual apenas vimos uma reprodução35; a respeito desta imagem, comenta Eugenio Pereira Salas que é “enseña de la soberanía chilena en el extremo austral, grupos de patagones, aves y animales de la región magallánica, los que tienen una frescura difícil de encontrar en la pintura a veces engolada y artificiosa de este artista neoclásico.”36 Vista de Santiago desde Peñalolén (1853)37 [Fig. 05] — um de seus quadros mais conhecidos —, consiste em uma paisagem-autorretrato que fez parte das mais importantes exposições realizadas nos últimos anos, em Santiago38. Também circulou pelo mercado de arte Recodo de río 39 [Fig. 06], paisagem que, em 2009, esteve à venda na Casa de Remates Jorge Carroza. Por fim, não podemos deixar de mencionar que El árbol seco40 [Fig. 07], que geralmente é incluído na categoria de paisagem, em nossa opinião não passa de um estudo de elementos da paisagem, e que, por esse motivo, não seria uma obra acabada. Ainda assim, em que pese o mistério que envolve sua realização, não se pode deixar de reconhecer a qualidade destacável desta obra, o mesmo sendo justo afirmar a respeito de Recodo del río. Perguntaríamos, então, qual seria a justa avaliação e consideração deste gênero de pintura para o diretor, para quem, segundo as críticas e narrativas historiográficas, a fidelidade aos princípios do Neoclassicismo seria a Minerva Brasiliense. Jornal de Sciencias, Letras e Artes. Publicado por huma Associação de Litteratos. Rio de Janeiro, Typographia de J.E.S.Cabral, Rua do Hospício, n. 66. (quinzenal). 15 dezembro 1843, pág. 118 (grifos nossos). 34 Sitio web: Memoria chilena, consultado em 18 de fevereiro de 2015. http://www. memoriachilena.cl/602/w3-article-70542.html 35 36 Pereira Salas, Op. Cit.: pág. 64 - 65. 37 Óleo sobre tela, 73 x 92 cm. Coleção do Banco Santander, Chile. 38 Ver nota N°4. 39 Óleo sobre madeira, 32,5 x 40 cm. Assinado. Coleção particular. 40 Óleo sobre tela, 39 x 36 cm. Coleção do Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 248 exclusiva conduta a ser seguida na instituição, a fim de que os propósitos de uma formação para a cidadania fossem plenamente alcançados no Chile republicano. Nesta comunicação quisemos contrastar narrativas construídas a partir de espaços culturais nos quais circulou Alessandro Ciccarelli. O recorte privilegiado nesta oportunidade — a pintura de paisagem produzida por Ciccarelli — insere-se em um projeto de investigação que pretende, a partir do levantamento de arquivos e da elaboração de um catálogo raisonné, colocar em diálogo incoerências e contradições presentes nas narrativas elaboradas a partir da figura de Alessandro Cicarrelli, com o objetivo de construir um relato que considere fontes dispersas na Itália, Brasil e Chile. Valéria Lima & Samuel Quiroga 249 Fontes e Referências Bibliográficas Alegría L., Juan. “Ciccarelli y la construcción del discurso artístico chileno”. Martínez, Juan Manuel (ed.). Arte americano: contextos y formas de ver. Terceras jornadas de Historia del Arte. Santiago: Rill editores, 2006, pág.167 - 176. Amigo, Roberto. “Territorios de Estado. Paisaje y cartografía. Chile, siglo XIX”. Escobar, Ticio. Trienal de Chile 2009. Catálogo. Santiago, 2009, pág. 171 - 177. Becker, Howard S. Los Mundos del Arte. Sociología del trabajo artístico. 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História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 254 Figura 4 Alessandro CICCARELLI Reconstrucción del Fuerte Bulnes. s (reprodução disponível em: http://www.memoriachilena.cl/602/w3-article-70542.html . Último acesso: 06/03/2015). Valéria Lima & Samuel Quiroga 255 Figura 5 Alessandro CICCARELLI Vista de Santiago desde Peñalolén. 1853 Óleo sobre tela; 73 x 92 cm. Coleção do Banco Santander, Chile. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 256 Figura 6 Alessandro CICCARELLI Recodo de río.s.d. Óleo sobre tela; 32,5 x 40 cm. Assinado. Coleção particular. Valéria Lima & Samuel Quiroga 257 Figura 7 Alessandro CICCARELLI El árbol seco.s.d. Óleo sobre tela; 39 x 36 cm Coleção do Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 258 coleções e museus O colecionador português Luiz Fernandes e a doação de obras para o acervo da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Maria do Carmo Couto da Silva Doutora em História da Arte. Pós-doutoranda em História da Arte FAU-USP O acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (RJ), fundado por Lei Federal nº. 378, em 1937, é um dos mais ricos em termos de arte oitocentista em nosso país. Grande parte de sua coleção foi constituída em estreita ligação com a atividade de professores e diretores da Academia Imperial de Belas Artes e posteriormente da Escola Nacional de Belas Artes - ENBA, por meio da criação de uma galeria de obras de arte pertencente àquela instituição, que depois passou a constituir o acervo do Museu. Para o nosso pós-doutorado partimos de pesquisa realizada em nossa tese de doutorado1 sobre a gestão de Rodolfo Bernardelli na direção da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, entre 1890 e 1915. No capítulo quatro da tese foi comentada a importância dada pelo diretor à aquisição de obras de artistas contemporâneos ainda vivos para a Galeria da Escola. Outro aspecto importante para a constituição do acervo ao longo do século XIX foi a doação feita por colecionadores, com obras de artistas estrangeiros que deveriam preencher lacunas existentes em relação à arte internacional oitocentista.2 O assunto foi apontado pioneiramente pelo historiador Paulo Knauss em estudo recente: SILVA, Maria do Carmo Couto da. Rodolfo Bernardelli, escultor moderno: análise da produção artística e de sua atuação entre a Monarquia e a República. Campinas, SP: [s. n.]. Tese de Doutorado em História da Arte, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP, 2011. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000785279. Acesso em 15 maio 2012. 1 VALLE, Arthur. Considerações sobre o Acervo de Pintura Portuguesa da Pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/portugueses_enba.htm>. Acesso em 05 maio 2012. 2 259 No Rio de Janeiro, ao longo do século XIX também se organizaram outras grandes coleções particulares de arte significativas, com a especificidade da ênfase na arte estrangeira. (...) Especialmente o período do Segundo Reinado e das primeiras décadas da República ficaram marcadas pelos colecionadores de arte e pintura européia. O Museu Nacional de Belas possui acervo originado de colecionadores importantes, que contribuíram para a afirmação da pinacoteca da antiga Escola Nacional de Belas Artes. Antes de seu falecimento Salvador de Mendonça já havia contribuído com doações à instituição oficial de promoção das artes. Em 1922 foi a vez da viúva do Barão de São Joaquim cumprir o desejo do falecido marido, doando 64 obras à pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes, na maioria pintura a óleo, além de desenhos e aquarelas européias. Destacam-se no lote vinte pinturas de Eugéne Boudin e criações de influência impressionista como de Alfred Sisley, além de obras mais antigas como uma tela de Brueghel de Velours ou um David Teniers, do século XVII. Do universo social do Império do Brasil emergiu igualmente a coleção do Conde de Figueiredo, conhecida por 38 pinturas doadas à ENBA. Desse conjunto, é possível considerar também a articulação estabelecida com a instituição oficial das artes. Isso significa dizer que os colecionadores, através de suas doações, fortaleciam a referência institucional do campo artístico.3 Em nossa pesquisa levantamos a doação de diversos colecionadores ao Museu Nacional de Belas Artes. Cada um deles necessitaria de uma pesquisa particular sobre sua trajetória e interesses. Entre todos eles, pela importância da coleção doada em termos de arte portuguesa do século XIX, demos prioridade na pesquisa a Luiz Fernandes. Nascido na Bahia em 1859, tendo morrido em Paris em 1922, Luiz Fernandes foi um homem de grande cultura e um dos mais importantes colecionadores portugueses. Seu pai era português e a mãe baiana. A família viveu um tempo no Brasil, transferindo-se para Portugal por motivo de saúde de seu pai, que faleceu em 1879, deixando ao filho de vinte anos grande patrimônio. Luiz Fernandes viajou pelo mundo com mãe, onde teve contado com centros de arte e museus. Nessa época iniciaria uma grande coleção de xícaras, gosto que manteve até o fim de sua vida. KNAUSS, Paulo. O cavalete e a palheta. A prática de colecionar no Brasil. Disponível em: http://www.historia.uff.br/labhoi/files/May07HQ6_MUcT_cavalete_paleta.pdf. Acesso em 03/04/2011. Grifo nosso. 3 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 260 Após sua morte, seu acervo de xícaras, de partituras musicais e obras de arte foi dividido entre o Museu de Arte Contemporânea de Lisboa (Museu das Janelas Verdes), Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. A galeria da Escola Nacional de Belas Artes recebeu dessa forma uma importante coleção de obras de arte, que incluía quadros e esculturas de artistas portugueses do final do século XIX e do começo do XX. Em nossa pesquisa de pós-doutorado encontramos um único livro que comenta a sua biografia, publicado em 1923 como uma forma de homenagem por seu pertencimento a Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga.4 O texto que abre a publicação é de José de Figueiredo, primeiro diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, que menciona o grande interesse de Luiz Fernandes em colecionar de cerâmicas e partituras musicais, temas dos quais se tornaria grande conhecedor. O autor também comenta a formação de uma biblioteca grande, doada posteriormente ao Museu Nacional de Arte Antiga. Temos dessa forma um primeiro perfil do colecionador Luiz Fernandes, homem de grande cultura, que possuía um grande interesse pelas cerâmicas de diversas épocas, e um intelectual de contato intenso com a cultura brasileira, em especial, por sua vivência em Paris nos últimos anos do século XIX, quando se encontrava na cidade um grande núcleo brasileiro e português de artistas, colecionadores e escritores, cujo centro era a casa de Eduardo Prado.5 É interessante observarmos também o perfil das personalidades que prestaram homenagem a Luiz Fernandes: um exemplo é a pintora Fanny Munró, uma das poucas mulheres a se destacar no cenário das artes do final do século XIX e início do XX em Portugal. Há também, entre outras, a homenagem do poeta Affonso Lopes Vieira, escritor ligado ao neogarretismo e à Renascença Portuguesa. Outro autor que demonstrou grande amizade por Fernandes foi o jornalista Alfredo da Cunha, diretor do Diário de Notícias e da Tipografia Universal de Lisboa. O texto de Cunha reforça o interesse do amigo pela criação e preservação de instituições museológicas em Portugal no começo do século XX. IN MEMORIAM Luiz Fernandes / homenagem dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa: Amigos do Museu de Arte Antiga, 1923. 4 MIGLIACCIO, Luciano. Entre Lisboa, Paris e o Rio de Janeiro. Para o estudo das relações artísticas entre portugal e brasil na segunda metade do século XIX. In: VALLE, A., DAZZI, C; PORTELLA, Isabel (org.). Oitocentos: intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal – tomo 3. Seropédica: Ed. Da UFRRJ, 2015, p.267. 5 Maria do Carmo Couto da Silva 261 Ao longo de sua vida, ele dedicou-se especialmente a dois projetos: ao do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e ao do Museu da Grande Guerra, em Paris, em memória da Primeira Guerra Mundial, do qual ele organizou a seção portuguesa. Luiz Fernandes corresponde a um perfil de colecionador que conhece profundamente o seu acervo, chegando a manter amizade o curador do Musée du Louvre na área de cerâmica. José de Figueiredo comenta que: para Luiz Fernandes os livros de crítica e história da arte não eram apenas o complemento da obra de arte em si mesma e o seu comentário inteligente e valorisador, mas antes o melhor da sua própria alma, pois, profundamente culto e essencialmente cerebral, a obra de arte valia sobretudo para ele pelo que as gerações sucessivas de seus comentadores lhe tinha ido, pouco a pouco, acrescentando.6 Luiz Xavier da Costa, médico de Fernandes recorda a maneira como a sua casa se constituía como um verdadeiro museu com peças de diferentes períodos históricos, da porcelana requintada ao artesanato do Extremoz. Ele relata que o colecionador teria uma forma diversa de apresentar seus quadros aos visitantes: E quadros admiráveis de Columbano, em vez de suspensos ao longe nas tapeçarias das paredes, eram comodamente expostos á nossa contemplação em pequenos cavaletes, sobre os bufetes dourados do salão.7 A coleção de pinturas e desenhos doada por Luiz Fernandes a Galeria da Escola Nacional de Belas Artes é basicamente composta por pintores do realismo francês e artistas do romantismo e realismo português. Segundo J. de Mello Viana ele manteve contato com muitos brasileiros em Lisboa e Paris, considerava o Brasil a sua pátria e “orgulhava-se do prodigioso desenvolvimento da grande republica transatlântica, que visitará algumas vezes” 8. Ele seria muito amigo de Manoel de Souza Pinto, escritor e 6 Ibid: pág.9. 7 Ibid: pág 44. 8 Ibid: pág 37. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 262 professor da Cadeira de Estudos Brasileiros na Faculdade de Letras de Coimbra que divulgava a literatura brasileira em universidades portuguesas. O acervo de Luiz Fernandes no que se refere à arte portuguesa de sua época é muito significativo. Ressaltamos em sua doação as paisagens de Adolfo Greno e Alfredo Keil e podemos destacar na coleção retratos interessantes, como o da pintora Josefa Greno, feito por Adolfo Greno. Há também alguns esboços e paisagens de Silva Porto e os belíssimos Cabeça de menina (s.d) e Portão Vermelho (s.d.). O crítico Ramalho Ortigão, que foi um dos grandes admiradores das paisagens portuguesas de Silva Porto, permite compreende-las sob o viés de um nacionalismo nascente: “há essa profunda luz extraordinariamente brilhante, de uma palpitação intensa, que envolve tão caracteristicamente as margens do Tejo, banhando de um esplendor radiante as colinas que o cercam.”9 Além disso, é por meio da vegetação representada pelo artista que se sente o clima e a geografia características de Portugal: o cheiro do torrão. É bem aquela a região dos pomares com as suas árvores pequenas, roliças, bem aparadas, as pereiras e o pecegueiros na encosta abrigados do vento norte, os limoeiros em trepadeira acholchetados ao muro. É bem aquela a região das hortas ajardinadas, com os talhões de couve e os caniçados de feijão, debruados de roseiras, de dálias e de moitas de alfasema, sobre as quais adejam os zumbidos das abelhas e as esfusiadas turtuosas das borboletas cor de palha.10 A doação das obras de artistas do Grupo do Leão ligados à representação dos costumes do povo e da paisagem portuguesa, como no esboço Mulher montada sobre um burrinho (s.d.), de Silva Porto, assinalam a proximidade intelectual entre Luiz Fernandes e as propostas dos professores e alunos da Escola Nacional de Belas Artes a partir da década de 1890, em que vemos diversas tipologias de representações do Brasil sendo apresentadas nas Exposições Gerais de Belas Artes. Nas mostras da Escola de 1894 e 1895 começamos a notar uma presença cada vez mais forte de temas relativos à história nacional, à situação social ou aos costumes brasileiros, como Almeida Júnior com as telas Partida da Monção e Caipira pitando (1893); 9 RAMALHO Ortigão. Arte Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1947, p.43. 10 Ibid: pág. 43 Maria do Carmo Couto da Silva 263 Modesto Brocos com A redenção de Cam (1895), Mulatinha e Garimpeiros; e Pedro Weigartner com os quadros Vendedor de queijos, Corridas no Rio Grande e Piquete de cavalaria; ou Angelo Agostini com Através das matas, “representando um trecho de mata, com uma linha férrea e umas figuras de índios”.11 Uma outra peça a destacar na coleção Luiz Fernandes é Lição de Violino (1895), de José Malhoa, representando uma cena de gênero do século XVIII, muito em voga nos salões parisienses do final do século XIX, estimuladas por mercadores de arte como Goupil. Por outro lado a coleção de obras em papel doadas à Escola Nacional de Belas Artes possui muitas obras de artistas franceses, além de alguns trabalhos de Domingos Sequeira, Miguel Lupi e de artistas do Grupo do Leão, como Francisco Villaça e Adriano Lopes Vieira. Foram doadas ainda duas caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro, uma delas representando provavelmente Rui Barbosa e com críticas à política do Encilhamento. A proposta de preservar as caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro em um museu é bastante interessante e afirma a nova dimensão que a Galeria da ENBA assumiu na segunda metade do século XX. Tratava-se de um artista que teve grande destaque também na imprensa brasileira.12 A doação feita à Escola Nacional de Belas Artes em termos de escultura torna-se ainda mais representativa se lembrarmos que a cidade do Rio de Janeiro possui destacados trabalhos de Teixeira Lopes, como as três portas da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, possuindo ainda algumas outras obras em alguns museus brasileiros. As obras de Teixeira Lopes do acervo do MNBA estão entre as mais importantes de sua produção. Para Luciano Migliaccio “a grande porta de bronze executada pelo artista português para a Catedral de Nossa Senhora da Candelária constitui um verdadeiro marco para a renovação da arte religiosa no Brasil, a partir de sugestões simbolistas, amplamente adotadas no meio local”.13 Por volta de 1900 o escultor Teixeira Lopes já era bem conhecido no Brasil. Um artigo publicado na Gazeta de Notícias14 sobre o Salão de Paris ressalta 11 NOTAS sobre arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1 set. 1895, p.2. MALTA, Marize. Jarra Beethoven e a incrível história de uma imagem-problema. ArtCultura, Uberlândia, v. 12, n. 20, p. 135-150, jan.-jun. 2010. 12 13 MIGLIACCIO, Op. Cit: pág.274. CASTRO, Luiz de. BELLAS ARTES. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 jul. 1990, p.1. 14 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 264 a participação do artista português naquela mostra e menciona o livro publicado por Antonio Arroyo: “Soares dos Reis e Teixeira Lopes: estudo crítico da obra dos dous esculptores portuguezes precedido de pontos de vista esthetico”, que comentava sua obra. Em 1901 ocorreu a inauguração das portas da Igreja da Candelária no Rio de Janeiro. As obras, encomendadas a Teixeira Lopes em 1898, foram fundidas em bronze em Paris e expostas na Exposição Universal de 1899. Segundo artigo publicado na Gazeta de Notícias, o escultor português foi responsável pelo projeto e execução das novas portas em bronze, que substituiriam anteriores, em madeira. Os jornais cariocas comentaram os dois principais motivos dessa escolha: “atender a magnificência do templo e ligar o nome de um artista da terra amiga a um projeto monumental nacional”.15 A obra, que seria um dos maiores trabalhos decorativos de Teixeira Lopes, serviria também como modelo de escultura em bronze para as gerações de artistas brasileiros, e deveria “recordar ao mundo artístico o Rio de Janeiro que as possui.”16. Por ocasião da inauguração das portas, o diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Rodolfo Bernardelli escreveu ao escultor, dizendo que acompanhava há muito tempo a sua carreira e que: as portas fazem muito bem no lugar e é para mim uma consolação poder ter a sua preciosa companhia neste campo ainda tão pobre no meu belo país. Meus parabéns pois e espero que seja este o início de outros trabalhos do seu belo estro; assim o Brasil se enriquecerá de arte e oxalá esta possa, um dia, suplantar o café.17 A mostra de 1905 de Teixeira Lopes no Gabinete Português de Leitura, organizada por Bernardino Lobo, foi comentada pelo crítico carioca Gonzaga Duque, figura de destaque na crítica de arte brasileira. Duque percebeu na obra de Teixeira Lopes um modelo novo, muito ao gosto do fim de século brasileiro e europeu, abordado com muito entusiasmo: “a obra alli reunida é um documento de arte, em que se sente relampejar o genio na modelagem febril ou cariciosa dos typos arrancados á matéria bruta, aos golpes de pollegar e raspões d’esboçadores num jôrro 15 AS PORTAS da Candelária. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 jun.1901, p.2. 16 Ibid: pág:2. CARTA de Rodolfo Bernardelli a António Teixeira Lopes, Rio de Janeiro, 10 jul. 1901. Cfr: LOPES , A. Teixeira. Ao correr da pena: memórias de uma vida. Gaia : C. M. G., 1968, p,288. 17 Maria do Carmo Couto da Silva 265 horebeano de vida imperecivel”18. O trabalho A Caridade, apresentado nesta mostra, foi mencionado por Gonzaga Duque. Trata-se de um dos trabalhos mais importantes do escultor Teixeira Lopes, como ele nota em seu livro autobiográfico, Ao correr da pena: Foi assente no pedestal que lhe era destinado, no cemitério de Agramont, o meu grupo em mármore a Caridade, que me havia sido encomendado pelo capitalista senhor Antonio Caetano de Carvalho. Foi um dos primeiros trabalhos que aqui me encomendara logo depois do meu regresso de Paris, em 1896. Levei alguns anos a concebe-la e executa-la (...) No entanto, é um dos meus melhores trabalhos; tenho disso a consciência e por isso mesmo, a melhor paga.19 O MNBA possui uma estatueta representando um bebê, da série de crianças feitas por Teixeira Lopes. Uma destas obras foi assinalada pelo pintor em sua biografia: Abriu-se, em Lisboa, a exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes. Eu concorri com muitas das minhas obras e o sucesso da exposição foi completo. Fui a Lisboa por ocasião da abertura e assisti à inauguração e que Suas Majestades muito nos felicitaram no 1º dia. Entre os trabalhos que expus tinha a estátua, em mármore, estudo de criança, Raquel, que pertencia à Duquesa de Palmela e que já havia sido exposta em Paris, em 1900. Todos os jornais faziam os mais rasgados elogios aos trabalhos que mandei.20 Outro artista cuja doação de obras demonstrou-se importante para a constituição do acervo português do Museu Nacional de Belas Artes é Tomás Costa (1861-1932). O escultor formou-se em Portugal, com Marques de Oliveira, tendo sido colega de António Teixeira Lopes. Aperfeiçoou-se em Paris, onde foi pensionista do Estado. O acervo do MNBA possui trabalhos de Tomás Costa como Busto feminino (s.d.), que revela afinidade com a 18 DUQUE, Gonzaga. Exposição Teixeira Lopes no Gabinete Português de Leitura. Kosmos, Rio de Janeiro, ano II, n. 10, out. 1905. n.p. 19 LOPES, Op. Cit: pág.389-390. Grifo nosso. 20 Ibid: pág. 413. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 266 produção de Rodolfo Bernardelli, um dos principais escultores brasileiros do fim do século e diretor da ENBA e ainda com a escultura verista italiana. Em Criança (s.d.) de Tomás Costa, a retomada da escultura policromada, que era importante também para a geração de Bernardelli, ressalta a coerência da doação feita por Luiz Fernandes ao Brasil, trazendo ao principal museu de arte local, obras de significativa importância para a geração de artistas que reformara em 1890 a antiga Academia Imperial de Belas Artes. Demonstra também a afinidade de ideais estéticos entre Portugal e Brasil no final do século XIX, assim como as possíveis aproximações entre as propostas artísticas da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e dos artistas ligados ao Grupo do Leão em Portugal. Maria do Carmo Couto da Silva 267 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 268 coleções e museus A importância de agremiações artísticas e do colecionismo de Portugal na constituição da coleção de arte portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro Arthur Valle Professor Adjunto Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Durante as primeiras décadas que se seguiram à implantação da República no Brasil, a Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (ENBA) constituiu aquela que é provavelmente a mais significativa coleção pública de arte portuguesa oito-novecentista existente em território brasileiro. Essa coleção conta com dezenas de obras de importantes artistas atuantes nas décadas finais do século XIX e iniciais do XX, como Columbano Bordallo Pinheiro, José Vital Branco Malhoa, António Francisco Silva Porto, José Júlio de Souza Pinto, entre outros. Os significados dessa coleção eram então variados. Por um lado, a sua constituição e exibição reiterava as orientações pedagógicas implantadas na ENBA após a proclamação da República, bem como as concepções de arte moderna que a instituição buscava então promover.1 Por outro lado, agentes portugueses estavam interessados no estabelecimento dessa espécie de “vitrine” no seio da Escola como um fator que contribuía para a consolidação de um mercado consumidor de arte, fomentado pelas colônias portuguesas em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Partindo dessa última afirmação, a presente comunicação tem como objetivo principal discutir o papel desempenhado por agremiações artísticas e pelo colecionismo de Portugal na formação da coleção em questão. Centrar-nos-emos na discussão de dois tópicos: (1) as aquisições feitas pela ENBA na “Exposição de Arte Portuguesa”, promovida no Rio de Janeiro em 1902, sob os auspícios da Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa; (2) a doação de pinturas feita pelo colecionador luso-brasileiro Luís Fernandes, efetivada em 1926. Pretendemos assim evidenciar a intensidade Cfr. VALLE, A., “O acervo de pintura portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes no contexto pedagógico pós- Reforma de 1890.” Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 19, 2013. Pp. 117-139. 1 269 dos intercâmbios artísticos entre Brasil e Portugal no período, bem como o quanto a constituição da coleção de arte portuguesa da ENBA foi tributária de práticas expositivas e colecionistas engendradas em Portugal a partir de fins do século XIX. Aquisições na “Exposição de Arte Portuguesa” de 1902 Em 17 de julho de 1902, no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, foi inaugurada a “Exposição de Arte Portuguesa,” organizada pelo representante de artistas lusitanos Guilherme da Rosa. Essa mostra contava com mais de uma centena de obras, entre pinturas, peças de arte aplicada e projetos arquitetônicos, e obteve um grande sucesso de público e de vendas. Dela participaram alguns dos mais consagrados artistas portugueses da época, como Raphael Bordallo Pinheiro, João Vaz e José Velloso Salgado, além dos já referidos Malhoa e Columbano, bem como artistas então ainda considerados “novos,” como Adriano de Souza Lopes. Essa exposição foi largamente resenhada na imprensa carioca da época e obteve boa repercussão também do outro lado do Atlântico, em periódicos lisboetas como O Dia, O Seculo e O Occidente. Além de críticas escritas, foram publicadas diversas fotografias de obras presentes na exposição e imagens de sua instalação (FIG. 1). Aqui, todavia, não nos deteremos na recepção da “Exposição de Arte Portuguesa” como fizemos em outro trabalho,2 mas apenas na discussão de um dado significativo e até o momento pouco conhecido: a relação entre a mostra e a Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa (SNBA).3 A SNBA, fundada em 1901,4 foi a mais importante agremiação artística portuguesa de inícios do século XX. Ela surgiu como resultado da junção de duas outras agremiações artísticas lisboetas: (1) a Sociedade Promotora de Belas Artes, criada em 1860, e (2) o Grémio Artístico, fundado em Cfr. VALLE, A.. “As aquisições da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro na ‘Exposição de Arte Portuguesa’ de 1902.” In: NETO, M. J.; MALTA, M. (org.). Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos Séculos XIX e XX - Perfis e Trânsitos. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2014. Pp. 347-363. 2 Cfr. TAVARES, C. A.. A Sociedade Nacional de Belas-Artes: um século de história e de arte. Vila Franca de Xira: Ed. Projecto, Núcleo de Desenvolvimento Cultural de Vila Nova de Cerveira, Fundação Bienal de Vila Nova de Cerveira, 2006. 3 4 Ibid: pág. 27-29. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 270 1890 na sequência das exposições que os integrantes do chamado Grupo do Leão5 realizaram nos anos 1880. Para a argumentação que se segue, é fundamental ressaltar que a SNBA deu continuidade sobretudo às ações do Grémio, adotando os termos estatutários, a atribuição de deveres e a forma de organização interna dessa última agremiação. A análise de uma série de evidências aponta para uma ligação estreita entre a mostra portuguesa no Rio em 1902 e a SNBA. Por exemplo, diversos periódicos cariocas reportaram a ligação entre Guilherme da Rosa e a Sociedade; em um artigo da Revista da Semana se afirmava, inclusive, que a mostra no Rio fazia parte de um “projeto da Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa [que] consiste em abrir um mercado à Arte portuguesa no Brasil, e simultaneamente, um mercado à Arte brasileira em Portugal.”6 Além disso, alguns meses após a realização da exposição no Rio, Guilherme da Rosa fez publicar, no Diario de Noticias de Lisboa, um documento que, segundo ele, “liquida[va] as responsabilidades que contraí com a Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa, por ocasião da minha recente viagem ao Brasil.”7 Tratava-se de uma carta assinada pelo pintor português João Ribeiro Christino da Silva, na qual este designava a si próprio como “presidente da comissão organizadora da exposição de arte Portuguesa no Rio de Janeiro, levada aí a cabo pelo Exm. Sr. Guilherme da Rosa.”8 Essas notícia confirma, portanto, que, em 1902, Rosa representava, de maneira formal, um grupo de artistas portugueses vinculados a SNBA. Outro indício da relação entre a “Exposição de Arte Portuguesa” e a SNBA é o conjunto de obras expostas no Rio, muitas das quais haviam participado antes de mostras da Sociedade, em 1901 e 1902, ou do Grémio Artístico, em finais dos anos 1890. As obras adquiridas pela ENBA às quais aqui vamos nos referir mais detalhadamente exemplificam o quanto a “Exposição de Arte Portuguesa” representava uma espécie de extensão Para o surgimento do Grupo do Leão na arte portuguesa, ver: FRANÇA, J.-A.. A Arte em Portugal no século XIX. 3ª edição. Vol. 2. Lisboa: Bertrand Editora, 1990, pág. 23 sg; SILVA, R. H. da. “Silva Porto e a pintura naturalista.” In: LAPA, P.; SILVEIRA, M. de A. (Org.) Arte Portuguesa do Século XIX: 1850-1910. Vol. 1. Lisboa: Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado/ Leya, 2010. Pp. LI-LXIII. 5 6 BONHOMME, J.. “CRÔNICA.” Revista da Semana, Rio de Janeiro, 13 jul. 1902, pág. 1. “A exposição d’arte portuguesa no Rio de Janeiro.” Diario de Noticias, Lisboa, 26 nov. 1902, pág. 2. 7 8 Ibid: pág. 2. Arthur Valle 271 das políticas expositivas dessas duas agremiações lisboetas, que, como salientamos, eram estreitamente vinculadas. Um documento assinado pelo então diretor da ENBA Rodolpho Bernardelli9 informa que 11 quadros foram adquiridos na mostra de 1902: 4 de Columbano (A Luva Branca, A Locandeira, Madona e Soldado); 1 de Velloso Salgado (Azinhaga em Benfica); 1 de Ernesto Condeixa (Um Homem do Mar); 1 de Carlos Reis (Os Amores do Moleiro); 1 de Manoel Henrique Pinto (A Saída do Rebanho); e 3 de Malhoa (A Sesta, A Corar a Roupa e Gozando os Rendimentos). Todas essas obras pertencem hoje à Coleção de Pintura Estrangeira do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, que incorporou em 1937 a parte mais importante do antigo acervo da Escola. A única exceção é a Madona de Columbano, que, em entrevista na época, Guilherme da Rosa declarou ter ele próprio comprado.10 Das três obras de José Malhoa, Gozando os Rendimentos, um quadro de temática urbana relativamente rara na produção do artista, que retrata um “forte burguês que repousa num banco de jardim, provavelmente o de S. Pedro de Alcântara,”11 havia sido exibido, sob o n. 94, na exposição comemorativa do 4º. Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, organizada pelo Grémio Artístico em 1898. Já A Sesta indubitavelmente é a obra exibida sob o n. 63 na exposição organizada pela SNBA em 1902, como comprova um desenho reproduzindo o quadro, publicado no jornal lisboeta O Seculo.12 Apenas a respeito de A corar a roupa, não encontramos referências inequívocas em exposições lisboetas anteriores. Todavia, essa tela bem poderia ser o Estudo exposto sob o n. 77 na mostra da SNBA de 1901. O escritor português Henrique de Vasconcellos resenhou esse Estudo à época, juntamente com outro quadro intitulado Cebolas, que Malhoa também enviou para o Rio, asseverando que nessas duas obras “as figuras são sadias, são verdadeiras camponesas, trigueiras e fortes. Há, talvez, 9 Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em abril de 1903. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903, pág. 225. “De Columbano ficaram nas Belas Artes os seguintes quadros: A locandeira, A luva branca, Cabeça de mulher, O soldado. A Madona, comprei-o eu.” “A exposição d’arte portuguesa no Brasil.” O Dia, Lisboa, 20 set. 1902, pág. 2. 10 11 SILVA, R. H. da. “Invocação do Grupo do Leão e do naturalismo português.” In: O Grupo do Leão e o Naturalismo português. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1996, pág. 58. 12 “Sociedade Nacional de Bellas Artes.” O Seculo, Lisboa, 20 abr, 1902, pág. 1. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 272 no Estudo um excesso de branco, as roupas a secar”.13 Essa descrição de Vasconcellos se adequa bem, portanto, à obra adquirida pela ENBA; além disso, corroborando essa hipótese de identificação, sabemos que Malhoa realmente considerava o quadro aqui em questão um estudo para uma versão maior de A corar a roupa, hoje perdida, que foi exibida na Exposition Universelle de Paris, em 1900.14 Dois dos três quadros de Columbano que sabemos terem sido adquiridos pela ENBA - A Luva Branca, A Locandeira e Soldado - também figuraram em mostras lisboetas anteriores. A versão d’A Luva Branca que ficou no Rio seria a mesma exposta na mostra do Grémio de 1897, sob o n. 32. Já A Locandeira participou da mostra da SNBA de 1902, sob o n. 17, onde compôs com outros dois quadros de pequeno formato centrados em figuras femininas um conjunto que foi muito elogiado pelos críticos de arte portugueses. Somente a respeito do terceiro quadro de Columbano, Soldado, é mais difícil fazer afirmações, pois ainda não foram encontrados indícios que permitam identificar de maneira inequívoca que obra com esse título foi efetivamente adquirida pela ENBA em 1902. Além das obras de Malhoa e Columbano, dois outros quadros comprados pela Escola teriam figurado em exposições da SNBA. O primeiro é A Saída do Rebanho, de Manoel Henrique Pinto, que participou da mostra de 1901, sob o n. 105. O segundo é a tela de Ernesto Condeixa intitulada Um homem do mar, que muito provavelmente é a obra homônima que figurou na exposição de 1902, sob o n. 23, que possuía exatamente as mesmas dimensões (73 x 53 cm) da obra que foi incorporada pela ENBA em 1902. Apenas com relação a Azinhaga em Benfica de Velloso Salgado e Os amores do moleiro de Carlos Reis não foi possível, até o momento, verificar qualquer participação em mostras organizadas pela SNBA ou pelo Grémio Artístico. 13 VASCONCELLOS, H. de. “Exposição de Belas-Artes.” Brasil-Portugal, Lisboa, n. 58, 16 jun. 1901, pág. 155. 14 A versão de A corar a roupa exposta em Paris se perdeu no naufrágio do navio a vapor Saint-André, quando retornava para Lisboa, junto com uma série de importantes obras de artistas portugueses. Arthur Valle 273 A doação de Luís Fernandes Depois de 1902, a coleção de arte portuguesa da ENBA foi sendo aumentada lentamente, com aquisições importantes, mas esparsas no tempo. Em termos quantitativos, nada semelhante à grande compra de 1902 se verificou até 1926, quando a Escola recebeu um novo contigente de obras portuguesas, no bojo da doação feita pelo colecionador luso-brasileiro Luís José Seixas Fernandes (1859-1922). Luís Fernandes é bem conhecido na historiografia de arte portuguesa, especialmente pela sua participação na criação do Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa (MNAA). JoséAugusto França o recordou em seu clássico A Arte em Portugal no século XIX15 e, nos últimos anos, tem surgido textos analisando a sua atuação como primeiro diretor do Grupo dos Amigos do MNAA.16 Todavia, aquilo que aqui mais nos interessa - a sua atividade como colecionador de arte ainda carece de investigações sistemáticas. Luís Fernandes17 (FIG. 2) nasceu no Estado da Bahia, Brasil, filho de Justino José Fernandes, um português natural do Minho, e de Maria Emília Figueiredo Seixas, de nacionalidade brasileira. Quando Fernandes tinha cerca de 12 anos, sua famila se mudou para Portugal, em função do adoecimento de seu pai; após a morte deste, Fernandes herdou uma importante fortuna, que lhe deu a possibilidade de se dedicar, ainda no final do século XIX, ao colecionismo de arte. José-Augusto França, ao traçar um panorama geral do colecionismo em Portugal em fins de Oitocentos, definiu a coleção de Fernades como “uma colecção de moveis, porcelanas, esmaltes, tapeçarias, leques, com poucos quadros a nobilitarem o bricabraque mais sensivelmente reunido.”18 Com efeito, no palacete onde reunia sua coleção, na antiga Travessa de São Marçal (hoje Rua Luís Fernandes n. 15 FRANÇA, op. cit: pág. 80. Cfr. BASTOS, C.; CARVALHO, M. B. (org.). Por amor à arte. Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. 100 anos 1912-2012. Lisboa: Amigos do Museu, 2012; BAIÃO, J.. “O Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Fundação e primeiros anos.” In: De Amiticia. 100 anos do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa, MNAA/ IMC, 2012. Pp. 22-38. 16 Cfr. Verbete FERNANDES (Luís). In: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa, Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia Limitada, [s.d.], v. XI. P. 108; “O Palácio do Menino de Ouro.” Olisipo: boletim do Grupo Amigos de Lisboa, Lisboa, S. 2, nº 12, mar. 2000. Pp. 111-114 17 18 FRANÇA, op. cit: pág. 80. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 274 1) em Lisboa, o destaque era dado aos objetos de cerâmica, em especial às chávenas. Todavia, contemporâneos do colecionador no Grupo dos Amigos do MNAA negavam que ele fosse um mero “bric-à-braquista” e frisavam o gosto apurado que regia a maneira de expor a sua coleção. Segundo o depoimento de um contemporâneo, no palacete da Travessa de São Marçal as obras de arte ocupavam “os lugares para os quais pareciam naturalmente destinadas, [...] todas subordinadas completamente à decoração e adorno dos vários aposentos, ou aos fins para que haviam sido criadas.”19 Os quadros de Columbano que foram depois legados a ENBA, por exemplo, “em vez de suspensos ao longe nas tapeçarias das paredes, eram comodamente expostos à nossa contemplação em pequenos cavaletes, sobre os bufêtes dourados do salão.”20 Luís Fernandes faleceu em Paris no dia 6 de fevereiro de 1922. Menos de uma semana depois, o seu testamento, que datava de 18 de dezembro de 1914, foi lido na conservatória do Registro Civil da Rua Ferreira Borges, em Lisboa. Uma cópia integral se encontra conservada no Gabinete de Estudos Olisiponenses e nela podem ser lidas as indicações de Fernandes quanto ao destino de suas coleções de arte.21 Insituições portuguesas como o MNAA e o Museu de Arte Contemporânea (Museu do Chiado) foram alguns dos principais beneficiários, mas instituições de sua terra natal, o Brasil, também receberam doações significativas. Foi o caso do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia e da ENBA do Rio. O trecho que se refere ao legado para a Escola especificava o seguinte: “Deixo ao Estado Brasileiro, com o exclusivo fim e aplicação de serem colocados e entrarem em exposição na Academia [sic] Nacional de Belas artes do Rio de Janeiro, todos os meus quadros a óleo, desenhos, estampas, gravuras, [...] esmaltes, bronzes e mármores.”22 Infelizmente, das diferentes seções da coleção de Luís Fernandes, apenas aquela incorporada pelo MNAA de Lisboa, consituída em sua grande maioria por peças de cerâmica, pode ser reconstituída com precisão.23 19 In memoriam. LUIZ FERNANDES. Homenagem dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa, [S.n.], 1923, pág. 44. 20 Ibid: pág. 44. Cfr. Testamento de Luís José Fernandes [cópia; Lisboa, 4 de março de 1922]. Gabinete de Estudos Olisiponenses, MS-MÇ 1416 CMLEO. 21 22 Ibid: pág.6-7. Cfr. LEGADO DE LUÍS FERNANDES - 1923, Código de referência. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa. PT/MNAA/AJF/APF-MNAA-M/002/00005, Cota atual: AJF-Cx.4-P.14 23 Arthur Valle 275 Nada relativo à doação para a ENBA, que, como indicamos, só teria sido recebida em 1926, foi até o momento encontrado em arquivos portugueses. É possível que um registro se encontre no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, que, como já referido, incorporou a parte mais importante das coleções da ENBA. Atualmente, os arquivos do Museu se encontram inacessíveis para investigação, mas suas coleções podem ser consultadas através do Sistema de Informação do Acervo do Museu Nacional de Belas Artes (SIMBA): um levantamento que realizamos nesse sistema em setembro de 201424 revelou nada menos do que 113 obras relacionadas à doação de Luís Fernandes. Embora esse levantamento seja provavelmente incompleto, ele parece revelar, em linhas gerais, o que foi incorporada pela ENBA. Em termos quantitativos, destacam-se os conjuntos de arte contemporânea ao colecionador, especialmente os de arte portuguesa, com um total de 40 obras (18 desenhos, 18 pinturas e 4 esculturas), e arte francesa, com um total de 37 obras (31 desenhos, 2 pinturas e 4 esculturas). De maneira menos significativa, também se encontram representadas outras “escolas:” a belga, com 1 pintura atribuída a John Michaux; a brasileira, com 1 bronze de Auguste Girardet; a espanhola, com 1 pintura de Enrique Atalaya Gonzales; a italiana, com 1 pintura de Giuseppe Carelli; a holandesa com 2 pinturas de P. J. Lutgers; e a russa, com 4 esculturas de Eugène Lancere. Há, ainda, um conjunto de 15 obras de procedência desconhecida e um pequeno contingente de obras de “mestres antigos,” como o italiano Corrado Giaquinto e o português Domingos António de Sequeira, bem como 12 peças classificadas como de “arte decorativa” (travessa, defumador, jarra, relógio etc.). No contexto da presente comunicação, nos interessa sobretudo a composição da coleção de arte portuguesa legada por Luís Fernandes à ENBA. Seu interesse estava voltado para a produção daqueles artistas que a historiografia de arte lusitana convencionou chamar “naturalistas” e para gêneros como a paisagem, o retrato e a pintura de gênero - uma predileção que Fernandes partilhava com outros colecionadores portugueses de sua geração, notadamente com o importante político José de Mascarenhas Agradeço a Mary Komatsu Shinkado, bibliotecária do Museu Nacional de Belas Artes, por gentilmente ter me possibilitado consultar esse sistema. 24 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 276 Relvas.25 Destacam-se artistas cujas obras já haviam sido incorporadas em 1902, como José Malhoa, com Lição de Violino (quadro originalmente exibido na mostra do Grémio Artístico de 1895 sob o n. 105, com o título Um compasso difícil), ou Columbano, com dois quadros que figuraram na exposição do Grémio de 1896: A refeição (originalmente intitulada Estudo (Efeito de Noite)), e A mulher da luneta. Mas a doação de Luís Fernandes continha obras de diversos outros artistas portugueses de relevo. Um de seus principais destaques é um conjunto de obras de pequenas dimensões atribuídas a Silva Porto:26 5 pequenas “manchas” de paisagem e 2 obras centradas na figura humana - Cabeça de Menina e Mulher montada sobre um burrinho, essa última relacionada a uma composição de grandes dimensões chamada A Volta do Mercado, atualmente no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado de Lisboa. Ainda entre as pinturas a óleo, encontramos obras de Adolfo Cesar de Medeiros Greno, Alfredo Cristiano Keil, António Monteiro Ramalho, Carlos Reis, Francisco Villaça e João de Melo Falcão Trigoso, entre outros. Duas esculturas de António Teixeira Lopes também se destacam: Menino brincando, realizada em pedra-sabão, e A Caridade, uma redução em bronze de uma das mais conhecidas obras do escultor. Entre os desenhos, encontramos obras de artistas de diversas gerações como Sousa Lopes, Alfredo Roque Gameiro, Carlos Reis, Miguel Ângelo Lupi, Raphael Bordallo e Ricardo Hogan. Praticamente todas as peças que integram a doação de Luís Fernandes aguardam por um esforço sistemático de investigação. À guisa de conclusão, é importante frisar o quanto as evidências que acima procuramos reunir demonstram a importância de agremiações artísticas e do colecionismo portugueses no processo de constituição da coleção de arte portuguesa da ENBA. Esses fatores tiveram, de resto, uma repercussão ainda mais ampla. Por exemplo, o sucesso da “Exposição de Arte Portuguesa” de 1902 teria desencadeado a importante série de exposições de artistas portugueses no Brasil, que se estendeu até os anos 1920 - inclusive, nesse movimento, alguns artistas como Malhoa e Carlos Reis levariam seus Cfr. GRILO, Fernando. “COLECCIONISMO E MERCADO DE ARTE NACIONAL E INTERNACIONAL NO INÍCIO DO SÉC. XX. A COLEÇÃO DE JOSÉ RELVAS.” ARTIS. Revista de História da Arte e Ciências do Património, Lisboa, 2ª série, n. 2, maio 2014. Pp. 150-157. 25 Cfr. SILVA PORTO, 1850-1893, Exposição comemorativa do centenário de sua morte. Lisboa: Instituto Português de Museus/ Museu Nacional de Soares dos Reis, 1993. 26 Arthur Valle 277 quadros até outros países latino-americanos, como a Argentina e o Chile. A constituição da coleção de arte portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes do Rio se apresenta, assim, como um objeto privilegiado cujo estudo permite que aprofundemos o entendimento dos intensos intercâmbios artísticos estabelecidos entre Portugal e Brasil nos anos finais do século XIX e iniciais do XX. Referências bibliográficas “A exposição d’arte portuguesa no Brasil.” O Dia, Lisboa, 20 set. 1902. P.2. “A exposição d’arte portuguesa no Rio de Janeiro.” Diario de Noticias, Lisboa, 26 nov. 1902. P. 2. BAIÃO, J. “O Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. 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Programa de Pós-graduação em Relações Étnico Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica do RJ Pensar a história da formação do acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, correspondente ao século XIX, é um importante desafio. Parte do acervo abriga a coleção da família real portuguesa, que fugiu para o Brasil em 1808, quando das invasões napoleônicas.1 Outra parcela é composta de doações para a Academia Imperial de Belas Artes – e, posteriormente, já sob os auspícios da República, para a Escola Nacional de Belas Artes – feitas por particulares, que, por diferentes motivos, presentearam a instituição com telas, sobretudo, de artistas estrangeiros. Todavia, parte significativa do acervo do Museu Nacional de Belas Artes referente ao século XIX é constituída de obras de alunos e professores que passaram pala Academia e pela Escola Nacional de Belas Artes. Obras essas que, em parte, foram compradas, que foram consagradas como prêmio de viagem para seus autores e que foram vencedoras de exposições de belas artes.2 Nesse sentido, o presente artigo pretende refletir sobre uma parte específica da coleção artística do Museu Nacional de Belas Artes, tendo como base principal para o desenvolvimento da pesquisa o arquivo documental do Museu Dom João VI da Escola de Belas Artes da UFRJ. O arquivo do Museu Dom João VI pode ser compreendido como um “abrigo da trama de documentação e fontes escritas na qual se enredam as obras de arte”.3 SOUZA, Alcidio Mafra de (ed.). O Museu Nacional de Belas Artes. São Paulo: Banco Safra, 1985. p. 1-10. (Série Museus Brasileiros) 1 DAZZI, Camila. Por em prática e Reforma da antiga Academia: a concepção e a implementação da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em História da Arte) - PPGAV/UFRJ. pp. 388-480 2 3 Retirado do texto de convocatória para as VIII JORNADAS DE HISTÓRIA DA ARTE: “COLEÇÕES, ARQUIVOS E NARRATIVAS”. Disponível em: <http://www. humanas.unifesp.br/ppgha/eventos/viii-jornadas-de-historia-da-arte > Acesso em: 20 fev. 2015. 281 O texto aborda um período relativamente pouco estudado da formação do acervo do Museu Nacional de Belas Artes; trata-se dos anos que sucederam imediatamente a transformação da Academia Imperial de Belas Artes em Escola Nacional de Belas Artes, momento que se delimita entre 1891, quando de fato foi iniciada a implementação da reforma, e 1894, quando aconteceu a 1ª Exposição Geral organizada pela Escola.4 Compreendida durante décadas como uma mera “questão de rótulo”5, a chamada Reforma de 1890 ficou esquecida pela historiografia da arte brasileira, tendo apenas muito recentemente sido retomada, o que torna valiosa – assim se pensa – qualquer análise sobre o período.6 Um dos meios encontrados pela Academia e posteriormente pela Escola para a formação de sua coleção – que em 1937 foi em grande parte transferida para o então recém-criado Museu Nacional de Belas Artes7 – foram as exposições gerais. Algumas obras premiadas passaram a fazer parte do acervo por meio da compra desses exemplares pela instituição, a qual usava as premiações que concedia para justificar ao governo tais aquisições (em outro momento, será comentado como se dava tal processo). Neste artigo, sempre se pautando na documentação do Museu Dom João VI da UFRJ, serão abordadas as exposições que, de um modo ou de outro, envolveram a Escola Nacional de Belas Artes e das quais fizeram parte obras que, atualmente, compõem o acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Acredita-se, desse modo, contribuir para uma narrativa sobre a história da coleção do museu. Não será realizada a análise de um logo período de tempo, mas de um momento pontual, que versa sobre um intervalo específico – 1891 a 1894 –, o qual é bastante rico se pensada a colaboração que oferece para a compreensão acerca das instituições envolvidas e das coleções (pois há, ainda, a coleção do Museu Dom João VI), do processo de Destaca-se que o então diretor da instituição, Rodolpho Bernardelli, optou por não dar continuidade numérica às antigas exposições gerais, que ocorriam desde os tempos do Império, mas denominou de “primeira” a exposição de 1894, estabelecendo assim uma suspensão ou uma ruptura com o passado, ainda que a exposição geral, mesmo com todas as suas inovações, não deixasse de ser uma manutenção das suas predecessoras. 4 5 DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. Contemporâneos. Rio de Janeiro: s/e, 1929. s/p. A única dissertação e ou tese concluída sobre o assunto à qual se teve acesso trata diretamente da transformação da Academia em Escola Nacional de Belas Artes: DAZZI, OP.CIT. 6 SALA, Dalton. As origens históricas do Acervo do Museu Nacional de Belas Artes. In: LUSTOSA, Heloisa (org.). Acervo Collection Museu Nacional de Belas Artes. São Paulo: Banco Santos, 2002. pp. 18-27. 7 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 282 colecionismo, dos colecionadores (dirigentes como Rodolpho Bernardelli), dos museus e do arquivo pesquisado. A primeira exposição geral organizada pela Escola Nacional de Belas Artes após a Reforma de 1890 aconteceu em 1894.8 Antes disso, a Escola foi sede de exposições individuais, de mostras que reuniam os trabalhos de alunos e de outras exposições que serviam para apresentar as provas do Grande Prêmio de Viagem à Europa. Também as galerias da Escola eram abertas ao público.9 No presente artigo, no entanto, são abordadas as exposições que abrigaram pinturas e esculturas que, posteriormente, passaram a integrar o acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Os relatórios ministeriais10, redigidos pelo diretor e pelo vice-diretor, respectivamente, Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoêdo, instruem que a coleção da Escola era ampliada de ano para ano. Em 1893, foram oferecidas à Escola as seguintes obras: (...) uma aquarela de Carlos Schwabe, que figurou na exposição Rosa + Cruz de Pariz e ‘Ciocciarre’, modelo em gesso de Preatani, pelo Sr. Luiz Resende. Foram adquiridos por compra: um quadro a óleo com moldura, de Diana Garcia, ex-aluna desta Escola, representando uma costureira, por 190$; duas aquarelas de G.Bethune, com moldura, por 1:000$000. Do Ministro da Justiça e Negócios Interiores foi remetido um quadro a óleo, de Eugenio Teixeira, representando a ‘Primeira Communhão na América’.11 Em 1894, a Coleção da Escola recebeu alguns acréscimos. Graciosamente oferecido pelo seu autor, o artista italiano Fabbio Fabbi, recebeu a Escola um quadro intitulado Algeriana. Enviado pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, deu entrada na galeria um Para maiores explicações sobre o motivo de a exposição geral ter ocorrido em 1894, consultar: DAZZI, OP.CIT: pág. 296. 8 AMOÊDO, Rodolpho. Anexo Q. Relatório apresentado ao vice-presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Alexandre Cassiano do Nascimento, Ministro do Estado Interino da Justiça e Negócios Interiores, em março de 1894. p. 12. 9 Nos relatórios anuais do ministro do Estado Interino da Justiça e Negócios Interiores, havia invariavelmente um espaço reservado à Escola Nacional de Belas Artes; quando publicadas, essas notícias, em geral sucintas, eram, por vezes, acompanhadas de anexos mais detalhados, escritos pelos próprios diretores da instituição. 10 11 AMOÊDO, OP.CIT: pág. 12. Camila Dazzi 283 quadro a óleo do pintor Eduardo de Martino, representando o Porto de Montevideo. Este quadro, que estava na Secretaria da Industria, Viação e Obras Públicas, foi atravessado por um projectil vindo do mar durante a revolta. Será colocado na galeria, depois de convenientemente restaurado pelo conservador de quadros.12 O ano de 1894 não somente foi marcado por várias exposições sediadas no prédio da instituição, mas igualmente foi palco de exposições individuais. EXPOSIÇÕES Duas exposições de pintura realisaram-se no corrente anno, além das já citadas. No dia 1 de maio o Sr. João Baptista Castagnetto abriu sua exposição de marinhas e encerrou-a no dia 30. No dia 15 de setembro o Sr. Belmiro de Almeida Junior inaugurou sua exposição de quadros e fechou-a no dia 22 [grifos nossos].13 Verifica-se, pela breve citação anterior, que cada vez mais a Escola cedia espaço para a realização de mostras de artistas vinculados à instituição. Esse processo teve início em 4 de agosto de 1891, quando Henrique Bernardelli solicitou a exposição de quadros de sua autoria em uma das salas do pavimento térreo da Escola.14 A autorização foi concedida ao artista. No ano de 1892, Pedro Weingärtner apresentou um pedido “para melhor exposição de algumas telas de sua autoria” na sala número 2.15 Não foi localizado no arquivo do Museu D. João VI nenhum documento redigido em 1891, 1892 ou 1893 sobre a aquisição de obras que participaram das exposições de Henrique Bernardelli e Pedro Weingärtner. Não se sabe ao certo que telas integraram as referidas exposições. No entanto, uma nota sobre a exposição de Henrique Bernardelli, publicada na “Gazeta de Notícias”, descreve uma tela muito similar a “Volta ao trabaBERNARDELLI, Rodolpho. Anexo P. Relatório apresentado ao vice-presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Antonio Gonçalves Ferreira, Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores, em abril de 1895. p. 10. 12 13 IBID: pág. 9-10. 14 ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondências referente a 4 ago. 1891. p. 17A. ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondências referente a 26 set. 1892. p. 41A. 15 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 284 lho”, do mesmo artista, cujo nome foi sugerido para aquisição pela Escola em 189416 e a qual, atualmente, faz parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Mas teria a obra integrado a exposição individual de 1891? Por ora, trata-se somente de uma suposição. Nem sempre a realização de uma exposição nas dependências da Escola significava, portanto, que alguma obra do artista expositor seria adquirida para a coleção, ao menos não no mesmo ano da mostra. No relatório ministerial redigido por Rodolpho Bernardelli, verifica-se que a aquisição poderia ser um desejo dos professores da instituição, mas a verba para tanto era proveniente do governo, o que, certamente, significava uma série de entraves. Esta diretoria teve ocasião de propor ao Governo em officios ns. 692 e 792 de 7 de junho e 20 de novembro, a acquisição de dous quadros do Sr. João Baptista Catagnetto, escolhidos pela comissão de professores, nomeada para esse fim. Até a presente data não foi dada a autorização para effectuar a acquisição desses trabalhos.17 Entre as exposições individuais realizadas na Escola, certamente, foi a de Belmiro de Almeida a que mais gerou polêmica no seio da própria instituição, acabando por determinar, em certa medida, a suspensão do artista do cargo de professor substituto que ocupava na Escola.18 Mais que uma anedota, o episódio que se passou nos anos iniciais de implementação da Reforma de 1890 revela algo do sistema de exposições no prédio da Escola e do processo de aquisição das obras que passaram a compor o acervo do Museu Nacional de Belas Artes. O principal problema com a realização da exposição de Belmiro de Almeida foi o fato de ela acontecer no mês de setembro de 1894, quando os preparativos para a 1ª Exposição Geral de Belas Artes já haviam sido iniciados. A data da mostra de Belmiro de Almeida por pouco não coincidiu com a da exposição geral, inaugurada em outubro de 1894. A 1ª Exposição Geral de Belas Artes (o uso da expressão “1ª” visava reforçar uma descontinuidade em relação às edições anteriores do certame) 16 BERNARDELLI, OP.CIT: pág. 13. 17 IBID: pág. 13. 18 DAZZI, OP.CIT: pág. 251. Camila Dazzi 285 se constituía em um evento de grande importância para seus articuladores, que pretendiam fazer dela um exemplo de nível internacional. Nada poderia desviar as atenções a seu respeito, sobretudo uma mostra paralela. Indícios da tensão que se formou na Escola podem ser percebidos através da análise de um ofício de Belmiro de Almeida dirigido a Rodolpho Amoêdo, em 27 de julho de 1894. Em resposta ao officio de hoje cumpre-me declarar-vos que, tendo autorizado o restaurador desta escola Sr. João José da Silva a entender-se com essa Directoria a respeito da exposição de trabalhos por mim executados em Roma e alguns dos quaes já adquiridos pelo Governo, tive ciencia da possibilidade de expor taes trabalhos, o que de resto tem sido praxe entre os professores da Escola N. de Bellas Artes. Nestas circunstancias, e tendo já a promessa formal do Ministro da Justiça e Negocios Interiores de vir inaugurar a referida exposição, espero que a falta de uma formalidade, de que não tinha conhecimento, não será motivo para que a exposição não seja inaugurada [grifos nossos].19 A disputa entre Belmiro de Almeida e Rodolpho Amoêdo – então diretor interino da Escola, na ausência de Rodolpho Bernardelli, que se encontrava em Chicago em função da Exposição Universal20 – não se encerrou nem mesmo após a suspensão de Belmiro de Almeida do cargo de professor substituto, em julho de 1893. Tal suspensão foi executada por Amoêdo e, posteriormente, aprovada pelo Ministério da Justiça: “em referencia aos officios 717.718.7. 720 e 725 de 28 e 30 de julho e de 2 de agosto últimos, ter approvado o acto de suspensão do professor interino Belmiro de Almeida Junior”.21 O duelo entre os dois “mestres da arte brasileira”, Belmiro de Almeida e Rodolpho Amoêdo, só teve fim quando Rodolpho Bernardelli assumiu 19 ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondências referente a 27 jul. 1894. p. 79B. 20 Rodolpho Bernardelli reassumiu o cargo em 5 de setembro de 1894, como consta no relatório ministerial de 1895: “De volta da commissão que se achava na exposição de Chicago, reassumiu a 5 de setembro o exercício do cargo de diretor o professor Rodolpho Bernardelli”. BERNARDELLI, OP.CIT: pág. 230. ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondências referente a 5 set. 1894. p. 83A. 21 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 286 novamente a direção da Escola, em 5 de setembro de 1894, e decidiu permitir que a exposição de Belmiro de Almeida fosse realizada.22 Das obras expostas então por Belmiro de Almeida, algumas fazem parte, atualmente, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes e constam do catálogo da 1ª Exposição de Belas Artes de 1894: “A Tagarela”, “Bom tempo” e “Vaso com flores” (propriedades da Escola) e, ainda, “Efeito de Sol”, que não integrava o catálogo como propriedade da escola, tendo, por certo, sido adquirida posteriormente.23 É importante destacar que, nos relatórios ministeriais ou em qualquer outro documento que se teve acesso, não é mencionada a aquisição das obras referidas como “propriedade da escola”. No entanto, sem dúvida, a compra foi efetuada. Tão logo encerrada a exposição de Belmiro de Almeida, teve início a mui festejada 1ª Exposição Geral de Belas Artes, de 1894, evento que contou com o total apoio do governo e a absoluta dedicação de Rodolpho Bernardelli. Tratou-se da primeira exposição geral realizada pela Escola e esperava-se, nada menos, que fosse um evento de renome internacional. Nesse sentido, é fundamental compreender as motivações que levaram à modificação dos critérios norteadores da seleção das obras que integrariam a Exposição Geral de Belas Artes de 1894, pois são também as razões para a escolha das obras que compuseram a coleção da Escola. Tais critérios indicavam o que se esperava para a arte nacional e, portanto, para a composição da pinacoteca que, posteriormente, foi incorporada, em parte, pelo MNBA. Apreender os anseios de Rodolpho Bernardelli é compreender as aspirações dos artistas, uma vez que muitos pintavam exclusivamente para as exposições; é entender as obras e a narrativa que existe por trás delas. A 1ª Exposição Geral de Belas Artes se pretendia internacional e esperava contar com a participação efetiva de artistas estrangeiros de diferentes países. Essa afirmação pode ser feita com base em um ofício do Ministério da Justiça, ainda em abril de 1893, solicitando vários exemplares do regimento da exposição para enviá-los aos principais países da Europa.24 ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Ata de 12 set. 1894. Ofício de Belmiro de Almeida ao diretor da Escola. p. 84A. 22 BIBLIOTECA DO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Catálogo da Exposição Geral de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1894. 23 ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondências referente a 16 abr. 1894. p. 73B, 74A. 24 Camila Dazzi 287 Para Rodolpho Bernardelli, participar das exposições gerais era não somente um modo de desenvolver as artes plásticas nacionais, mas uma forma de patriotismo; tendo em vista que o desenvolvimento artístico significava, em última instância, o desenvolvimento do próprio país. Não sem razão, em 1893, foi redigido o novo “Regimento das Exposições Geraes de Bellas Artes”25, que buscava implementar e assegurar a liberdade da arte. Não havia mais lugar para a imposição de modelos e diretrizes determinados pelo Estado, como ocorria na “velha” Academia. Pode-se comparar o regimento de 1893 com o documento que regulava as exposições gerais após a Reforma Pedreira de 1855, no que se refere à composição do júri. Não se trata de uma tarefa alienada da proposta de compreensão da formação da coleção da Escola e, consequentemente, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes, uma vez que os professores que fizeram parte do júri de 1894 foram aqueles que indicaram quais obras deveriam ser adquiridas pelo governo para a instituição. A principal diferença é que o Estatuto de 1855, Título VII – Das exposições públicas determinava que o júri fosse nomeado entre os professores da Academia. Art. 64 O jury será composto das Comissões cujas materias de ensino estiverem mais em relação com os trabalhos apresentados [grifo nosso]. À este jury compete acceitar ou recusar qualquer obra offerecida à Exposição.26 No regimento de 1893, por sua vez, a não intervenção do Estado fica clara na passagem que determina como seria composto o júri. CAPÍTULO V - DISPOSIÇÕES PARTICULARES Art. 48. Os trabalhos do jury serão dirigidos em cada secção pelo presidente do mesmo jury, que se comporá de um presidente e mais quatro membros, a saber: REGIMENTO DAS EXPOSIÇÕES GERAES DE BELLAS ARTES. Rio de Janeiro: Companhia Industrial de Papelaria, 1895. Na página 14, está assinado “Fernando Lobo, 20 de julho de 1893”. 25 26 ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Estatutos da Academia de Belas Artes referentes ao Decreto n. 1630, de 14 de maio de 1855, Título VII – Das exposições públicas. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 288 Dous professores da Escola Nacional de Bellas Artes e does artistas eleitos pelos expositores do anno [grifo nosso].27 O júri de pintura foi composto por Rodolpho Amoêdo e Modesto Brocos y Gomez, professores da Escola, e por Delfim Correa e Antonio Araujo de Souza Lobo, artistas eleitos pelos expositores. Do júri de escultura fizeram parte Rodolpho Bernardelli e Augusto Girardet, professores da Escola, e Francisco José Pinto Carneiro, eleito pelos expositores. Há alguns outros fatores positivos na 1ª Exposição de 1894 em relação às exposições realizadas durante o Império, sob a égide da Academia Imperial de Belas Artes, e que são significativos para a compreensão das pinturas que foram adquiridas e que, hoje, fazem parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Por um lado, não havia o excessivo teor nacionalista presente nas mostras anteriores; por outro, não mais foram expostas as cópias e os antigos quadros da pinacoteca.28 No relatório ministerial de 1895, Rodolpho Bernardelli menciona quais telas a comissão nomeada para escolher as obras julgou serem merecedoras da aquisição para a coleção da Escola. A comissão, composta pelos professores Rodolpho Amoêdo, Henrique Bernardelli, Pedro Weingärtner e Modesto Brocos y Gomes, decidiu por: O rendez-vous, de J. J. de Souza Pinto; Volta ao Trabalho, de Henrique Bernardelli; Fantasia em Rosa, da Exm. Sra. Diana Cid; Passará ele?, de Félix Bernardelli; No verão, de Elyseu d’Angelo Visconti; Paisagem, de M. Lopes Rodrigues; Boa Vista, Nictheroy, acquarella de Henrique Bernardelli; A saúde da bela, acquarella de Henrique Bernardelli; Sello com as armas da República, gravado em medalha, e A effigie do General Benjamin Constant; gravada em agatha, do professor Augusto Girardet.29 27 REGIMENTO DAS EXPOSIÇÕES, OP.CIT: pág. 9. 28 DAZZI, OP.CIT: pág. 304. 29 BERNARDELLI, OP.CIT: pág. 13. Camila Dazzi 289 A título de considerações finais, são apresentadas duas hipóteses que se complementam na justificativa para a escolha de determinadas obras pelos professores da Escola Nacional de Belas Artes. Por um lado, com base na documentação encontrada, entende-se que, algumas vezes, as indicações de compra privilegiaram certos artistas – merecedores, indubitavelmente – que necessitavam de ajuda financeira e era do interesse da Escola que recebessem tal ajuda. É o caso de Augusto Girardet, contratado em 189130, para a cadeira de Gravura, mas que nunca desejou se fixar definitivamente como professor da Escola31 e que precisava, com certa regularidade, visitar a família que continuava a viver na Europa. Por outro lado, entre esses professores, encabeçados por Rodolpho Bernardelli, existia o desejo de constituição de uma coleção de arte moderna. Não há espaço aqui para o debate acerca do conceito de modernidade para os professores da Escola32, mas pode-se, en passant, defender-se a ideia de que obras como “O rendez-vous”, de Souza Pinto, “Volta ao Trabalho”, de Henrique Bernardelli, e “Passará ele?”, de Félix Bernardelli, estavam em plena consonância com os parâmetros de modernidade adotados pelos professores da ENBA, quando da implementação da Reforma da instituição, em 1890. Por fim, pode-se concluir que as obras adquiridas para a coleção da Escola Nacional de Belas Artes entre os anos iniciais de implementação da Reforma de 1890 e a 1ª Exposição Geral de 1894 – e mesmo as obras expostas durante esses anos e incorporadas posteriormente ou simplesmente adquiridas nos anos finais do século XIX para comporem a coleção da Escola e que, atualmente, fazem parte do Acervo do Museu Nacional de Belas Artes – estão intrinsecamente relacionadas com as mudanças pensadas por Rodolpho Bernardelli e pelos professores a ele vinculados para a modernização do sistema de ensino artístico da instituição. Analisar tais obras dissociadas desse contexto de renovação da “antiga” Academia é desviá-las da sua história, é amputar parte da narrativa histórica que as constitui. Contratado em Roma, em 18 de dezembro de 1891. ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Notação: 591. Ofício do Ministro da Justiça e Negócios Interiores, de 12 nov. 1918. 30 31 Segundo a notação 591, anteriormente mencionada, Girardet se tornou professor efetivo somente em 1912. DAZZI, Camila. O moderno no Brasil ao final do século 19. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 11, 2012. p. 87-124. 32 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 290 REFERÊNCIAS Documentos AMOÊDO, Rodolpho. Anexo Q. Relatório apresentado ao vice-presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Alexandre Cassiano do Nascimento, ministro do Estado Interino da Justiça e Negócios Interiores, em março de 1894. ARQUIVO DO MUSEU DOM JOÃO VI/EBA/UFRJ. Ata de 12 set. 1894. Ofício de Belmiro de Almeida ao diretor da Escola. ___ . Estatutos da Academia de Belas Artes referentes ao Decreto n. 1630, de 14 de maio de 1855, Título VII – Das exposições públicas. ___ . Livro de correspondências referente a 4 ago. 1891. ___ . Livro de correspondências referente a 26 set. 1892. ___ . Livro de correspondências referente a 27 jul. 1894. ___ . Livro de correspondências referente a 5 set. 1894. ___ . Livro de correspondências referente a 16 abr. 1894. ___ . Notação: 591. Ofício do ministro da Justiça e Negócios Interiores, de 12 nov. 1918. BERNARDELLI, Rodolpho. Anexo P. Relatório apresentado ao vice-presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Antonio Gonçalves Ferreira, ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores, em abril de 1895. BIBLIOTECA DO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Catálogo da Exposição Geral de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1894. REGIMENTO DAS EXPOSIÇÕES GERAES DE BELLAS ARTES. Rio de Janeiro: Companhia Industrial de Papelaria, 1895. Livros e artigos DAZZI, Camila. O moderno no Brasil ao final do século 19. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 11, 2012. Camila Dazzi 291 ___ . Por em prática e Reforma da antiga Academia: a concepção e a implementação da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em História da Arte) - PPGAV/UFRJ. DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. Contemporâneos. Rio de Janeiro: s/e, 1929. SALA, Dalton. As origens históricas do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. In: LUSTOSA, Heloisa (org.). Acervo Collection Museu Nacional de Belas Artes. São Paulo: Banco Santos, 2002. SOUZA, Alcidio Mafra de (ed.). O Museu Nacional de Belas Artes. São Paulo: Banco Safra, 1985. (Série Museus Brasileiros) História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 292 coleções e museus La Exposición Internacional de Bellas Artes de 1910: La formación de una colección y su legado Carlos Ignacio Corso Laos Licenciado en historia; Estudiante de magíster en historia. Universidad de los Andes; Pontificia Universidad Católica de Chile La Exposición Internacional de Bellas Artes, que ha sido uno de los grandes hitos de la historia del arte chilena, fue una muestra artística realizada en 1910 para conmemorar el primer Centenario de la conformación de una junta de gobierno en el país. Siguiendo el modelo de la época, ésta contó con invitados de varios países y tuvo el afán de acercar al pueblo chileno a las Bellas Artes exhibiendo –y luego adquiriendo para una colección permanente– obras de los que se consideraban como los grandes maestros internacionales. A pesar de ésta importancia, se ha investigado muy poco sobre la muestra, especialmente en el plano de su organización donde, por lo general, han primado las explicaciones reductivas. Es por dicho motivo, y con gran interés por aportar a la comprensión de la historia del arte en Chile, que el presente artículo tratará –aunque, en virtud del espacio, de manera bastante resumida– acerca de las pinturas compradas en dicha ocasión para la colección permanente del Museo de Bellas Artes chileno y todo el proceso que ello implicó. A fin de responder a la interrogante planteada ha sido necesario volcar la mirada sobre el Consejo de Bellas Artes, grupo organizador y entidad nacional encargada por el Gobierno de dirigir la enseñanza artística y fomentar el cultivo artístico del país. En adición, hubo que indagar acerca de las delegaciones de Chile en el extranjero de las que se valieron los organizadores para apoyar su labor de invitación de artistas y, por tanto, de creación de un grupo de obras de donde seleccionar al momento de comprar para la colección. Consecuentemente, las fuentes de este trabajo han sido las actas del Consejo, una memoria realizada por el mismo al final de la muestra a fin de informar detalladamente al Gobierno sobre lo realizado y su recepción, cartas y comunicaciones oficiales y las memorias de algunos de los organi- 293 zadores. Sobre esto último vale decir que, en ciertos casos ha sido imposible revisar los documentos originales, mas se ha logrado subsanar el problema gracias a reproducciones amplias de ciertos fragmentos de las obras en parte de la bibliografía seleccionada. Vale añadir que ésta investigación, centrada en el funcionamiento institucional del Museo chileno y la formación de su colección, tiene una tendencia hacia lo europeo puesto que las fuentes son más ricas en lo relativo a aquel continente y el grueso de los artistas invitados pertenecieron al lado opuesto del Atlántico. Finalmente, me gustaría agradecer especialmente a Juan Ricardo Couyoumdjian y a Isabel Cruz por las correcciones y comentarios hechos a la investigación original; a Marianne Wacquez y a Gloria Cortés del Museo Nacional de Bellas Artes, quienes tan amablemente gestionaron el acceso a ciertos documentos; y a Amalia Mayol por la lectura de los borradores y sus valiosos comentarios. A ellos y a todos quienes, de una u otra manera, aportaron en esta investigación va toda mi gratitud. Por su finalidad, el Consejo tuvo mucha influencia en las políticas públicas relacionadas al embellecimiento de Santiago y el crecimiento cultural del país. Fue gracias a la iniciativa de sus miembros –especialmente de Alberto Mackenna Subercaseaux– que se construyó el Palacio de Bellas Artes para albergar definitivamente el Museo nacional de Bellas Artes1. La idea de inaugurar el nuevo edificio con una exposición de las características y magnitud de la estudiada también fue obra de la entidad, aunque cabe precisar que, si bien este grupo fue el organizador, lo hizo actuando en nombre del Gobierno de Chile, lo que significa que esta fue una celebración estatal del Centenario y el último responsable fue el Gobierno. Para sacar adelante éstos y otros proyectos, el Consejo operó grupalmente, pero también se valió de las influencias personales de sus miembros que, vale decir trabajaban ad honorem y contaban, por su condición social o su fama como artistas, con una excelente reputación y una amplia red de contactos2. Dado el espacio con que se cuenta, es imposible dar un panorama completo de todo el Consejo y su funcionamiento. Por lo mismo, me limitaré a LAFOND, G: La France en Amérique Latin, Plon-Nourrit et cia. Editeurs, Paris, 1922. Pp. 110; y BONTÁ, M: “Medio siglo de vida artística chilena”, en Atenea, año XL, CLII, 402. Concepción, octubre–diciembre 1963. Pp. 83–84. 1 2 POIRIER, E: Chile en 1910. Barcelona, Santiago, 1910. P. 268. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 294 decir que entre los 19 hombres que conformaron –al menos por un tiempo– el grupo se distinguen tres grupos: uno de personajes públicos con alguna sensibilidad artística, otro de artistas y críticos de arte, y un último de asesores. La entidad no fue exactamente homogénea en torno a las profesiones de sus miembros; hubo abogados, periodistas, agricultores, pintores, escritores y mucho más, sin embargo, el gusto por los estilos tendientes al naturalismo fue un gran factor de cohesión. Cabe agregar que el grupo de asesores era más bien de apoyo y no participaba en la toma de decisiones. Como en todo comité, el Consejo de Bellas Artes contó con miembros que tuvieron un protagonismo mayor. Para efectos de la Exposición fueron Alberto Mackenna Subercaseaux, nombrado Comisario general de la misma en noviembre de 1909; Fernando Álvarez de Sotomayor; y Ricardo Richon Brunet, quien renunció a su puesto en el Consejo para asumir como Secretario general de la muestra y delegado en Chile del Comité permanent des expositiores françaises de Beaux Arts à l’extranger, posición que le permitió organizar la sección francesa de la Exposición de manera independiente3. Fernando Álvarez de Sotomayor, prestigioso pintor español, fue contratado en 1908 por el Gobierno de Chile como profesor de la Escuela de Bellas Artes y, además de haber propuesto la idea de la Exposición, era el pintor más reconocido dentro del grupo de artistas en el momento de organizar la muestra de pintura4. Por otro lado, tanto sus memorias como las del Comisario General señalan su responsabilidad en la selección de artistas a invitar para la sección española de la muestra, lo que deja claro que su influencia era mayor a la de otros miembros5. La primacía de Mackenna y Richon Brunet queda bastante clara por los puestos que desempeñaban en la Exposición. Mas, cabe añadir que Ri“Actas Consejo superior de letras y Bellas Artes, sección artes gráficas”. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histórico, vol. 10, Santiago, 11 de noviembre de 1909 (reproducción abril de 2010). Pp. 52. 3 ZAMORANO, P: El pintor F. Álvarez de Sotomayor y su huella en América. Universidad de La Coruña: servicio de publicaciones. La Coruña, 1994. Pp. 151; y “Actas Comisión permanente de bellas artes 1904-1908”. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histórico, vol. 10, Santiago, 11 de noviembre de 1908 (reproducción marzo de 2010). Pp. 95. 4 ÁLVAREZ DE SOTOMAYOR, F: Memorias de un viejo pintor, documento inédito en manos de la familia del artista, Pp. 123–124, reproducido parcialmente en ZAMORANO, P: Op. cit. Pp. 165; y MACKENNA, A: Luchas por el arte. Barcelona, Santiago–Valparaíso. 1914. Pp. 55. 5 Carlos Ignacio Corso Laos 295 chon Brunet, afamado crítico de arte francés y pintor de mediano reconocimiento, fue tremendamente importante en la educación del gusto chileno. A través de sus columnas en revistas –siendo la más conocida “Conversando sobre arte: el arte en Chile” en Selecta de septiembre de 1910, reproducida íntegramente en el catálogo de la Exposición– guió gran parte del pensamiento artístico de los chilenos, tendiente, sobre todo, al neoclasicismo europeo pero más abierto de lo que se piensa comúnmente al uso de la mancha y técnicas de corte impresionista y post-impresionista6. Más allá del caso español, la influencia de Álvarez de Sotomayor no difirió en mucho –al menos en una manera que sea posible probar– de la de los demás miembros en cuanto a la selección de pintores y la organización de la Exposición. En ayuda de Alberto Mackenna, cuya labor de Comisario general lo ponía al frente respecto a la selección de artistas a invitar, estuvieron los delegados internacionales. Estos eran miembros del cuerpo diplomático chileno en los países a invitar y algunos agregados especiales seleccionados especialmente por el Consejo de Bellas Artes. Los delegados, que además estaban en constante contacto con el crítico francés, debían actuar sólo como apoyo de Mackenna y los consejeros pertinentes, tal como explicitan las bases generales de la muestra, aunque, por fallas humanas ligadas a la lentitud de la comunicación y los malentendidos, no siempre funcionó de esa manera7. A grandes rasgos, el sistema a seguir era bastante simple. El Consejo pedía a los delegados que le suministraran una lista con los artistas de mayor reputación de los países donde residían, luego el Consejo seleccionaba, en base a dicha lista y las preferencias de los miembros, a todos los artistas que debían ser invitados y, finalmente, los delegados repartían las invitaciones correspondientes, sin las cuales no se podría exponer en la muestra chilena8. Hubo, además, artistas que pidieron directamente al Consejo la posibilidad de exhibir algunas obras; el más notable de estos casos fue el de Juan Francisco González, cuyas obras, finalmente, no fueron colgadas, sin RICHON, R: “Conversando sobre arte: el arte en Chile”. Selecta, año II, 6. Santiago, 18 de septiembre de 1910. 6 Catálogo oficial ilustrado Exposición Internacional de Bellas Artes. Barcelona, Santiago. 1910. Pp. 9–10. 7 “Actas Consejo superior de letras y Bellas Artes, sección artes gráficas”. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histórico, vol. 10, Santiago, 29 de septiembre de 1909, 6 de octubre de 1909 (reproducción abril de 2010). Pp. 27, 32. 8 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 296 embargo este tema específico se ha tratado en las Jornadas de historia del arte del año pasado9. La simpleza del sistema expresada en el papel puede hacer pensar que su correcto funcionamiento era algo fácil de lograr. Sin embargo, los problemas comunicacionales, ligados tanto a la tecnología de la época como a las fallas humanas, causaron grandes fisuras en la práctica. La sección italiana de la Exposición es uno de los ejemplos más notables. Luego de comunicaciones oficiales entre los delegados en el país Mediterráneo y el Ministerio de Relaciones chileno que demoraban varios meses en recibir respuestas, se decidió que dichos delegados serían los encargados de organizar todo lo referente a Italia sin obligación de preguntar al Consejo en Chile ni a Mackenna, que se movía por Europa organizando las secciones10. De la misma manera, Estados Unidos tuvo una organización autónoma porque lo requirió especialmente de esa manera. El Consejo aceptó esto sin mayores problemas11. Sin embargo, en el caso de Inglaterra hubo una tremendo error comunicacional que provocó una emisión excesiva de invitaciones. Al parecer los delegados entendieron mal la instrucción del Consejo invitando a todas las escuelas a participar sin una mayor selección12. Más allá de los casos particulares, el funcionamiento del sistema de selección de artistas evidencia algo importante respecto a la formación de la colección. Todos los artistas invitados –o al menos la mayoría si se considera que pueden haber existido invitaciones por compromiso– fueron del gusto del Consejo y, puesto que casi todas las obras venían con sus respectivos precios de venta (incluido un ítem de precio final), el grueso del cuerpo CORSO, C: “El Consejo Nacional de Bellas Artes y la ausencia de Juan Francisco González en la Exposición del Centenario”. ABELLA, R. et al (eds.): El Sistema de las artes: VII Jornadas de Historia del arte. RIL, Santiago, 2014. Pp. 91–98. 9 Copiador de telegramas recibidos 1909. Ministerio de Relaciones Exteriores, Fondo histórico, 388h, Italia; “Memoria sobre la Exposición internacional de Bellas Artes presentada al Supremo Gobierno por la Comisión de Bellas Artes”. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histórico, vol. 1. Santiago, 31 de noviembre de 1911. Pp. 51; Carta de Santiago Aldunate a Agustín Edwards, Roma, 30 de agosto de 1909, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s.f. 10 Carta de Alberto Mackenna a Aníbal Cruz, Santiago, 11 de marzo de 1910, en Ministerio de Relaciones Exteriores, Cartas recibidas de Estados Unidos, 1909-1910, P. 1-2. 11 Carta de Enrique Cuevas a Ricardo Richon Brunet, Londres 7 de febrero de 1910, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s. f. 12 Carlos Ignacio Corso Laos 297 de pinturas era potencial opción para formar la colección13. El Consejo, por medio de esta selección, ya se había asegurado, antes de la muestra, que tendría una colección con el tipo de obras que prefería, lo que lleva a un hecho fundamental. Si la colección tenía como uno de sus objetivos que los artistas chilenos pudieran concurrirla para “recibir las inspiraciones de las obras de los maestros (…)”, sus responsables deben haber elegido, lógicamente, piezas que consideraran de buen gusto, con lo que automáticamente se excluían todas aquellas tendencias consideradas mamarrachos o, como Mackenna llamó a ciertos vanguardistas belgas “decadentes”14. Nada de lo que llegaría a Chile estaría fuera de lo que los organizadores consideraran bello. Como se ha estudiado en otra ocasión, esto tenía que ver con una figuración naturalista pero se aceptaban ciertos aspectos técnicos de vanguardia mientras que no afectaran la realidad sino que vitalizaran el cuadro15. Hay varios factores que evidencian que la formación de la colección era un objetivo clave para los organizadores. Uno de los más interesantes es un acuerdo firmado tres días después de la inauguración de la Exposición que se suma al reglamento de compras. El acuerdo fue anotado de la siguiente manera en las actas del Consejo. “Mientras se firma una lista definitiva de las obras de arte de la Exposición Internacional que deban ser adquiridas para el Museo, se acuerda que toda obra que se venda queda sujeta a la condición de que el Consejo pueda adquirirla preferentemente para el Museo, en cualquier momento antes de la clausura de la Exposición. Esta condición debe advertirse a los compradores por los encargados de la oficina de ventas a particulares. Ficha Manuel Adolphe Bain, Exposición Internacional de Bellas Artes, Santiago de Chile, septiembre de 1910, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s.f. Hay una buena serie de fichas como esta correspondientes a la mayoría de los países considerados en la Exposición. Se ha seleccionado esta sólo como ejemplo puesto que específicamente no tiene un valor particular para la investigación. 13 14 BALMACEDA, C: Discurso inaugural del Palacio y la Exposición de Bellas Artes por el Ministro de Instrucción Carlos Balmaceda reproducido en “La Inauguración del Palacio de Bellas Artes”. El Mercurio. Santiago, 22 de septiembre de 1910, P. 9; y MACKENNA, A: Op. cit, P. 61. 15 CORSO, C: Op. cit, P. 93. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 298 Una vez formada la lista definitiva de los objetos que se desea adquirir para el Museo, el acuerdo anterior se referirá solo a los incluidos en dicha lista”16. Como queda en evidencia, el Consejo de Bellas Artes realizaría una buena selección de las obras que deseaba y adjudicárselas era de importancia suficiente como para reglamentar especialmente su preferencia de compra. Como se lee, no hay una referencia explícita a la fecha en que debía terminarse la “lista definitiva”, lo que habla de un Consejo que no sólo asegura obtener las obras que desea sino que se da plena libertad para elegir con calma. No se sabe con certeza a cuanto ascendía el monto destinado por el Gobierno para la compra de obras, sin embargo, se sabe que el Consejo compró 103 pinturas al óleo por un monto total de al menos 11.855,6 libras esterlinas, una inversión no menor para la época, sin mencionar el inmenso ensanchamiento que significó para la colección del museo y el inmenso valor que significó la renovación pictórica de la colección17. Antes de la compra señalada, el Museo contaba, al menos, con 59 pinturas al óleo en su colección, entre obras compradas, donadas y enviadas por pensionistas, lo que significa que la Exposición del Centenario no sólo fue la gran oportunidad de renovación de la colección, cuyas piezas databan, incluso de principios del siglo XIX, sino que la compra estuvo cerca de duplicar el número de telas que se tenían lo que posiblemente dio mucha más variedad a la colección18. Además, es necesario considerar que los gastos de traslado de las obras fueron reducidos considerablemente gracias a la liberación de cargos hecha por las aduanas chilenas mientras que el Gobierno se encargó de los envíos. La reducción de estos gastos significó que habría un poco más de dinero El destacado es mío. “Actas Consejo superior de letras y Bellas Artes, sección artes gráficas”. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histórico, vol. 10, Santiago, 24 de septiembre de 1910 (reproducción abril de 2010). Pp. 172–173. 16 Desgraciadamente no se cuenta con los precios de todas las obras chilenas compradas por lo que ha sido imposible dar con la inversión total exacta para óleos en la Exposición. Si es posible decir que la suma probablemente no se elevaría mucho si se sumaran esos precios puesto que, en general, las obras chilenas no se vendieron a precios extremadamente altos. 17 COUSIÑO, L: Museo de Bellas Artes. Catálogo general de las obras de pintura, escultura, etc. Universo, Santiago, 1922. Dada la falta de rigurosidad con la que está hecho el catálogo es imposible saber la técnica con la que han sido realizados ciertos cuadros adquiridos antes de 1910. Por lo mismo, se han contabilizado sólo aquellos donde pueda asegurarse, inequívocamente, que se trata de pintura al óleo. 18 Carlos Ignacio Corso Laos 299 disponible para la compra de obras, pudiendo así optar por piezas de mejor calidad. Está claro, por otro lado, que Chile no era un país con una gran cultura artística, por lo mismo los pintores que enviaron sus obras no eran, tampoco, los más reconocidos de sus respectivos países. Joaquín Sorolla es quizás uno de los más notables de toda la muestra, sin embargo, gracias a un testimonio guardado por Alberto Mackenna sabemos que fue prácticamente obligado por sus amigos a enviar un par de telas y que estas no eran, tampoco, lo mejor de su taller19. En este aspecto cabría también hacer una breve mención a una de las grandes críticas de la historiografía contemporánea a la Exposición: su poca sintonía con las novedades artísticas de su época. Conociendo el contexto artístico chileno, con una Escuela de Bellas Artes que contaba con apenas 50 años al momento de la Exposición y un correspondiente ambiente artístico más bien conservador que se limitaba aún a seguir las tendencias en vez de encontrar su veta propia –que se empezaría a dibujar cada vez más clara desde el nacimiento de la generación del ‘13– sería descabellado exigirle a los encargados de la selección que tuvieran la mirada de nuestro tiempo. Como asegura Marco Bontá ante quienes ya en 1963 afirmaban que “Chile perdió entonces una preciosa oportunidad de adquirir algunas telas de Cezanne, Renoir, Van Gogh, Gauguin, etc.”, “Mal se podía pedir al enviado chileno [Alberto Mackenna] la milagrosa intuición de que se anticipara al juicio de París”20. Cada época debe juzgarse desde su propia realidad, evitando los anacronismos que llevan a este tipo de afirmaciones. Chile no era un país retrógrada al tiempo de la Exposición sino uno tremendamente imbuido en su contexto de país latinoamericano sin mucha tradición artística y que aún buscaba entre Francia, Italia, España, Alemania y, en menor medida, Estados Unidos su modelo a seguir. Prueba del triunfo para el arte nacional de la Exposición y la colección ha sido la generación del ’13. Los jóvenes alumnos que se asombraron con la aparición de la mancha en el óleo y la vibración de las nuevas técnicas fueron los mismos que, apenas unos años después, y con gran influencia de Fernando Álvarez de Sotomayor y Juan Francisco González constituyeron una de las grandes escuelas de la historia del arte chileno y quizás la primera en pintar de manera propiamente chilena, rescatando los paisajes, la cultura y lo propiamente chileno para plasmarlo en la tela. 19 MACKENNA, A: Op. cit. P. 56. 20 BONTÁ, M: Op. cit. P. 89. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 300 A modo de cierre sería bueno balancear algunos hechos relevantes. Si bien es cierto que la colección no fue todo lo innovadora que pudo haber sido para el contexto mundial en ese momento –cuyas razones han sido explicadas pertinentemente–, sí puede afirmarse que se dio un paso importante en la plástica chilena. Sin aceptar el impresionismo puro, que muchos de los miembros siguieron criticando, se fueron aceptando algunos de sus avances técnicos como lo demuestran los cuadros modernistas españoles que fueron adquiridos. Como se ha mencionado, esta renovación fue uno de los factores del nacimiento de una pintura cada vez más chilena, donde la vivacidad del país era plasmada en la tela y no sólo representada como una imagen dormida. Por otro lado, puede considerarse como una virtud el hecho de haber podido formar una colección bastante a la medida de lo que se quería, lo que habla de un sistema que, aún con sus fallas y excepciones, funcionó como se quería. Finalmente, aunque podría hacerse un estudio económico más exhaustivo de las compras de obras para determinar si el Consejo tuvo que dejar pasar ciertos cuadros por sus precios la muestra y la colección lograron su cometido de dar a Chile un nuevo aire y el comienzo de un arte cada vez más propio. BIBLIOGRAFÍA Fuentes. “Actas Comisión permanente de bellas artes 1904-1908”. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histórico, vol. 10, Santiago, (reproducción marzo de 2010). “Actas Consejo superior de letras y Bellas Artes, sección artes gráficas”. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histórico, vol. 10, Santiago, (reproducción abril de 2010). BALMACEDA, C: Discurso inaugural del Palacio y la Exposición de Bellas Artes por el Ministro de Instrucción Carlos Balmaceda reproducido en “La Inauguración del Palacio de Bellas Artes”. El Mercurio. Santiago, 22 de septiembre de 1910, P. 9. Carlos Ignacio Corso Laos 301 Carta de Alberto Mackenna a Aníbal Cruz, Santiago, 11 de marzo de 1910, en Ministerio de Relaciones Exteriores, Cartas recibidas de Estados Unidos, 1909-1910, Pp. 1-2. Carta de Enrique Cuevas a Ricardo Richon Brunet, Londres 7 de febrero de 1910, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s. f. Carta de Santiago Aldunate a Agustín Edwards, Roma 30 de agosto de 1909, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s.f. Catálogo oficial ilustrado Exposición Internacional de Bellas Artes. Barcelona, Santiago. 1910. Copiador de telegramas recibidos 1909. Ministerio de Relaciones Exteriores, Fondo histórico, 388h, Italia. Ficha Manuel Adolphe Bain, Exposición Internacional de Bellas Artes, Santiago de Chile, septiembre de 1910, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s.f. MACKENNA, A: Luchas por el arte. Barcelona, Santiago–Valparaíso. 1914 “Memoria sobre la Exposición internacional de Bellas Artes presentada al Supremo Gobierno por la Comisión de Bellas Artes”. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histórico, vol. 1. Santiago, 31 de noviembre de 1911. POIRIER, E: Chile en 1910. Barcelona, Santiago, 1910. Artículos y Bibliografía BONTÁ, M: “Medio siglo de vida artística chilena”, en Atenea, año XL, CLII, 402. Concepción, octubre–diciembre 1963. Pp. 78–99. CORSO, C: “El Consejo Nacional de Bellas Artes y la ausencia de Juan Francisco González en la Exposición del Centenario”. ABELLA, R. et al (eds.): El Sistema de las artes: VII Jornadas de Historia del arte. RIL, Santiago, 2014. Pp. 91–98. COUSIÑO, L: Museo de Bellas Artes. Catálogo general de las obras de pintura, escultura, etc. Universo, Santiago, 1922. LAFOND, G: La France en Amérique Latin, Plon-Nourrit et cia. Editeurs, Paris, 1922. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 302 RICHON, R: “Conversando sobre arte: el arte en Chile”. Selecta, año II, 6. Santiago, 18 de septiembre de 1910. Pp. 223–232. Carlos Ignacio Corso Laos 303 coleções e museus Un caleidoscopio de recuerdos. Apuntes a propósito de los álbumes personales del músico Aníbal Aracena Infanta (1881-1951) Carmen Peña Fuenzalida Musicóloga. Profesora e investigadora. Instituto de Música. Pontificia Universidad Católica de Chile PREÁMBULO Diarios de vida, de viaje, álbumes fotográficos o de recuerdos personales de un artista son joyas para los investigadores y estimulan rápidamente la imaginación, más aún si pertenecieron a una persona poco desconocida en nuestros días pero con resonancia otrora. Tal es el caso de músico Aníbal Aracena Infanta (1881-1951), de quien se conservan siete álbumes de recortes, custodiados por su nieto Rodofo Suárez1. Un primer acercamiento a dicho material buscó articular un perfil biográfico de su trayectoria creativa e interpretativa y dar cuenta de la recepción de su quehacer por parte del público en el periodo comprendido entre 1900 y 1930, contextualizándolo en la vida musical chilena de comienzos del siglo XX2. En el curso de la investigación, la variedad y cantidad de documentos que contienen los álbumes, detonaron interrogantes vinculadas tanto al propósito que, entonces, pudo animar a Aracena a elaborar tales libros, como también a la perspectiva de estudio y al aporte que ese material u otros similares pueden proporcionar a la musicología y, por ende, a la historiografía musical. Muchas publicaciones sobre música y músicos chilenos se han nutrido de álbumes de recortes o de recuerdos y de archivos privados e institucionales como fuente de investigación. Para mencionar aleatoriamente algunas: “Cronología epistolar de Pablo Garrido” y “Roberto Puelma y la identidad Agradezco el contacto de la musicóloga Raquel Bustos con Rodolfo Suárez y a él y su familia por la generosidad y confianza de facilitarme los álbumes para su estudio. 1 Peña Fuenzalida, C.: “Aníbal Aracena Infanta (1881-1951). Perfil de una infatigable trayectoria dedicada al “Divino Arte”: periodo 1900-1930”. Anales del Instituto de Chile, XXXII, Santiago: Instituto de Chile, 2013, pp. 151-181. 2 305 del músico chileno”, de Juan Pablo González3; el estudio “Luigi Stefano Giarda: Una luz en la historia de la música chilena”, materializado más tarde como libro con el mismo nombre, de Iván Barrientos4; “Nuevos aportes al estudio de Pedro Humberto Allende (1885-1959)”, de Raquel Bustos5; Palabra de Soro, de Roberto Doniez Soro6; Iconografía Musical Chilena, de Samuel Claro y otros7, y el Álbum de Isidora Zegers de Huneeus, al cual me referiré a continuación. En general, los álbumes y archivos han permitido fundamentalmente articular un discurso sobre el músico, su producción musical o las relaciones con sus pares e institucionales; ofrecer a estudiosos documentos visuales (otro modo de construir un discurso), como en la Iconografía; o bien, dar conocer la “voz” de un artista, como sucedió con el libro de E. Soro. Sin embargo, el estudio que acompaña a la publicación del decimonónico Álbum de Isidora Zegers de Huneeus (2013), aporta los retos que implica el trabajo con ellos. Al respecto, Josefina de la Maza destaca el escaso estudio académico acerca de estos “libro-objeto” y como parte de su diagnóstico señala: “En el contexto chileno, el estudio de los álbumes no tiene un espacio definido al interior de las artes y las humanidades. Si bien desde instituciones vinculadas a la fotografía -e investigadores asociados a ellas- se ha promovido y prestado atención a este tipo de objetos, la mayoría de los estudios que se han realizado privilegian lecturas que miran estos documentos en función de la historia de los fotógrafos y sus estudios8”. González, J.P.:“Cronología epistolar de Pablo Garrido”. Revista Musical Chilena , XXXVII/160 (julio-diciembre), 1983. Pp. 4-46; y “Roberto Puelma y la identidad del músico chileno”. Revista Musical Chilena, XXXVIII/ 162, (julio-diciembre), 1984, pp. 46-68. 3 Barrientos, I.: “Luigi Stefano Giarda: Una luz en la historia de la música chilena”. Revista Musical Chilena , L/186 (julio diciembre), 1999, pp. 40-72; y Luigi Stefano Giarda: Una luz en la historia de la música chilena. Santiago de Chile: Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación, 2006. 4 Bustos Valderrama, R.: “Nuevos Aportes al Estudio de Pedro Humberto Allende (18851959)”. Revista Musical Chilena, XLIV/174 ( julio-diciembre), 1990, pp. 27-56. 5 6 Doniez Soro, Roberto. 2011. Palabra de Soro. Santiago de Chile: Ediciones Altazor. Claro Valdés, Samuel, et al.. Iconografía Musical Chilena. Santiago: Ediciones Universidad Católica de Chile, 1989. 2 vols. 7 De la Maza, J.: “Itinerarios de una vida: El álbum de Isidora Zegers de Huneeus”, Santiago: Ediciones. de la Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos, 2013. Vol. 2, p.9. 8 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 306 Problematizando, la autora es certera en apuntar que, por sus características, los álbumes han sido considerados como un “género menor” al cual todavía no se le ha prestado la debida atención, pese a que son “un objeto de la memoria” y “un lugar en el que quedan registrados los distintos itinerarios de una vida”9, otorgándole, “en definitiva, su condición de ‘documento histórico’ y de memorabilia” 10. En efecto, abundan estudios académicos sobre álbumes fotográficos, por ejemplo, pero es limitada la bibliografía específica sobre álbumes de recortes –scrapbook- o de álbumes de recuerdos. No obstante la archivística -y bibliotecas y centros de documentación- han contribuido a sistematizar ciertos rasgos, precisamente por la complejidad que implica su catalogación. En este punto se cruzan terminologías. El Diccionario de la lengua española (DRAE), en su primera acepción, define el álbum como: “Libro en blanco, comúnmente apaisado, y encuadernado con más o menos lujo, cuyas hojas se llenan con breves composiciones literarias, sentencias, máximas, piezas de música, firmas, retratos, etc.” 11. También, encabezando las significaciones, señala que el archivo es un “Conjunto ordenado de documentos que una persona, una sociedad, una institución, etc., producen en el ejercicio de sus funciones o actividades”12. Claramente, en la primera el énfasis recae en el objeto-libro cuyo contenido incluso puede ser diverso y sin organización preestablecida, en cambio en el segundo –el archivo- el acento radica en la información generada ordenadamente por un sujeto o entidad en la práctica de un determinado hacer. ¿En qué ámbito se encuentran los álbumes del músico Aníbal Aracena Infanta cuyas blancas páginas contienen documentos sobre sus actividades profesionales, organizados cronológicamente e incluso con la fuente identificada? Un estudio sobre archivos personales y familiares en la región de Murcia, España, precisando terminología y conciliando perspectivas de varios autores, caracteriza el archivo personal –en el cual se incluye los 9 De la Maza, op. cit., p 9. Ibid., p.10. La autora llega a esta premisa ya que en su estudio considera “de manera productiva y crítica su posición intermedia entre la palabra y la imagen, entre lo público y lo privado, entre lo personal y lo colaborativo”. 10 11 12 http://lema.rae.es/drae/?val=álbum (consulta 2-2-2015) http://lema.rae.es/drae/?val=archivo (consulta 3-2-2015). Carmen Peña Fuenzalida 307 álbumes- “como la documentación generada y acumulada por una persona durante la realización de las tareas personales y profesionales, actividades que pueden ser de distinta índole y que dependen de la idiosincrasia del individuo que las realiza, el cual organiza dicha documentación según su propio criterio y necesidades”13. Esta definición, entre otras similares, se enriquece significativamente desde la reflexión filosófica y la teoría crítica del arte –Derrida, Foucault o Hal Foster14, entre otros-. Por ejemplo, Anna María Guasch -cuyos estudios se focalizan en artistas visuales contemporáneos y su obra- es clara en diferenciar el concepto de “almacenar o coleccionar” y el de archivo: “Si el almacenar o coleccionar consiste en ‘asignar’ un lugar o depositar algo –una cosa, un objeto, una imagen- en un lugar determinado, el concepto de archivo entraña el hecho de ‘consignar’“15. Desde esta perspectiva, considera que el archivo es un “punto de unión entre escritura y memoria” -coincidiendo con De la Maza - y, como objeto, su “manera de proceder no es amorfa o indeterminada, sino que nace con el propósito de coordinar un ‘corpus’ dentro de un sistema o una sincronía de elementos seleccionados previamente en la que todos ellos se articulan y relacionan dentro de una unidad de configuración predeterminada”16. De ahí la cualidad de “territorio fértil para todo escrutinio teórico e histórico”17. En este marco, estimo que los álbumes elaborados por Aníbal Aracena Infanta constituyen un objeto de memoria, como señalan De la Maza y Guasch. Siguiendo una tradición decimonónica frecuente tanto en escritores y artistas como en mujeres, Aracena elaboró cuidadosamente álbumes, consignando en ellos su trayectoria profesional. No obstante, paralelamente, en esa construcción subyace también una intención autobiográfica18. Por 13 Belmonte García, A. E.:. “Archivos personales y familiares de la región de Murcia”. Tejuelo, Nº11, Murcia, 2011, p. 5. 14 Derrida, J.: Mal d’archive: une impression freudienn. Paris: Editions Galilée, 1995; Foucault, M.: L’Archéologie du savoir. París: Gallimard, 1969; Foster, H.: “ An archival impulse”. October 110, otoño 2004, pp. 3-22. 15 Guasch, A. M.: Arte y archivo. Genealogías, tipologías y discontinuidades. Madrid: Akal, 2011, p. 10. 16 17 Ibid. Ibid. 18 Artières, P.: “Arquivar a própria vida”, Estudos Históricos, 11 /21, 1998, p. 11. Consulta versión electrónica 7/02/2015, en http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/ view/287 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 308 otra parte, desde el ámbito del aporte de dicho material a la historia de la música en Chile, los álbumes revelan una realidad más diversa de la vida musical de las primeras décadas del siglo XX, que matiza y a veces difiere del discurso canónico enraizado en la historiografía musical académica del siglo XX. ANÍBAL ARACENA INFANTA (1881-1951) EN EL CONTEXTO DE SU TIEMPO Aníbal Aracena forma parte de un grupo de creadores nacidos en las últimas décadas del siglo XIX, pero cuya vida artística se desarrolló en el siglo XX. Fue un músico de oficio, formado en la academia, y multifacético profesionalmente: compositor, pianista, organista, profesor, director de coros y orquestas escolares, editor y propietario de la revista Música (19201924). Se suma a lo anterior su capacidad como gestor y colaborador en diversas actividades músico-sociales. Nació en Chañaral en 1881 y realizó sus humanidades en el Liceo Santiago de la capital (hoy Liceo Valentín Letelier), época en la que inició su estudios musicales de piano, órgano, teoría, armonía y otras asignaturas en el Conservatorio Nacional de Música (CNM en adelante)19. Fue un alumno talentoso, concluyendo rápidamente su formación pianística e ingresando como profesor al CNM en 1907, donde permaneció hasta 1917. En 1918 viajó a Buenos Aires y posteriormente continuó su actividad musical en forma independiente en Santiago. En el plano composicional, aunque no se ha estudiado su producción creativa ni tampoco hay un catálogo de ella, se sabe que sobrepasó el centenar de obras20, muchas estrenadas en vida en conciertos públicos. Estéticamente, algunos autores lo consideran un creador tradicional o ecléctico21, mientras para otros “es un compositor de obras italianizantes”22. Como intérprete, las Uzcátegui, E.: Músicos chilenos contemporáneos (Datos Biográficos e impresiones sobre sus obras). Santiago: Imprenta y Encuadernación América, 1919, p. 171. Ver también Peña Fuenzalida, 2013. 19 En el catálogo de la Biblioteca Nacional de Chile, figura “Bendita seas Virgen de Lourdes” [para canto y piano] Op.192, Casa Amarilla,1942. 20 Pereira Salas, E.: “La música chilena en los primeros años del siglo XX”. Revista Musical Chilena, XL/40 (verano), 1950-1951. p. 70. 21 Ver Peña Fuenzalida, op. cit., pp. 161-162; Santa Cruz, D.: Mi vida en la música. Contribución al estudio de la vida musical chilena durante el siglo XX. (Edición y revisión 22 Carmen Peña Fuenzalida 309 fuentes coinciden en que fue un dotado pianista y organista, difundiendo en Chile numerosas obras para ambos instrumentos. Como revelan sus álbumes, su visión de mundo lo llevó a mantener permanente contacto con distintos sectores y entidades de la sociedad de su época (Conservatorio, colegios, sociedades, centros artísticos y sociales, la iglesia, etc.) para las cuales organizó eventos musicales y también participó como intérprete. Por tal razón y por su profesionalismo artístico, gozó de amplio reconocimiento público23. Aracena vivió el tránsito del siglo XIX al XX, período complejo para el país tanto histórica como musicalmente. En un plano general, las décadas de 1900 a 1930 estuvieron marcadas por distintos y superpuestos acontecimientos sociales, políticos, ideológicos y estéticos, como bien enumera Ivelic 24: “Lucha de clases, decadencia de la vieja aristocracia, emergencia de la clase media, profundas desigualdades sociales y anhelo de reivindicaciones, tensiones entre poderes del Estado, crisis del catolicismo y aumento del laicismo positivista; revolución y golpes militares, inestabilidad gubernamental, crecimiento del socialismo, nacionalismo en oposición al cosmopolitismo, superposición y contradicción de tendencias estéticas: clasicismo, romanticismo, realismo, naturalismo, posromanticismo, parnasianismo, simbolismo, modernismo, impresionismo, postimpresionismo y vanguardismo”. Desde el punto de vista musical, la situación no fue distinta. Institucionalmente existió una fuerte tensión entre el CNM y el Teatro Municipal con grupos independientes - Los Diez25 y, especialmente, la Sociedad Bach- que propiciaron una “renovación” del ambiente artístico. musicológica: Raquel Bustos Valderrama). Santiago de Chile: Ediciones Universidad Católica, 2007, p. 55; y Salas Viu, V.: La creación musical en Chile 1900-1951. Santiago: Editorial Universitaria,1951, p. 151. 23 Cfr. Peña, 2013. Ivelic, R.: “Crítica literaria e identidad” , en Arte, identidad y cultura chilena (1900-1930), (Fidel Sepúlveda: editor), Santiago: Pontificia Universidad Católica de Chile, Facultad de Filosofía- Instituto de Estética, 2005, p. 67. 24 Los Diez estuvo conformado por escritores, pintores, escultores, arquitectos y músicos. Entre estos últimos figuran Acario Cotapos, Alberto García Guerrero y Alfonso Leng. 25 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 310 Como ya se ha estudiado26, en síntesis, el objetivo era erradicar lo que llamaron el “italianismo” imperante, entendiendo por tal no solo la ópera italiana como género, sino el estilo romántico y tardoromántico entronizado en el país, tanto en lo creativo como en la difusión musical. La motivación fue, entonces, “purificar27” el repertorio, “contaminado” por la lírica italiana -muy en boga por esos años-, y dar paso a una nueva estética “moderna”. La ofensiva de cambio, sustentada por la Sociedad Bach y liderada por Domingo Santa Cruz, culminó con la reforma del Conservatorio. En la práctica musical esto significó promover una orientación hacia la música instrumental, de concierto (sinfónica, de cámara y solista), y una estética de cuño principalmente germano, desconociendo, por tanto, el pasado musical decimonónico. Como discute Izquierdo28, a propósito de un estudio sobre el canon musical, a partir de entonces el discurso se construyó bajo esos paradigmas y, a través de los textos fundamentales sobre historia de la música en el siglo XX, como la Creación Musical en Chile 1900-1951 de Salas Viu y “La música chilena en los primeros cincuenta años del siglo XX” de Eugenio Pereira Salas, de la misma época29, “se fue con firmeza asentando la idea de que la música chilena seria -o más bien, seriamente creada- nació después de 1910, con el surgimiento de la Sociedad Bach y del Grupo de los Diez. Así, la historiografía musical local simplemente dejó atrás a aquellos compositores no adscritos al programa generado con la reforma al Conservatorio de Domingo Santa Cruz en 192830”. En consecuencia, un grupo creadores quedó marginado de la divulgación de su producción composicional en la esfera “oficial”. Así, debieron agenciar sus propias formas de desarrollo profesional y espacios para difundir su Peña Fuenzalida, C.: “Ópera decimonónica: al banquillo de los acusados”. Resonancias, n° 29 (noviembre), 2011, pp. 57-71; Izquierdo, J. M.: “Aproximación a una recuperación histórica: compositores excluidos, músicas perdidas, transiciones estilísticas y descripciones sinfónicas a comienzos del siglo XX”. Resonancias, nº 28 (mayo), 2011, pp. 33-47. 26 La presentación del primer número de la revista Los Diez señala: “Si en la sección de crítica se censura o se aplaude, sólo lo haremos por dar forma a un noble anhelo de purificación artística”. Los Diez, “Los Diez“ [presentación]”, Los Diez, 1I1, septiembre,1916, snp. 27 28 Izquierdo, op. cit., pp. 33-34. 29 Pereira Salas, op. cit. 30 Izquierdo, op. cit., p.34. Carmen Peña Fuenzalida 311 arte. Tal fue el caso Aníbal Aracena Infanta, Enrique Soro, Luigi Stefano Giarda, Juan Casanova Vicuña, Roberto Puelma, Raoul Hügel, Celerino Pereira, Javier Rengifo, María Luisa Sepúlveda y Pedro Valencia Courbis, entre otros. No obstante, cabe decir que varios de ellos también fueron intérpretes –ejecutantes o directores- y, en ese plano, sí reconocen su talento y aporte a la difusión del repertorio “serio” autores como Salas Viu, Pereira Salas e incluso Santa Cruz31. LOS ÁLBUMES DE ANÍBAL ARACENA Los siete álbumes que se conservan – nº 1, 2, 3, 8, 11, 12 y 1432tienen un formato único. Son libros de 23.5 x 28 cms., con 50 a 60 páginas blancas, tapas gruesas color rojo, con la inscripción “Aníbal Aracena Infanta” en el lomo y el número correspondiente. Cada uno abarca un periodo de tiempo, comenzando el primero a partir de 1896. Como se observa en la numeración, algunos álbumes no están disponibles, razón por la cual de ciertos años no hay noticias –v.gr. 1909-1913 ó 1918. Por otra parte, en el último - aunque contiene documentos de la década de 1930- hacia el final se rompe cronología e incluye informaciones anteriores e incluso en muchos ya no se indica la fecha. El total de documentos supera los setecientos. Todos corresponden a actividades artísticas públicas como músico, ya sea compositor, intérprete, profesor, director, organizador, etc. Salvo un par, no hay fotos u otra evidencia de testimonios familiares. Esto valida la intención de registrar su trayectoria artística y, por ende, autobiográfica. Los álbumes contienen principalmente recortes de prensa, programas de mano de conciertos y veladas, avisos de eventos en los que participó u organizó. En menor medida, invitaciones que envió y recibió, algunos folletos con publicaciones que Aracena realizó a otros compositores en diarios o revistas, tres cartas y un carné de baile. Por ejemplo, Enrique Soro: pianista; Luigo Stefano Giarda: violonchelista y director de orquesta; Aníbal Aracena: pianista y organista; Juan Casanova Casanova V.: director de orquesta; Javier Rengifo: pianista y director. Salas Viu, op. cit.; Pereira Salas, op.cit; Santa Cruz, op.cit. 31 32 Colección privada de Rodolfo Suárez, en adelante CPRS. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 312 Entre los textos de prensa hay breves informaciones sobre un concierto, una obra recién compuesta o por editarse, o su gestión y(o) participación en alguna actividad, audición o festividad musical, incluyendo a veces el programa musical. Los comentarios a sus conciertos son más extensos y casi siempre aluden tanto a la interpretación como también al ambiente de la audición y la recepción del público. El estilo de escritura de los textos más extensos es sencillo y, con frecuencia, expresivo. Hay uso de metáforas, frases laudatorias y observaciones sobre el público o el clima del conciertos o celebración. Son comunes expresiones tales como: “las distinguidas discípulas del maestro Aracena”, “el selecto programa”, “las francas simpatías de que goza el inteligente maestro”33, “el joven y distinguido artista, verdadera joya del arte chileno”34, “el conocido maestro Aníbal Aracena Infanta ejecutó ayer magistralmente” 35, “la selecta concurrencia”, “el distinguido y numeroso auditorio”, “la luminosa antorcha de la música y la poesía”, entre otras. El número de programas de mano que contienen los álbumes es abundante y su factura es simple: papel corriente y sin mayores ilustraciones. Usualmente proporcionan información básica: lugar, hora, día y año -a veces-, el nombre del organizador o patrocinante, y en su interior los títulos y compositores de las obras junto al nombre de los intérpretes. Cuando se incluyeron breves representaciones teatrales se mencionan los nombres de los actores –muchos de ellos aficionados-, pero con frecuencia se omite la autoría de las obras. En los documentos figura un abanico de situaciones y acontecimientos que motivaron la presencia de música, dando cuenta de la importancia que ésta tuvo para la sociedad. Para mencionar algunas: aniversarios de instituciones y de personas de relevancia social, efemérides religiosas y civiles, recepciones privadas, eventos públicos de caridad, reuniones deportivas, inauguraciones, congresos profesionales, conmemoraciones, e incluso catástrofes. Esto se revela en las veladas artísticas, literarias, musicales y dramático-musicales, tanto de establecimientos escolares como de sociedades y otras agrupaciones; en las festividades religiosas y audiciones de música sacra; en funciones de gala, fiestas, actos y conciertos 33 Álbum 3 de Aracena, CPRS. 34 Ibid. 35 Ibid. Carmen Peña Fuenzalida 313 de beneficencia; en eventos deportivos; en audiciones conmemorativas36, y en los “conciertos anuales” ofrecidos por Aracena, siempre muy publicitados. En esas ocasiones las programaciones fueron diversas. Algunas tuvieron el formato del concierto tradicional y otras más cercanas a una función o a un espectáculo. En las primeras, principalmente se interpretó obras paradigmáticas del repertorio clásico-romántico europeo. Por ejemplo, para mencionar algunas sinfónicas y de cámara, como pianista Aracena estrenó en Chile obras señeras como la Fantasía para piano, coro y orquesta, Op. 80, de Beethoven37, el Concierto sinfónico N° 5 en Do menor, Op. 123, de Henry Litolff38 o el Septuor, Op. 65, de Camille Saint-Saëns39 y organizó conciertos en los que ejecutó el Concierto Imperial de Beethoven o el Concierto en Re Menor de Mendelssohn40. Por el contrario, las segundas, bajo la modalidad de veladas artísticas o literarias, fiestas o “concierto a beneficio” u otro evento social, fueron más misceláneas, con una selección de varias piezas musicales breves, de gusto del público. Comúnmente incluyeron fragmentos de óperas de G. Puccini, G. Verdi y R. Wagner -en transcripciones para piano, piano y otro instrumento, con y sin voz-, polonesas de F. Chopin, numerosas romanzas y canciones de autores como E. Grieg, R. Schumann, F. Mendelsshon, F. Liszt, entre otros, y también de compositores considerados como “menores”41. En algunos casos no faltaron los himnos y los populares cuplés o valses de distintos autores y hasta un “baile social” para culminar el evento. Además, en ocasiones hubo discursos, lecturas o recitaciones y hasta la representación de una comedia o un juguete cómico -al final de la primera parte, la segunda o en ambas- o la proyección de un film. En el repertorio de muchas de estas audiciones Por ejemplo, los 100 años de la muerte de Beethoven, en 1927, y los 250 del nacimiento de Johann Sebastian Bach, en 1935. 36 El Mercurio, 23 VIII [IX], 1914. Sin duda hay error en la fecha manuscrita del mes ya que el concierto se realizó el 21 de septiembre. Álbum 3 de Aracena, CPRS. 37 [La] Unión, 20 VI, 1915; [sin fuente], 25 de julio, 1915; El Mercurio, 3 agosto, 1915. Álbum 3 de Aracena, CPRS. 38 39 C.H.S. [Carlos Humeres Solar]. “Los conciertos del maestro Aracena Infanta”, El Mercurio, 17 de diciembre, 1935. Álbum 14 de Aracena, CPRS. La Nación, 17 de diciembre, 1935; El Imparcial, 16 de diciembre, 1935; Las Últimas Noticias, 17 de diciembre, 1935; La Discusión (Chillán), 21 de enero, 1936. Álbum 14 de Aracena, CPRS. 40 Término utilizado en algunas enciclopedias, diccionarios e historias de la música del siglo pasado para designar a músicos que no tuvieron la notoriedad de “los grandes maestros”. 41 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 314 es patente la reminiscencia de conciertos decimonónicos ofrecidos por el CNM y sociedades musicales de todo el país, a los cuales asistió la elite. No obstante, comienzos del siglo XX, precisamente estos programas fueron duramente criticados por los músicos “reformadores”, por considerarlos no solo obsoletos sino también indignos en músicos profesionales42. Especial mención merecen los programas música religiosa, por una parte, por la adhesión que tuvieron por parte de la población y, por otra, por la afinidad e importancia que esta música tuvo en la trayectoria de Aracena, como creador y organista. En las primeras décadas del siglo XX Chile fue un país eminentemente católico (además, hasta 1925 existió el vínculo Iglesia-Estado) y las fiestas religiosas se conmemoraron con gran solemnidad musical en los colegios confesionales e iglesias más importantes. Aracena creó obras, por ejemplo, para las comunidades escolares en las que fue profesor, y preparó coros, orquestas y ejecutó como intérprete solista y acompañante en numerosas oportunidades43. También compuso para masivas celebraciones en la Catedral de Santiago – como Santa Cecilia, patrona de la música- y, con gran aceptación del público, programó nutridos conciertos como organista de la Basílica de la Merced. Como muestra, en diecinueve audiciones ofrecidas en dicha iglesia en 1930, ejecutó 123 obras de 64 compositores diferentes. J. S. Bach se encuentra prácticamente en todas ellas (más de 30 obras)44. Ese fue uno de los compositores preferidos “[d]el primer organista chileno”, como lo llamó Uzcátegui45. También los álbumes informan sobre los numerosos músicos que compartieron el escenario y(o) colaboraron junto con Aracena en distintas oportunidades46. Al respecto, se observan dos aspectos relevantes: por un lado, la frecuente participación tanto de intérpretes profesionales como Cfr. Spikin-Howard, A.: “El por qué del fracaso de la enseñanza musical en Chile”, Marsyas, I/1, (marzo), 1927, p. 36. 42 Entre los principales se encuentran: Colegio de los Padres Franceses, Colegio San Agustín, Colegio San Pedro Nolasco y Colegio San Ignacio. Además, programó y colaboró en actos literario-musicales, reparticiones de premios, concursos, aniversarios y celebraciones de autoridades. 43 44 Librillo suelto en Álbum 11 A de Aracena, CPRS. 45 Uzacategui, op. cit., snp. Entre muchos, figuran: Luis Sandoval (profesor y director), Enrique Soro (pianista y compositor; Alfredo Padovani ( director y compositor), Lydia Montero (violinista), Emmanuel Martínez (cantante), Américo Tritini (pianista), Pedro Navia (cantante). 46 Carmen Peña Fuenzalida 315 también de músicos en formación y aficionados y, por otro, el alto número de mujeres. La tajante división entre “profesionales” y “aficionados” que paulatinamente se fue estableciendo es difusa en las primeras décadas del siglo XX. Fue común que maestros y alumnos, así como músicos de bandas y orfeones prestaran su cooperación en presentaciones musicales más masivas o populares -como las comentadas más arriba-, pero también fue usual que estudiantes aventajados de un profesor tuvieran un papel interpretativo importante en los “conciertos tradicionales”. Entonces todavía fue un signo de ilustración, cultura o “bien visto” ejecutar instrumentos o cantar. Más aún para las mujeres, que conforme a la tradición decimonónica, recibieron clases de música, baile, canto e interpretaron música como parte de su formación47. No obstante, ellas también encauzaron sus intereses en la docencia –privada y en el CNM- e incluso algunas se aventuraron en la composición y publicaron obras48. No menos significativa es la galería de escenarios o espacios representados en los álbumes. Salas y salones de sociedades –varias de Socorros Mutuos-, academias, círculos sociales y artísticos, colegios y escuelas, hoteles junto a iglesias y numerosos teatros, en especial de la capital, acogieron las diferentes veladas, actos, fiestas musicales o dramáticomusicales y conciertos. Entre los teatros más recurrentes se encuentran: el Teatro Santiago, Teatro del Conservatorio Nacional de Música, Teatro Municipal, Teatro Novedades, Teatro Miraflores, Teatro Victoria y Teatro Unión Central. PERSPECTIVAS El estudio vinculado específicamente a Aracena y a los álbumes es un trabajo en proceso; falta mucho por decir. A diferencia de varios músicos de Una estadística de la población escolar del Conservatorio de Música y Declamación indica que en 1911 había 196 hombres y 523 mujeres. Sandoval, L.: Reseña histórica del Conservatorio Nacional de Música y Declamación 1849-1911. Santiago Imprenta Gutenberg, 1911, p. 34. 47 Este tema es ampliamente abordado por Bustos Valderrama, R.: La mujer compositora y su aporte al desarrollo musical chileno. Santiago: Ediciones Universidad Católica de Chile, 2012; y Merino Montero, L.: “Los inicios de la circulación pública de la creación musical escrita por mujeres en Chile”. Revista Musical Chilena, LXIV/213 (enero-junio), 2010, pp. 53-76. 48 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 316 su tiempo, fue una persona de pocas palabras; en un par de textos de prensa él mismo lo señala y lo ratifican las contadas entrevistas que concedió. En todas ellas sus palabras son escuetas y mesuradas. Por tal razón, bien se puede aventurar que ese rasgo de su personalidad lo incentivó a elaborar sus álbumes, dejando, de este modo, que ellos hablaran por él. Los álbumes evocan un caleidoscopio. Aracena atesoró y consignó en ellos un cúmulo de recuerdos de su trayectoria artística. Son fragmentos, una selección de episodios, escogidos según por su propio criterio, subjetivo, pero también iluminan sobre distintos escenarios reales – entendidos como lugares y circunstancias- de circulación de la música en las tres primeras décadas del siglo XX. Dependiendo del prisma de la mirada y del análisis de la documentación es posible conocer, comprender y (re)construir el pulso de una actividad o faceta del quehacer musical capitalino a veces sesgada, parcial o definitivamente ausente en la literatura canónica, tanto en lo relativo al desarrollo profesional de los músicos como en cuanto a repertorio creado y comunicado públicamente. En el curso de esta comunicación, en varias ocasiones se hizo referencia a “la vida musical”. Como bien señaló en una ocasión el compositor Fernando García, ésta involucra desde el músico hasta quien vende discos o la entrada al teatro. Desde esa perspectiva, estos álbumes y otros todavía inexplorados contienen un rico universo de documentos que, junto con proporcionar “datos duros”, invitan a incursionar en líneas investigativas que profundicen, por ejemplo, en prácticas de sociabilidad, redes de circulación de la música, asociaciones entre los músicos (muchas veces más solidarias que propiamente musicales), apreciación de la prensa sobre la música y los músicos, la función y aporte de los aficionados, el papel de las mujeres en la práctica musical o los vínculos entre las músicas –popular y “seria”- entre otros. Todos son temas que, en definitiva, además pueden contribuir a un diálogo más fructífero entre el pasado y el presente. BIBLIOGRAFÍA 1. 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Lo primero que sostiene es que “en 1974, Eugenio Dittborn decidió no dibujar más a “mano alzada” y creó una “mano ortopédica” -una expresión de Enrique Lihn- compuesta de instrumentos de dibujo técnico con el objetivo de reprimir cualquier emotividad de su gesto”. Y luego le pregunta a Dittborn sobre el cambio de estrategia que le significa dejar de trabajar con “obras pesadas”. Ni siquiera menciona la noción antagónica de “obras livianas”. Dittborn le responde de inmediato que esas obras pesadas eran in-transportables. Y agrega: “Mi último trabajo importante realizado sobre una superficie tan pesada como extensa y tan rígida como frágil fue mi envío a la Bienal de Sydney en abril de 1984”. La afirmación de Dittborn sobre el abandono del dibujo a mano alzada es preciso tomarla en lo que vale; es decir, que jamás dejó de dibujar a mano alzada (en el privado de su producción de obra), mientras realizaba su programa ortopédico (de disposición pública). Más bien, hay que entender que en paralelo, la ortopedia vigilaba el alzamiento de la mano y que este último se regulaba de acuerdo a unos procedimientos rigurosos, que tomaban el trazo como unidad gráfica mínima de enunciación1. “LET US SEE IF YOU CAN BE AS GOOD AS ME.” es una pieza de Dittborn, realizada (aprox.) en 1987. La primera dificultad que debe Mellado, Justo Pastor, “Mano cortada”, In Dos textos tácticos, Ediciones Jemmy Button Ink, Santiago de Chile, 1998. 1 321 ser sorteada es que se trata de un envío por correo; es decir, de una carta dirigida por Dittborn a un miembro de la comunidad artística santiaguina con quien está debatiendo acerca del carácter de su propio trabajo, hasta ese momento. Dittborn responde a través del envío por correo de un dibujo, haciéndole saber a su destinatario cual es su “escena de origen”, donde el “palote” es la marca de una retracción sentimental. No hay narración epistolar, sino una disposición de signos que deben ser leídos por el receptor como un manifiesto ideo(pro)gramático. Esta es la razón de por qué señalo la existencia de una polémica desplegada desde las obras, poniendo de relieve los términos de un conflicto formal. Mi propósito es entregar antecedentes suficientes que permitan reconstruir la escena de la polémica referida, prefigurando las pruebas que me autorizan a sostener que el Sistema Dittborn precede no solo cronológica, sino conceptualmente a la instalación de la estrategia de la “aeropostalidad”, que desde hace algunos años a esta parte se ha convertido en el canon interpretativo acerca de la obra dittborniana. Resulta sorprendente, en este sentido, que todos los críticos que han acudido aportar su auxilio a la preeminencia de la “aeropostalidad”, desestimen el período de formación in(d)icial de la obra dittborniana y omitan sistemáticamente las pruebas que demuestran la existencia de un proceso de construcción de obra, cuya modelización ha resultado ser ejemplar para la constitución de un nuevo campo de productividad en la escena chilena. Sobre una lámina de cartón -que ha servido de soporte a un block de papel borrador fiscal-, Eugenio Dittborn dispone una serie de palotes, marcados no directamente por un lápiz, sino que su intervención ha sido mediada por la aplicación de un papel calco que ha cubierto la lámina de cartón, sobre el que se ha ejercido la presión de un lápiz. Una vez retirado el papel calco aparece la inscripción resultante, producto del traspaso. Este gesto apela a enfatizar el valor que tiene para Dittborn el “argumento del traspaso” como un momento técnico de proyecciones conceptuales, en el que Dittborn se invierte para construir una distancia crítica, a través de la cual ratifica su preocupación por las ortopedias del traspaso mecánico de la imagen. Sin embargo, la distancia se ha construido al dejar en evidencia la ausencia del papel original que es colocado sobre el papel calco. De este modo, Dittborn instala la preeminencia del papel que hace (la) falta, para autorizar el rol sustituto del papel carbón que es, por así decir, ascendido a un rol de “original”. Y luego, el propio papel carbón es dejado de lado, excluido, História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 322 deportado, como si se constituyera como “la prueba de una prueba” que ha sido preciso escamotear, para dejar en suspenso el andamiaje tecnológico de la memoria gráfica como la iniciativa de un traspaso habilitado por sus propias condiciones de registro y de reproducción. Un palote es un trazo recto y vertical de escritura que se realiza en papel pautado cuando se está aprendiendo a escribir. Sin embargo, en esta lámina de Dittborn los palotes están inclinados, un poco hacia la derecha, como si anticiparan la condición de una impresión tipográfica en itálica. Resulta sorprende cuánto los críticos de la posteridad cercana omiten la sobredeterminación tipográfica en la obra editorial de Dittborn. Es decir, en una obra que se concibe a si misma como una gran puesta-en-edición, que articula el carácter “combinado y desigual” de las políticas de transferencia. En alguna ocasión, cercano a la fecha de que hablo, Dittborn declara “no pinto, imprimo”. Lo que equivale a decir, “yo transfiero”. De ahí, su afección por la letraset y los dispositivos de traspaso gráfico, sobre todo en 1981, cuando edita un libro magistral, que jamás ha sido publicado: UN DIA ENTERO DE MI VIDA. Mi hipótesis es que en este libro, comenzado en 1979 (aprox.), Eugenio Dittborn expone la “teoría” que sostiene su “sistema de obra”, desplegando sus argumentos scrito-visuales sobre una materialidad que recusa la ideología del “papel blanco”, al hacer empleo de los papeles de más baja calidad, tales como papel de envolver, papel secante, papel semi acartonado (que en Chile tomaba el nombre de “papel carátula”), cartón gris, por mencionar algunos. En Dittborn, es preciso situar la importancia que adquiere el cartón piedra, que es el cartón de más baja calidad; pero sobre todo, porque es el producto que más se acerca al secado de una pulpa grosera, todavía tibia al pasar por los rodillos de la máquina en el molino de papel. Pues bien: sobre estas páginas, Dittborn evoca la teoría de Locke según la cual el hombre carece de ideas innatas. Lo cual constituye una humorada teórica para insistir en el hecho de una página en blanco está sobrecargada de sentido; que en definitiva, no existe la página en blanco, sino esta página sobre la que la cultura ya ha sancionado su existencia, como superficie de recepción de los fragmentos y recortes de revistas, fotocopias de fotografías encontradas, fotocopias de fotografías de fragmentos de su propia obra, fotocopias de fragmentos de libros, sobre las cuáles escribía (o hacía escribir) con pluma y con tinta china, a veces roja, a veces negra, refranes y lugares comunes. En otras páginas, escribía a máquina (en alta), Justo Pastor Mellado 323 textos descriptivos sobre las condiciones de producción del propio libro, así como transcripciones de algunos textos de Ronald Kay, poeta y escritor que había escrito, ya en esa fecha, los mas relevantes textos sobre su obra de 1978-19802. En relación a lo que interesa para mi propósito, hay decenas de páginas en las que Dittborn transcribe a máquina, utilizando una IBM eléctrica “de bola”, cuyos modelo disponía de un carrete que contenía una cinta de carbón y una cinta correctiva. Sin embargo, la cinta de carbón tenía un problema de seguridad, ya que podía leerse en la cinta el texto que se había escrito, ya que las letras aparecían claras sobre un fondo negro. Por esta fecha, podemos encontrar obras de Dittborn en las que emplea la cinta de estos carretes, disponiéndolas como “pie de página” a título de zócalo de la imagen. En la lámina de los “palotes”, de 1987, Dittborn escribe el título con esta máquina, en mayúsculas, y deja en minúscula la frase “una calcografía de eugenio dittborn”. En 1987 reproduce el mismo gesto programático ya planteado en 1981, en UN DÍA ENTERO DE MI VIDA, pero invierte los términos, en que ocupa como firma efectiva la escritura mediante el empleo de una IBM eléctrica y deja para la argumentación pre-textual el efecto de lo “hecho a mano”, mediante los palotes inclinados puestos allí para señalar la inexistencia de una pauta. En los cursos de dibujo en la escuela de arte (antigua) se hacía completar a los estudiantes de primeros años, cuadernos enteros de “palotes” a mano alzada, de diversos grosores, como ejercicio elemental. Esta costumbre dejó de ser practicada hace muchos años. Pero recuerdo que los estudiantes debían llegar cada lunes con miles de “palotes” -de distintos grosoresdibujados durante la semana. De ahí la importancia de los “palotes” en los comienzos de la caligrafía, en el entendido que escribir, en el fondo, es practicar un tipo de dibujo especial, indicial e inicializante. Para terminar, Dittborn hace referencia a un espacio de “restricción ejemplar”, como es el espacio carcelario, pero no emplea el trazo horizontal que marca la completación de un período, dejando establecida la hipótesis sobre la propia práctica del dibujo y de los procedimientos que le corresponden, como un espacio de “restricción ejemplar”. Lo que importa, en la coyuntura de 1987, es el recuerdo del uso programático del palote, 2 Kay, Ronald. “Del espacio de acá”, ediciones V.I.S.U.A.L, Santiago de Chile, (1980). História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 324 en Dittborn, para designar la eficacia de su propia “escena de origen”. (En todos sus trabajos, esta cuestión está presente: lo nuevo es el acontecimiento de un retorno; que es el retorno de los problemas que ha planteado en su libro de 1981). El trazo “a mano alzada” es la sola novedad que Dittborn puede afirmar en el debate cifrado que sostiene con otros artistas, en la coyuntura de 1988, en el momento de preparar su exposición de Pinturas Aeropostales en el Centro Cultural Miraflores, de Lima. Sin embargo, se trata de la mano alzada en “su grado cero” de expresión. Eso es un “palote”: escena de origen de la escritura. Todo eso posee, en el sistema dittborniano un lugar eminente, siempre habilitado por una mediación; de ahí que los “palotes” sean realizados sobre papel calco, porque con esto remite a la asociación con el sistema fiscal de la reprografía. Lo que la dictadura militar ha puesto en crisis es el modelo de la fiscalidad anterior, sobre cuyo soporte gráfico Dittborn re-edita los indicios de una memoria averiada, en cuya reproducción el papel (del) Original ha desaparecido. El papel calco juega su rol en el universo de la dactilografía, realizado en un espacio de oficina pública. Esta es una sutil y distante referencia del artista a la situación de exclusión, de represión de la experiencia sensible que afirma las relaciones del ciudadano con la administración del Estado, que ya no es más su espacio de recurso “providencial”. De ahí, la necesidad de marcar a mano alzada sobre papel calco, para dotar al gesto individual de un carácter burocrático fundamental que insiste en el deseo de un regreso al origen de donde provenían, en la democracia, anterior, todas las inscripciones institucionales. Durante la dictadura, los artistas como Dittborn se empecinaron en poner en evidencia las faltas infringidas a la matriz, como noción, para contrarrestar las iniciativas de aniquilación material y simbólica de las memorias anteriores que el régimen militar se había propuesto borrar. De ahí que en la coyuntura de fines de los setenta, fueran usuales -en los artistas chilenos- las referencias al sistema del grabado clásico, siendo éste un campo de operaciones desde donde se podía ejercer la crítica política, apelando directamente al diagrama implícito que habilitaba su propia memoria tecnológica. Esto coincidiría con una fobia pictórica que sería la característica de una coyuntura en que la pintura sería calificada como una práctica reproductora de una impostura constitutiva, en el arte chileno. Justo Pastor Mellado 325 La copia de un documento permite que haya envío de un original, al momento que las copias se distribuyen en diversos archivos, constituyéndose en documentos de prueba. Al dibujar los “palotes” a través del papel carbón, Dittborn le atribuye a su dibujo el rol de una prueba para un “original extraviado”. Ahora bien: esta pieza de la que me ocupo es indicativa de una polémica específica, que no va a ser percibida por el conjunto de la crítica va a resolver a nivel de obra. Al dibujar en papel calco sobre la lámina de cartón de bloc de borrador, Dittborn hace una referencia material degradada y paródica de un modelo de trabajo con el cual Gonzalo Díaz ha operado desde 1985. Me refiero al modelo del “bloc mágico”, al que hago referencia en un texto que escribí sobre la obra de Gonzalo Díaz, KM104, exhibida en junio de 1985 en Galería SUR3. No es necesario describir aquí en qué consiste el “bloc mágico”. Existe una similitud entre el modelo original de este “bloc” que da curso a un análisis de esa obra de Díaz y la “copia” (documento probatorio) a través de la cual Dittborn realiza una cita sarcástica del extravío del “original” de Díaz, que ha sido realizado mediante impresión serigráfica. Dittborn le hace recordar que se puede habilitar traspasos mecánicos simples a través de la intermediación de un material de transferencia (papel carbón) sobre el que se puede intervenir a “mano alzada”. En cierta medida, el argumento de Dittborn apunta a declarar que Díaz carece de un original de referencia lo suficientemente consistente y le recuerda que la serigrafía corresponde a un dispositivo más de transferencia, y que si se trata de hacer la memoria de las transferencias en el arte chileno, ya debiera saber a quien remitir la deuda. Esta no es la única mención a Gonzalo Díaz. El título de esta lámina es “LET US SEE IF YOU CAN BE AS GOOD AS ME” y es una transformación del título de la obra que Gonzalo Díaz envía a la Vª Bienal de Sidney, a la que ambos asisten, formando parte de un curioso envío chileno, en el que participan Díaz, Dittborn y Dávila. Curioso, por el triángulo de exclusión que se configura como soporte de un envío a una bienal que tiene como eje la proposición “Símbolo Privado: Metáfora Social4”. Mellado, Justo Pastor. “El “bloc mágico” de Gonzalo Díaz”, 1985. Reproducido por Ediciones Digitales, Centro de Documentación de las Artes Visuales, CEDOC, Centro Cultural Palacio La Moneda, Santiago de Chile. 3 4 Catálogo, FIFTH BIENNAL OF SIDNEY (11 April - 17 June 1984), “Private Symbol: História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 326 Entenderé por triángulo de exclusión formal la ausencia de complicidad epistemológica entre los diagramas de obra de los artistas mencionados. La coherencia de un envío a una bienal, teniendo como curadora nacional a Nelly Richard, hace pensar que los artistas debieron haber sido otros, si uno se atiene a lo que es dable esperar como reflejo de la posición teórica que la propia crítica de arte ha elaborado para instalar la dictadura de un significante pictofóbico en la escena interna. Sin embargo, la solicitud de coherencia que se podía esperar no tenía por qué ser satisfecha, en la medida que su discurso de exportación bien podía sostenerse mediante una solución de compromiso formal, habilitado por el eje explícito de la bienal, que acogía en un mismo envío a tres artistas cuyas obras eran puestas en situación de repelencia formal. Por razones de espacio y de oportunidad solo haré referencia a la repelencia que tiene lugar entre las obras de Gonzalo Díaz y Eugenio Dittborn. Para hablar de repelencia no reduciré la visión al asco o a la impertinencia, sino a la propiedad de los suelos, como una metáfora que se atribuye para si las propiedades de unas obras, como en este caso. Más bien me voy a referir a la repelencia al agua que, siendo una propiedad de las obras, reduce las tasas de infiltración, pudiendo llegar éstas a ofrecer una resistencia intensa a la humectación. Pensar las relaciones entre las obras de Díaz y Dittborn en términos de repelencia tiene el valor de fijar una pareja de opuestos entre humectación y sequedad. Díaz piensa en términos de una humectación que favorece la permeabilidad de las asociaciones en un espacio gráfico concreto, sobre el que comprime y diluye al mismo tiempo operaciones de veinte a veinticinco pasadas de bastidor; en oposición a Dittborn, que opera sobre la erosión temporal de la imagen a través de una monocromía que trabaja amenazado por el fantasma de la sequía. Gonzalo Díaz está de regreso de su estadía en Florencia en 1980 y viene de montar en Galería SUR, a comienzos de 1982, la emblemática exposición “Historia sentimental de la pintura chilena”, con la que se propone interpelar una obra de Eugenio Dittborn de 1978, “delachilenapintura,historia”, sancionada de manera implícita como el anverso de la sentimentalidad. La pulcritud narrativa de esta última, que recurre a piezas para las que Dittborn emplea un sistema de ortopedia gráfica (trazos realizados con regla de arquitecto y rapidograph) es enfrentada al exceso higienista consagrado por Gonzalo Díaz mediante Social Metaphor”, Sidney, 1984. Justo Pastor Mellado 327 la figura de una sirvienta, sustraída desde la publicidad de un limpiador de artefactos sanitarios, que con un paño de fregar en la mano ha llegado al arte chileno para limpiar -desengrasar- el grumo monocromo a que ha sido sometida la condición de representación en la escena chilena. En este debate, Gonzalo Díaz introduce el humor humectante de la imagen de la sirvienta que viene a “representar” la tarea de higienización de la escena, que de manera implícita había sido intoxicada por los efectos químicos de las tintas de impresión serigráfica. Hipótesis que funcionaba solo si se consideraba el espacio dittborniano como subordinado a la desertificación de la imagen y del soporte, respecto de lo cual, la exhuberante asociatividad narrativa de Gonzalo Díaz no hacía mas que apelar a la humectación y permeabilidad que conducía las referencias serigráficas hacia un universo léxico en que la noción de seminalidad ocupaba un rol hegemónico, adquiriendo proyecciones propiamente pentecostales. La humectabilidad conectiva de las referencias iconográficas en Díaz se proponía superar la resequedad de la fijación de un fondo austero de ingerencias figurativas monocromas en Dittborn; en el sobreentendido que la humedad barroca de Díaz debía confrontar el espacio de una economía de la restricción en Dittborn; es decir, donde aparecía el delirio sentimental (1982) como una estrategia de respuesta al martirio doloroso de la impresión de grano (1978). Bajo estas circunstancias, esta es la primera tentativa visible de Gonzalo Díaz por re-pictorizar el dispositivo serigráfico en la escena chilena, y anuncia lo que va a consolidar en la producción de su obra KM104, que será presentada en Galería SUR en mayo de 1985. En el ensayo que escribí a partir de esta obra, sostuve que el uso de la pareja humectación/sequedad reproducía, en cierta manera, los términos de una polémica significativa a nivel de obra. Dittborn había instalado la supremacía de la coagulación en la pintura, haciendo un uso ampliado del “caput mortuum rot” (el color de la sangre coagulada) como grado cero de la pictoricidad. La sangre que brota del cuello del animal decapitado es análoga al aceite quemado de auto que se precipita por una falla del sistema de lubricación de un automóvil. Dittborn homologa de manera forzada la mecánica automotriz a la mecánica corporal, poniendo el énfasis en el líquido que cae sobre una superficie absorbente. Por eso empleará tela de yute para recepcionar el goteo del aceite de manera a formar una gran mancha auroleada por la temporalidad de la absorción y del secado. De História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 328 este modo, la humedad de la liquidez en Dittborn es solo un momento que permite valorizar su efecto de secado. En Díaz, en cambio, la humedad se propone mantener activa la conectividad líquida entre las imágenes y las temporalidades políticas que condensa en una sobreposición, cuando combina elementos de diversa procedencia. Aquí, “Historia sentimental...” interpela a la “historiachilena, pintura” a nivel de la disputa entre liquefaccion y coagulación del título. La sentimentalidad de la mirada y de la factura mecánica de esa serie de Gonzalo Díaz, se propone de manera manifiesta lubricar la narratividad dittborniana mantenida en condiciones de secado programado. De ahí que no se entienda a cabalidad la incorporación de ambos artistas en un mismo envío a una bienal que tiene como eje la metaforización de los símbolos privados. A menos que, de manera efectiva, cada uno de los artistas representara estrategias diferenciadas que debían dar pie a un compromiso formal desde la repelencia manifiesta de sus diagramas de constitución. Todo lo anterior es muy plausible, pero solo desde la necesidad que Nelly Richard pone en evidencia para depositar sus argumentos sobre estas obras de funcionalidad excluyente y poder sostener su hipótesis de trabajo a partir de una pregunta -“Latin America: cultures of repetition or cultures of difference?”- que ya desde 1979 -siendo responsable de revista CAL-, convirtiera en su programa de trabajo analítico. La astucia editorial requería instalar la validez de su programa, utilizando la ilustratividad de las obras de Díaz, Dávila y Dittborn, en una coyuntura extraordinariamente restrictiva para el arte chileno. Valga recordar que en esa coyuntura las exposiciones de artistas chilenos en el extranjero no eran comunes y que el envío a la Quinta Bienal de Sidney es un momento de inflexión. De este modo hay que dimensionar la ausencia de exposiciones de proyección internacional y bajo esta consideración, el envío a Sidney concitó a tal punto el interés y la expectación de la escena chilena, que las obras fueron expuestas en Galería SUR, en diciembre de 1983, antes de ser embaladas para ser retiradas por la empresa de transportes que se hacía cargo de su traslado. Respecto de la obra de Dittborn, este envío es realmente un momento significativo. Ahora se entenderá por qué doy comienzo a esta ponencia haciendo mención a sus propias declaraciones a la prensa, con ocasión de su exposición en el Museo de Artes Visuales, en septiembre del 2010. Justo Pastor Mellado 329 El entrevistador le pregunta a Dittborn sobre el cambio de estrategia que le significa dejar de trabajar con “obras pesadas”. Es decir, obras embalables bajo condiciones de extrema complejidad, para un artista que vive en Santiago, que es un punto de arribo terminal para todos los vuelos intercontinentales con destino hacia “el fin del mundo”, en lo que esto significa en costos de traslado y de seguros. El trato del arte chileno con el mercado de los seguros y de los transportes, y por lo tanto, con los embalajes, en 1983, es decididamente precario, no alcanzando a satisfacer las condiciones mínimas. No existiendo capacidad exportadora del arte chileno, es imposible contratar empresas en el rubro específico del transporte de obras de arte porque simplemente ninguna de las que intentan realizar dicha función alcanzan los rangos mínimos. Dittborn le responde al periodista que esas obras pesadas se habían convertido en obras intransportables. Esta afirmación apunta a reconocer no solo una fatalidad conectiva, sino que los curadores internacionales de renombre no incluyen en sus agendas una visita a nuestro país. ¿Que mejor, entonces, que diseñar un dispositivo que permita acceder a lugares de exhibición, resolviendo de antemano todos los problemas logísticos relativos al manejo de “obras pesadas”. Por esta razón repito la declaración de Dittborn sobre el realismo con que aborda una situación que favorece su exclusión del circuito internacional: “Mi último trabajo importante realizado sobre una superficie tan pesada como extensa y tan rígida como frágil fue mi envío a la Bienal de Sydney en abril de 1984”. Este es el momento que justifica el “nacimiento oficial” de las Pinturas Aeropostales como estrategia de inserción en el mercado internacional, para un artista de la Periferia. Una solución de este carácter termina por convertirse en un complejo aparato de producción formal con una historia que contempla la re-puesta en escena de los dispositivos de su producción anterior, dando pie un re-comienzo de tal envergadura en cuanto a su reconocimiento e inscripción que ha pasado a convertirse en el sinónimo de su obra. Sin embargo, sostengo que el Sistema Dittborn ya estaba instalado, antes de 1983; solo que carecía de circulación internacional. En este sentido, no me cansaré de repetir que el diagrama de la obra ya había sido construido y es contra sus efectos conceptuales en la interpretación de la fase, que la pieza que Gonzalo Díaz produce para Sidney se levanta desde el propio título: “LET´S SEE IF YOU CAN RUN AS FAST AS ME (A ver si puedes correr tan rápido como yo). Título que pasa a precisar una História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 330 acto de agresión solapado, de baja intensidad, que da curso al deseo de que la figura del Correcaminos (dibujo animado) represente por contigüidad el factor de velocidad de transferencias y recambio de referentes que debiera tener lugar en la escena chilena entendida como desierto. A estas alturas queda solo por preguntar -desde esta operación- a quien le cabría ocupar el lugar del Coyote. Es preciso poner en relación la traducción literal del título de la pieza de Gonzalo Díaz con el título de un relato empleado por Dittborn desde 1977 (aprox.) y que se convirtió en un procedimiento ejemplar en la producción del trabajo de éste último desde esa fecha en adelante. No deja de ser fundamental el hecho que para la Quinta Bienal de Sidney, Dittborn considere para su envío, dos piezas: LA PIETÁ y UN DIA ENTERO DE MI VIDA. A mi juicio, estas piezas exponen a cabalidad el diagrama de lo que he dado en llamar Sistema Dittborn. La sequedad ha sido la condición dittborniana para sostener un criterio de desertificación de los referentes pictóricos transferidos a América desde hace cinco siglos. De este modo, levanta una hipótesis que le permitirá invertir el proceso tecnológico de reproducción de la pintura, mediante la literalidad expansiva de sus procedimientos. Sin embargo, esta operación no podía ser realizada desde el interior del sistema pictórico, sino que debía recibir el auxilio de un procedimiento analítico que Dittborn inventó desde el campo del grabado clásico, pero que éste “lee” como pre-historia de los procedimientos tecnológicos de transferencia. Siendo esta la razón de por qué dirijo mi atención hacia la fascinación que guarda Dittborn respecto de los dispositivos de traslado y que se conecta con la decisión de producir la lámina de “palotes” a la que me he referido profusamente al comienzo de esta ponencia. La literalidad dittborniana concibe el desplazamiento analítico de los elementos que entran en la definición de la pintura, según la categoría del gesto, del soporte y del medium. En el fondo, si el sistema pictórico oficial exige pintar al óleo, entonces Dittborn afirma que él lo hace, pero con otro tipo de “óleo”; a saber, el aceite quemado de automóvil. ¿Que es lo que importa aquí? La noción de merma. No se trata ya de recurrir al óleo de marca, sino a la excrecencia de un lubricante que asegura el funcionamiento de una máquina corporal. Luego, si el sistema exige pintar sobre tela, éste lo hará sobre un soporte sin imprimar que va a recuperar de sacos de yute ya utilizados, y que -de nuevo- exponen el efecto de las mermas de traslado, Justo Pastor Mellado 331 como un modelo que prefigura toda práctica de transferencia informativa en lo que a historia de la pintura se refiere. Y finamente, si el sistema le exige involucrar la manualidad, Dittborn responde recurriendo a un gesto simple, que es dejar escurrir. Si bien hay que admitir que antes de subordinarse al escurrimiento, realiza pintura sobre tela de yute o tela de linoca sin imprimar, ejecutando algunos compromisos iniciales, para los que emplea unas herramientas simples que le permiten manchar por aplicación directa y dar una cierta forma al escurrimiento. Una de las piezas para Sidney, LA PIETÁ, recupera esta manera de trabajar, que ya había puesto en práctica hacia 1977. El modelo del gesto (cita bíblica) es un intento de contener la deflación y la escurrencia de la corporalidad. Aunque por el momento, mi propósito inmediato -falto de espacio- es mencionar de donde viene el título de la otra obra presentada: UN DÍA ENTERO DE MI VIDA (A WHOLE DAY OF MY LIFE). Todo proviene de un relato obtenido como “fragmento literario encontrado” -en el Reader´s Digest- que adquiere el rol de biografema; es decir, anécdota de proyección significante. Una madre regaña a su hijo porque regresa al final del día a casa con la camisa enteramente manchada por el efecto de sus andanzas infantiles. El niño observa su prenda lleno de orgullo y responde: “Mamá, esto es un día entero de mi vida”. La tela de la camisa le ha absorbido el sudor y ha acogido las manchas de tierra obtenidas en el curso de sus juegos. Mediante este conflicto, Dittborn relata las dos formas de apropiación técnica de la imagen; ya sea por absorción como por contacto directo (monocopia). Podremos observar que las imágenes impresas de esta pieza corresponden a dos fotografías: las superiores, reproducen la imagen obtenida de un impreso deportivo de un nadador sobre el agua realizando su máximo esfuerzo por avanzar; las inferiores, el dibujo del estado de una momia reproducido en una publicación antropológica. El esfuerzo corporal máximo supone la humedad, mientras que el desfallecimiento de la representación calza perfectamente con la momificación (sequedad). Dittborn sabe en ese mes de diciembre de 1983, en que el envió a Sidney se exhibe en Galería SUR antes de ser embalado, que a nivel de obra el programa ya está definido y que solo debe esperar un tiempo razonable para que la estrategia de la aeropostalidad se instale, no solo como dispositivo de circulación de obra, sino como sistema de trabajo. Con esto quiero sostener la hipótesis por la cual la aeropostalidad es el efecto residual del sistema que el propio artista pudo montar, ya desde antes de 1983. Es así como en 1987 (aprox.) envía a un miembro de la comunidad artística santiaguina, una lámina de cartón conteniendo los “palotes” a los que me he referido al comienzo de este ensayo. Solo ahora es posible entender la importancia que se instala en la pequeña diferencia entre los dos títulos involucrados en la polémica-de-obra: “LET´S SEE IF YOU CAN RUN AS FAST AS ME” (Díaz, 1983) y “LET US SEE IF YOU CAN BE AS GOOD AS ME” (Dittborn, 1987). Lámina 1 LET US SEE IF YOU CAN BE AS GOOD AS ME, una calcografía de Eugenio Dittborn, (circa 1987) História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 334 Lámina 2 UN DIA ENTERO DE MI VIDA (PORTADA) Justo Pastor Mellado 335 Lámina 3 “LET´S SEE IF YOU CAN RUN AS FAST AS ME” (Gonzalo Díaz, 1983) História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 336 exposições e narrativas Lecciones de civilización: La ilustrada exhibición de la primera misa en Brasil y la fundación de Santiago Patricia Herrera Styles Estudiante de Doctorado en Filosofía con mención en Estética y Teoría del Arte, Universidad de Chile. Académica e investigadora. Facultad de Artes, Universidad de Playa Ancha, Valparaíso, Chile. Bellas Artes y civilización Durante la segunda mitad del siglo XIX, América Latina vivió un proceso de reinvención tanto material como simbólica a partir de sus independencias políticas que se inscribió dentro de una matriz denominada “ilustrada”. En ésta, ideas y prácticas sociales se articularon en base a la constelación intelectual del positivismo, liberalismo, neoclasicismo, romanticismo y especialmente a los conceptos de civilización y progreso. Asumido por las elites dominantes, este modelo impuso una forma de pensamiento dual, en la cual la realidad se entendió y organizó a partir del establecimiento de dicotomías tales como lo secular/religioso, lo femenino/masculino o lo culto/ popular. En el caso del concepto de civilización, éste se definió a partir de su opuesto, es decir lo bárbaro, acepciones que entre otras cosas, sirvieron para ordenar jerárquicamente la sociedad, diferenciar espacios, establecer ritos y crear objetos, al declarar la superioridad racial e intelectual del hombre blanco (visto como un “nosotros”) y supeditar a un lugar secundario a indios, clases bajas, esclavos o campesinos (los “otros”). Adaptada a las realidades locales, esta matriz fue constantemente reinterpretada, dándose interesantes diferencias entre los países. En Brasil y Chile por ejemplo, se construyeron proyectos políticos muy diferentes, una monarquía constitucional en el caso del primero, y una república en el caso del segundo, proyectos que sin embargo coincidieron en ciertos aspectos relacionados con la construcción simbólica de la nación. En este sentido reconocemos las Bellas Artes, consideradas en la época una necesidad y modeladas a partir de una institución conocida como Academia, pintura, escultura y arquitectura, tuvieron un rol fundamental, 337 pues permitieron definir y diferenciar lo “bárbaro” de lo “civilizado” constantemente. De esta forma, surgieron géneros pictóricos nuevos como el paisaje, el retrato y especialmente la pintura de historia; se crearon espacios exclusivos como el museo y eventos artísticos como los salones, así como la práctica de visitarlos, opinar y adquirir las obras. El artista mismo se erigió como modelo de hombre civilizado y culto, al formarse en Europa, hablar varios idiomas y entenderse como un intelectual con talento y no un artesano. En este escenario, naturalmente, el “bárbaro”, no tenía cabida, sino sólo las representaciones que en tela o mármol los artistas hacían de él. Los óleos La Primera Misa en Brasil, creada por Víctor Meirelles de Lima en 1861, y La Fundación de Santiago, realizada por Pedro Lira Rencoret en 1888, son dos ejemplos que nos permiten escudriñar en lo anterior, no sólo porque ellas mismas pueden ser consideradas una especie de “lección” de lo que significaba ser civilizado y bárbaro en el Brasil y el Chile de la segunda mitad del siglo XIX, sino porque además los primeros lugares y formas cómo fueron exhibidas y coleccionadas, permiten conocer las estrategias que las esferas artística e intelectual locales utilizaron para reforzar o modificar la idea de civilización. Pintar para civilizar: La Primera Misa en Brasil y La Fundación de Santiago. La Primera Misa en Brasil (Fig. 1), uno de los principales íconos visuales de este país, es un óleo sobre tela de 2,68 x 3,56 metros, que representa el momento en que la flota del navegante portugués Pedro Alvares Cabral, celebra la primera misa en territorio brasileño el 1 de mayo de 1500. Además de soldados, marineros y sacerdotes, aparecen en la imagen un gran número de nativos del lugar, quienes desde el primer plano de la escena, observan el momento de la consagración del pan y el vino por parte del sacerdote Henrique de Coimbra. La obra creada por Meirelles entre 1859 y 1861 en París, - en calidad de becario del gobierno imperial y bajo el alero de la Academia de Bellas Artes de Río de Janeiro (AIBA), el Instituto Histórico y Geográfico Brasileño (IHGB) y especialmente de su maestro, el intelectual y artista Manuel Araújo Porto-Alegre1-, es el más fiel ejemplo de lo Tal como consta en la correspondencia mantenida entre ambos durante la década de 1850. Cfr. GALVÃO, 1959. 1 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 338 que se conoce como pintura histórica decimonónica, género que no sólo buscaba la representación visual de acontecimientos épicos del pasado, sino además la transmisión de mensajes éticos y morales para promover cambios sociales. Realizada bajo los severos requisitos de la Academia carioca, la obra se hacía cargo de los discursos que sobre bárbaros y civilizados circulaban en Brasil entonces, principalmente articulados a través del IHGB, entre los cuales se distinguía la existencia de dos tipos antagónicos de indígenas -tupis y tapuias, es decir, indios buenos e indios bravos2- y de dos tipos de hombres blancos - los violentos y colonizadores, por un lado, y los religiosos que actuaban a favor de los indios, por otro-. La obra finalmente se encargaba de representar el par enaltecido, es decir los portugueses que a futuro integrarían el imperio de Pedro II (1840-1889), -que representaban la unidad nacional y sobre todo la fe cristiana-, y a los indígenas, modelos del buen salvaje, que eran potencialmente capaces de incorporarse a la civilización. De esta forma el denominado Segundo Reinado, se presentaba como una monarquía de hombres justos y la obra buscaba conformar una identidad de ciudadanos brasileños, incluyendo a los indios dentro de la nación bajo la condición de anular sus diferencias culturales. La Fundación de Santiago (Fig. 2.), por su parte, una de las obras más conocidas y difundidas de la iconografía chilena, es un óleo sobre tela de 250 x 400 cms., que fue realizada por Pedro Lira en Santiago, entre 1885 y 1888. Retrata el instante en el que el español Pedro de Valdivia organiza la fundación de la ciudad de Santiago de Nueva Extremadura, el 12 de febrero de 1541, en la cima del cerro Huelén. En la obra se observa la presencia de al menos quince exploradores hispanos en contraposición a tres indígenas, habitantes originarios del Valle del Mapocho. Al igual que la obra brasileña, La fundación de Santiago también daba cuenta de los discursos que sobre civilizados y bárbaros existían en la época en el país, en este caso de mano de los historiadores liberales que formaban la esfera intelectual criolla, principalmente Diego Barros Arana, Luis Miguel Amunátegui y Benjamín Vicuña Mackenna3, para quienes el indio era un elemento que simplemente 2 Cfr. KODAMA, 2010. Si bien en Chile existían otros discursos sobre el indígena desde la primera mitad del siglo, entre ellos uno de defensa de los “naturales”, para la época de la realización de la pintura el planteamiento de estos intelectuales era el que se imponía. Barros Arana había publicado Historia General de Chile, a partir de 1884; Amunategui Descubrimiento y Conquista de Chile, en 1885 y Vicuña Mackenna, Historia Crítica y Social de Santiago en 1869, entre otras obras. 3 Patricia Herrera Styles 339 debía ser excluido del proyecto nacional, esto pues, pertenecía a una raza inferior, incapaz de superación, y que nada tenía que ver con el chileno. La obra, en cierto sentido, entregaba esta lección al observador, siguiendo la opinión de Vicuña Mackenna que justificaba plenamente la invasión del país “civilizado” en el “bárbaro” (que para entonces podía identificarse con la Araucanía que había sido recién4 “pacificada”). A partir de la obra quedaba claro que Santiago estaba destinada a ser una ciudad de impronta europea y prácticamente “sin indios” –al igual que todo el país5-, y si los había sería ocupando un lugar claramente subalterno, pues el único indígena resaltado en la imagen que aparece en primer plano, lo hace en una posición inferior a Valdivia, mientras le indica u ofrece el territorio ubicado abajo del cerro. Exhibir para civilizar: Las obras en las primeras exposiciones y colecciones nacionales Como plantea Michael Baxandall, debemos recordar que dentro de una cultura visual6, ninguna imagen actúa por sí sola, sino en un contexto más amplio de diálogo con otras imágenes -que permite reforzar o debilitar discursos-, en relación a un espacio específico y con respecto a un público que las contempla. Por ello, nos parece importante considerar que la forma cómo nuestras obras fueron exhibidas, tanto de manera temporal como luego en colecciones permanentes en sus respectivos países, también constituyeron “lecciones” de civilización. En la época, una nación civilizada y culta además de crear obras de arte, debía resguardarlas, exponerlas, contemplarlas y comentarlas, por ello la disposición en la que las obras se mostraron a sus contemporáneos no debe considerarse como un hecho neutro, inocente o transparente7. En el caso de nuestras obras, ambas fueron La denominada “pacificación” u ocupación de los territorios mapuches por parte del Ejército chileno se realizó entre 1860 y 1883. 4 Tanto Vicuña Mackenna como Amunátegui promulgaban la idea de que los indios habían desaparecido en Chile. Para el primero, una de las grandes virtudes del país, según había declarado en una conferencia en Nueva York en 1866, era no tener indios. Cfr. PINTO, 2000. 5 6 Cfr. BAXANDALL 1978. En este sentido seguimos los planteamientos de autores como Carol Duncan, quien sostiene que los museos occidentales desde la Revolución Francesa llevan a cabo permanentes tareas ideológicas y políticas bajo la imagen de ser lugares objetivos y universales. Esto incluye desde el edificio, que asume las características de templo donde se realizan 7 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 340 expuestas en varias ocasiones, tanto en presentaciones previas en sus países como en debuts oficiales en Francia, para luego pasar a ser objetos definitivos de las más importantes colecciones públicas del arte nacional. En el caso de La Primera Misa, mientras su autor vivía en París, la obra se exhibió en calidad de boceto en las Exposiciones Generales de la AIBA en Río de Janeiro en 1859 y 1860, para luego ser exhibida en el Salón de la capital francesa de 1861, lo que fue considerado un gran triunfo del arte brasileño y hasta del imperio, pues era la primera vez que una obra nacional era seleccionada para ser exhibida en el evento artístico más importante del mundo. Posteriormente, inmediatamente después de su llegada a Brasil en 1862, la obra sería comprada por el gobierno imperial para pasar a formar parte de la pinacoteca que la academia mantenía para sus alumnos. En el caso de La Fundación de Santiago, la obra fue presentada a la sociedad chilena -al parecer- por primera vez en 1885, con ocasión de la inauguración del Salón de la Unión Artística, en calidad de estudio8, luego en la Exposición Nacional (y Salón Oficial) de 1888, donde fue galardonada, para luego ser exhibida en París en la Exposición Universal de 1889. Posteriormente, igualmente que la obra brasileña, fue comprada por el Estado a su regreso de Europa, pasando a formar parte de la colección del Museo Nacional de Bellas Artes de Santiago9. Nos detendremos aquí, especialmente en las ocasiones en las que las obras fueron exhibidas de manera inédita en sus contextos locales, ya que nos interesa rescatar el rol que como “lecciones de civilización” tuvieron para sus compatriotas. Las primeras veces que el público carioca –restringido por cierto a la corte e intelectualidad local- tuvo ocasión de contemplar La Primera Misa fue en las Exposiciones Generales de la AIBA en 1859 y 186010, ocasiones en las que el artista envió bocetos. Emplazadas en el neoclásico edificio donde funcionaba la Academia (Fig. 3.)11, en estas muestras se exponían rituales cívicos, hasta sus planteamientos museográficos y curatoriales. Cfr. DUNCAN, 1991. Según artículos “En la exposición”, El Taller Ilustrado, Año IV, nº 159, 17 de diciembre 1888 y “Exposición libre de Bellas Artes en Santiago”, Diario La Unión, Año I, nº 225, 16 octubre 1885. 8 9 Posteriormente la obra sería transferida al Museo Histórico Nacional a partir de 1937 10 Se realizaron un total de 26 Exposiciones Generales a partir de 1840 hasta 1884. Construido por el arquitecto de la Misión francesa Grandjean de Montigny en 1826, seguía los lineamientos de un templo clásico. 11 Patricia Herrera Styles 341 trabajos de alumnos y profesores de la misma, además de obras de propiedad del emperador y coleccionistas privados. En la primera de estas exhibiciones, junto a 250 obras aproximadamente, el cuadro se presentó al lado de un gran número de óleos y esculturas religiosas, paisajes tanto brasileños como europeos, retratos del emperador y otras personalidades, así como algunas obras mitológicas y de corte orientalista12. En general todo, tanto el espacio como las imágenes, eran de una u otra manera, referentes de civilización y muy pocas obras recordaban la existencia de “bárbaros”, “salvajes” o abyectos en Brasil, siguiendo ilustradas estrategias de invisibilización, denostación o subalternización de “lo otro”. Esto último pues, mientras algunas obras resaltaban la valentía del explorador blanco como El cazador y el puma del profesor de la AIBA, Felix Émile Taunay, las escasas imágenes que sí mostraban a indígenas, -entre ellas La Primera Misa-, lo hacían resaltando o bien su mal actuar o su sumisión al civilizado. Es el caso de la obra Nóbrega y sus compañeros, del maestro de Meirelles, Manoel de Melo Corte Real, que mostraba el dramático caso de un sacerdote que fue salvado de ser comido por indios antropófagos, de la que ya hablaremos. De especial interés resulta El descubrimiento de las aguas termales de Piratininga, también de Taunay, que de acuerdo a Elaine Dias habría tenido como referencia el óleo chileno El Huaso y la Lavandera de Rugendas13, y que según nuestro punto de vista propone una relación entre bárbaro y civilizado muy similar a la de La Fundación de Santiago. En la tela, en la cual se narra el “descubrimiento” de unas termas por parte del cazador Martinho Coelho de Siqueira, aparece, al igual que en la obra de Lira, un indígena arrodillado quien indica u ofrece con su mano la nueva riqueza natural al hombre blanco (Fig 4)14. En la exposición del año siguiente, nuestra obra, que se presentó como “el boceto original de un cuadro terminado que tiene que Se expusieron obras desde Antoine Watteau a Bartolomé Murillo, con presencia de obras de varios profesores de la AIBA, además de Taunay, Auguste Muller, con Retrato de Manuel Correia dos Santos; Chaves Pinheiro, con Retrato de José Bonifácio. También estuvo presente Raimundo Monvoisin con Joven peruano. Meirelles presentó en la ocasión diez obras, que incluían estudios y copias de pinturas europeas. LEVY, C. Exposiçöes Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes, Ediçoes Pinakotheke, Río de Janeiro, 1990, pp. 111-122. 12 DIAS, E. “Félix-Émile Taunay entre a tradição clássica de ensino e a paisagem contemporânea no século XIX”, Revista Caiana, nº 3, diciembre 2013, p. 12. 13 A pesar de las similitudes entre la obra brasileña y la chilena, sin embargo, no tenemos conocimiento que Pedro Lira haya conocido la obra de Taunay. 14 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 342 ser presentado en el Salón de París en mayo de 1861”15, compartió escenario con cerca de 230 creaciones más, que al igual que el año anterior reforzaban de múltiples maneras la condición de “buen gusto” y cultura europea del imperio. Nuevamente la presencia de lo indígena y lo bárbaro estaban casi ausentes, a excepción de nuestra obra y dos pinturas de Frederico Tirone, pintor italiano radicado en Río en esos años, tituladas Entierro de Atalá y Fuga de Atalá, que ni siquiera daban cuenta de la realidad local, sino que representaban al personaje literario creado por Chateaubriand, una indígena cristiana norteamericana del siglo XVIII que había muerto trágicamente. Luego de su exhibición en París en 1862, la obra fue comprada por el gobierno imperial, pasando a ocupar un lugar destacado en la Pinacoteca de la AIBA, colección que para entonces tenía fines pedagógicos pero también de exhibición hacia un público más amplio, pues era abierta al público general en ocasiones festivas16. A partir de 1879, parte de este acervo sería reorganizado como “Colección de Cuadros Nacionales de la Escuela Brasileña”17, con un total aproximado de 83 obras escogidas entre lo mejor de la Academia18. Naturalmente La Primera Misa formaba parte de ella, al lado de otras imágenes de pintura histórica, paisajes, retratos y naturaleza muerta, que conformaban una verdadera versión visual de la historia de Brasil19, tal como el gobierno imperial y el IHGB querían mostrar. Lo interesante es que en esta colección, se encontraban obras como Magnanimidad de Vieira del maestro de Meirelles, José Correia de Lima, considerado el primer cuadro de tema brasileño producido en la AIBA en 1841, que representaba el heroísmo de los portugueses frente a los holandeses en el siglo XVII y Nóbrega y sus Compañeros de Melo Corte Real, que al estar en la misma colección que La Primera Misa seguramente producía un contrapunto discursivo y visual interesante –pero complementario-, pues mientras aquella entregaba una visión del sacerdote moribundo, -Manuel 15 LEVY, Op. Cit: p. 135. FERNANDES, C. O Ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperial das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, jul. 2007. <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/aiba_ensino.htm>. 16 SQUEFF, L., “A pinacoteca da Academia e a construçao de uma história visual do Brasil”, Anais do XXXII Colóquio do Comitê Brasileiro do História da Arte 2012, Universidade de Brasilia, 2012, pág. 1717. 17 Obras que luego pasarían a conformar la Escuela Nacional de Bellas artes y el MNBA desde 1937. 18 19 SQUEFF, Op. Cit: pág. 1717. Patricia Herrera Styles 343 de Nóbrega, primer jesuita enviado a Brasil-, siendo rescatado de las fauces de indios antropófagos, la obra de Meirelles mostraba una multitud de indios mansos que se maravillaban y comprendían la importancia del ritual religioso traído por los portugueses. Como parte de los preparativos para la participación de Chile en la Exposición Universal de París de 1889, la comisión organizadora decidió la realización de una Exposición Nacional en 1888, en la que se mostraría al público local los mismos productos y obras que serían exhibidos en Francia al año siguiente. Las obras de arte seleccionadas para ello, que fueron más de un centenar, fueron presentadas en el Museo de Bellas Artes, formando la sección de Bellas Artes de esta Exposición y a la vez como el Salón de ese año, uniendo dos importantes eventos nacionales en uno.20 Entre las obras seleccionadas se encontraban además de La Fundación de Santiago, que fue presentada entonces como “la única de género histórico”, una buena cantidad de cuadros costumbristas (Rafael Correa), paisajes de corte romántico (Onofre Jarpa, Antonio Smith) y retratos tanto de personalidades, como de tipos populares chilenos (Celia Castro), además de escasas esculturas21. Imágenes sobre la Guerra del Pacífico al parecer no se incluyeron y la presencia indígena es probable que sólo se concretara con nuestra obra, pues el objetivo promovido por la comisión organizadora, entre los que se encontraba el mismo Pedro Lira, era dar en París la imagen de Chile como un país civilizado, pacifico y liberal, más bien laico,- la imagen religiosa casi no estuvo presente tampoco-, donde el indígena casi no existía y si lo hacía era desde el más absoluto aislamiento y abyección. Ya en París, este objetivo no sólo de la comisión, sino del gobierno chileno en general, se vio reforzado por un triste episodio. Fuera del pabellón nacional, probablemente en la sección de Historia de la vivienda humana, se exhibieron, con la anuencia del estado y como parte del proyecto del emSegún sostiene el artículo “El salón de 1888”, El Independiente, Santiago, 8 de diciembre de 1888. 20 Algunas de las obras presentadas en la ocasión fueron Pregunta por mí, de Albina Elguín, El Trabajo de Rafael Correa, Valle de Ocoa de Onofre Jarpa, La poda de Celia Castro, Retrato de la señora D.A de J, de Luis E. Lemoine, Jugando a las chapitas de Juan Harris (premiadas). El Taller Ilustrado, Santiago, 24 diciembre 1888. Otras obras que se presentaron El primer hijo de J. M. Ortega; La Vieja y Primero de Noviembre de Celia Castro, entre otras. Además, otras obras fueron expuestas como fuera de concurso entre las que se encontraban paisajes de Antonio Smith, en esta misma área se presentaron las esculturas, entre ellas ocho de Nicanor Plaza. “El Salón de 1888 (continuación)”, El independiente, Santiago, 9 diciembre 1888. 21 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 344 presario belga Maurice Maitre, once indígenas selknam, -hombres, mujeres y niños-, bajo la ficción de ser “salvajes antropófagos” (Fig. 5)22. De esta forma, mientras en el pabellón chileno se ignoraba la existencia del indio, fuera de él, se le exhibía en carne y hueso, asignándole características inexistentes, pues los aborígenes fueguinos no practicaban la antropofagia. Posteriormente de haber sido galardonada en París, donde recibió una Segunda Medalla, La Fundación de Santiago fue comprada por el Estado chileno a un alto valor (4000 pesos), pasando inmediatamente a ser parte de la colección del MNBA, que para entonces se ubicaba en el Partenón de la Quinta Normal, pequeño edificio de estilo neoclásico que emulaba el templo griego (Fig.6). El Museo se había formado en 1880, en otra sede y con una colección y criterio distinto a la que existía en 1889. La de entonces, producto de acalorados debates al interior de la esfera artística, había desechado obras que la Comisión de Bellas Artes consideraba indignas de pertenecer a la principal colección del país.23 En este recambio, la obra de Lira pasó a ocupar un lugar preponderante por ser una de las pocas de temática histórica, al lado de paisajes, cuadros de costumbres, retratos y esculturas24. La idea original de José Miguel Blanco de incluir en el primer museo los retratos de los héroes indígenas que habían forjado la nación obviamente había sido desestimada25, pues obras como Caupolicán de Cicarelli o Tegualda de Ortega, habían sido trasladas a Chillán en 1887, por ser consideradas “carentes de gusto”. En cuanto a la escultura, sabemos que en la época el museo mantenía un escaso número de representaciones bastante neoclásicas de indígenas, entre ellas Caupolicán y Jugador de Chueca, de Nicanor Plaza, El Padre Las Casas de Blanco o Busto Araucano de González, 22 Cfr. BÁEZ Y MASON, 2009 En relación a esta controversia ver DE LA MAZA, J. De obras maestras y mamarrachos, Edic. Metales Pesados, Santiago, 2014; HERRERA, P. “Pedro Lira y José Miguel Blanco: Sus luchas artísticas y la articulación de un sistema del arte en Chile”, Raquel Abella y otros (ed), VII Jornadas de Historia del arte, UFSP-UAI; Santiago, 2014. 23 24 En el denominado “Catálogo de los cuadros i esculturas adquiridas para el Museo de Bellas Artes, 1888-1893”, manuscrito que hoy se conserva en el Archivo Nacional de Santiago, consta que entre las obras que formaban la colección en esos años se encontraban cuadros de costumbres populares de Celia Castro y Rafael Correa; paisajes de Juan Francisco González, Pedro Herzl, Enrique Swimburn y Onofre Jarpa y naturalezas muertas de J. M. Ortega, Adolfo Silva y N. Scoffield, entre otros. La Fundación de Santiago aparecía como la obra mejor pagada del conjunto. BLANCO, J.M. “Museo de Bellas Artes, proyecto de uno”, Revista Chilena, Tomo XV, Santiago, 1879. 25 Patricia Herrera Styles 345 la mayoría de las cuales, sin embargo, por decisión de la “culta e ilustrada” Comisión de Bellas Artes, no permanecieron en él por mucho tiempo. De esta forma vemos como la invisibilización, la anulación de diferencias o la atribución de características inexistentes a los denominados ”bárbaros”, fueron algunas de las estrategias que las elites de Brasil y Chile articularon a partir de estas obras y sus exhibiciones. Bibliografía Fuentes originales BLANCO, J.M.:“Museo de Bellas Artes, proyecto de uno”, Revista Chilena, tomo XV, Santiago, 1879. Catálogo Museo Nacional de Bellas Artes de Santiago de Chile, Imprenta y Librería Ercilla, Santiago, 1896. DÁVILA, L. Y GREZ, V. 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Patricia Herrera Styles 349 Figura 3 Fachada Academia Imperial de Bellas Artes, Río de Janeiro. Marc Ferrez c. 1885. Colección Instituto Moreira Salles. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 350 Figura 4 Descubrimiento de las aguas termales de Piratininga Fèlix-Émile Taunay s/f, 178 x 137 cm Colección Museo Nacional de Bellas Artes, Río de Janeiro. Patricia Herrera Styles 351 Figura 5 Indígenas Selknam en París, 1889 Fotógrafo desconocido. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 352 Figura 6 Edificio El Partenón Quinta Normal, Santiago. Revista de Arte, Universidad de Chile. Patricia Herrera Styles 353 exposições e narrativas Yolanda Penteado da “Caipirinha de Leme” à organização das Bienais Marcos José Mantoan Doutorando em História da Arte - Programa de Artes Visuais – ECA-USP. Yolanda Penteado, vinda da elite agrária paulista, vive o cotidiano da cidade de São Paulo – que ainda não era moderna, mas já caminha nesse sentido. “Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem mestiços; nem de estrangeiros e nem brasileiros” (SEVCENKO, 2003, p. 30-31). Na São Paulo da juventude de Yolanda Penteado, as famílias da elite se conheciam, tinham negócios comuns e, acima de tudo, firmam laços familiares e de amizade. Todos se conhecem, confirma Yolanda e a impressão que paira sobre sua biografia é a de que todos são aparentados. Ela mesma tem seu primeiro casamento com um primo: Jayme da Silva Telles. A cidade de São Paulo dessa época é fechada e provinciana. A sociedade não se mistura, circula entre si, arrogando-se uma nobreza à parte de tudo e de todos. Uma elite que vive primeiro nos campos Elíseos, depois migra para Higienópolis. Jovem, bonita, culta e alegre, Yolanda desperta o interesse de todos: seu primeiro admirador foi Júlio Mesquita Filho. Durante a adolescência Yolanda passa uma temporada no Rio de Janeiro. Lá compartilha longas conversas e passeios com Alberto Santos Dumont – um declarado admirador da jovem, porém, 30 anos mais velho do que a moça. Juntos vivem namoro platônico. Outro admirador foi Assis Chateaubriand, que lhe chamava carinhosamente de “caipirinha de Leme” – dono dos Diários Associados – um império do setor das comunicações no Brasil – que sempre se demonstra apaixonado por Yolanda Penteado (OLIVEIRA, 2001). Com o empresário, Yolanda tem uma longa amizade e essa parceria dá resultados em empreendimentos importantes, tais como o apoio na formação da coleção que originara o Museu de Arte de São Paulo e os Museus Regionais, nos quais Yolanda torna-se a presidente honorífica. O casamento com Jayme da Silva Telles acontece em 1921 – um ano antes da Semana de Arte Moderna – os primeiros passos do movimento 355 modernista, Yolanda não acompanha, uma vez que a vida de casada se divide entre a Hípica, Santos, Rio de Janeiro e São Paulo, os três últimos lugares face aos negócios do marido. Nesse período, também, Yolanda e Jayme passam uma longa temporada na Europa – a primeira de muitas outras. Nessa viagem à Europa, Yolanda conhece Charles Chaplin, além de vivenciar novas experiências em meio sofisticado no entreguerras. Antes do matrimônio, na casa de sua tia Olívia Guedes Penteado, Yolanda relaciona-se com a primeira geração de modernistas em São Paulo: Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, entre outros. D. Olívia Guedes, conhecida como a “madrinha dos artistas” e “protetora das artes”, para acolher seus amigos modernistas criou, em 1925, um ambiente especial, o Pavilhão Modernista, expunha suas telas de Picasso, Legér, Tarsila, Brancusi e Brecheret. Dessa convivência, em suas memórias, Di Cavalcanti merece um capítulo especial. Em Tudo em Cor-de-Rosa, Yolanda transcreve um “bate-papo” com o artista. Nessa transcrição, eles mostram como se conhecem: Meu conhecimento com você não foi propriamente conhecimento com a pessoa. Foi conhecimento com a entidade. Quando fui estudar Direito em São Paulo, havia uma porção de mulheres que eram verdadeiras entidades. Yolanda Penteado era uma delas (PENTEADO, 1976, p. 255). Nessa narrativa, emergem personagens, tais como: Oswald de Andrade, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Paulo Prado, Villa-Lobos, Graça Aranha, Noêmia Mourão, Lasar Segall, Tarsila do Amaral e muitos outros. O diálogo entre Yolanda e Di torna-se um registro íntimo da vida artística e intelectual de São Paulo nos anos de 1920 e 1930. Flávio de Carvalho também surge nas memórias de Yolanda. Para ela, o artista é revolucionário, irreverente e um gentleman (PENTEADO, 1976). No que tange à gestão das artes e ao projeto de modernização do país, seu casamento com Francisco Matarazzo Sobrinho, Ciccillo, em 1946 é um marco. Juntos participam da organização do Museu de Arte Moderna MAM SP (1947), das Bienais (a partir de 1951) e mais tarde, das coleções que formam o Museu de Arte Contemporânea (1963). Yolanda é parceira de Ciccillo em todas as iniciativas e em muitas delas, como é o caso da organização das bienais, o seu traquejo social permite que os investimentos e as ações tenham êxitos. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 356 Em 1946, Yolanda Penteado e Francisco Matarazzo Sobrinho se conhecem. Naquela ocasião, em viagem à Europa, o casal estabelece contatos com o artista Alberto Magnelli, a crítica de arte Margherita Sarfatti e os marchands Lívio Gaetani e Enrico Salvadori – grupo que compraria diversas obras para a coleção de Ciccillo e Yolanda Penteado. No exame sobre as peças que compõem essa coleção, pode se notar duas orientações artísticas: a francesa e a italiana. Porém, é importante ressaltar que as escolhas do casal foram pautas pelo modernismo moldado nas tendências ao “retorno à ordem”. Para a formação da vertente francesa, o casal confia essa missão ao amigo Alberto Magnelli. A tarefa dele é, basicamente, a busca por obras representativas da École de Paris (AJZENBERG, 2006). Para tanto, Magnelli atua como conselheiro de Matarazzo e adquire peças diretamente de artistas europeus (COELHO, 200, p. 25). Na seção italiana, a responsável pela escolha é a crítica de arte italiana Margherita Sarfatti, atuante no cenário artístico italiano até os anos de 1930. Sua concepção é evidenciada nos aspectos estéticos do segmento italiano da coleção Yolanda e Ciccillo, em especial, na seleção de obras de artistas ligados à vertente artística chamada de “retorno à ordem”, sobretudo, o Novecento italiano (MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1999, p. 29). Compreende-se a orientação voltada ao “retorno à ordem”, quando se observa o fato de Margarita Sarfatti, à época, ser articuladora e principal divulgadora na Itália e no Exterior do Novecento, movimento surgido em Milão em 1922, que apregoa a superação das vanguardas históricas “internacionalistas” e a valorização de poéticas que recuperem os elementos estéticos típicos e formadores da visualidade italiana. Outro fato importante refere-se a modernismo que se instala no Brasil – muito mais próximo à valorização da técnica do que das ousadias e inovações formais das vanguardas históricas das primeiras décadas do século XX. A coleção completa-se com as aquisições feitas pelos próprios mecenas Yolanda Penteado e Ciccillo. Os dois, basicamente, seguem os parâmetros visuais estabelecidos por Margharita, porém em alguns momentos, adquirem obras que fogem do rigor plástico imposto pela crítica de arte italiana. Leve-se em conta que Yolanda e Ciccillo transitam, principalmente, no eixo Paris-Roma-Milão, o mesmo de seus colaboradores Magnelli e Sarfatti (MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE Marcos José Mantoan 357 DE SÃO PAULO, 1999, p. 29). Para a ampliação da coleção italiana tornase fundamental a compra de esculturas futuristas como as de Umberto Boccioni. Em 1952, Ciccillo compra da viúva de Felippo Marinetti (poeta futurista) os gessos originais de Desenvolvimento de uma Garrafa no Espaço, 1912, e Formas Únicas da Continuidade no Espaço, 1913 (AJZENBERG, 2006, p. 14-15). Concomitante, ao esforço de Yolanda e Ciccillo em formar uma coleção de arte moderna, em novembro de 1946, Nelson Rockefeller, então presidente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em vista ao Brasil, reune-se com um grupo de intelectuais e tenciona fundar um museu de arte moderna de São Paulo. Essa política dedicada à criação de “museus de arte moderna” em países latino-americanos se tratava de uma estratégia cultural norte-americana de influências sobre as zonas políticoeconômicas sob sua égide. Nessa ocasião, Nelson Rockefeller doa 18 peças para o futuro museu. Imersa nessa política influência político-cultural, a iniciativa da organização do Museu de Arte Moderna de São Paulo, ocorrida entre os anos de 1948 e 1949, contou com a colaboração de representantes de diversas áreas da cultura. Esses intelectuais traçaram o perfil e a política de aquisição e formação do acervo moderno. A primeira sede do MAM SP foi em uma sala do edifício dos Diários Associados, na rua 7 de abril, cedida por Assis Chateaubriand - fundado do Museu de Arte de São Paulo. É possível que essa cessão de espaço tenha sido intermediada por Yolanda Penteado, uma vez que Assis Chateaubriand sempre foi seu admirador. Em 8 de março de 1949, o MAM SP foi inaugurado com a mostra Do Figurativismo ao Abstracionismo. Essa mostra instigou a discussão sobre a arte figurativa (de representação da natureza) ser considerada conservadora e a arte abstrata ser de “vanguarda”. Adjacente às polêmicas, a coleção de Ciccillo e Yolanda é depositada no MAM SP e mais tarde, em 1963, é doada à Universidade de São Paulo, nos seguintes termos: em 1962, Ciccillo doa 429 peças de sua propriedade (AJZENBERG, 2006, p. 11). A ideia de organizar uma exposição internacional de artes plásticas surge, ainda, em 1949, durante os acontecimentos decorrentes da mostra Figurativismo ao Abstracionismo, contudo, toma fôlego a partir de 1951, quando o casal visita a Bienal de Veneza – tomada como modelo inspirador para sua similar em São Paulo. Aqui se assinala o modelo de ação e de gestão das artes adotado pelo casal, no qual vê Matarazzo se preocuparia História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 358 com as questões práticas e executivas do evento e Yolanda se voltaria para as relações e os contatos entre artistas, diplomatas e políticos que possibilitariam a organização do evento. Um dia, o Ciccillo estava conversando com o Arturo Profili, e me fez essa pergunta: - Você não quer experimentar fazer uma Bienal? Fiquei muito espantada porque nem sabia direito o que era uma bienal. Aí, eles me disseram: - Já escrevemos a diversos países, sugerindo a ideia, mas não veio resposta. Você não quer tentar? (PENTEADO, 1976, p. 178). Yolanda leva correspondência sobre a organização do evento aos embaixadores e agentes culturais e artísticos. A ação é apoiada por Getúlio Vargas que torna a viagem semioficial e uma das primeiras de muitas outras que ocorreriam para a consolidação das relações “diplomáticas” a favor da organização da bienal, tendo sempre Yolanda Penteado como intermediária. A proposta de organização de uma bienal, utilizando o MAM SP como suporte, é bastante ousada – os diretores do museu sentem a responsabilidade e a ousadia do projeto. Yolanda, em suas viagens, relata a recepção da ideia por parte dos países procurados para formar suas delegações. Os contatos com Maria Martins, artistas e esposa de Carlos Martins (embaixador do Brasil em Washington – EUA), facilitam os trâmites com Getúlio Vargas, presidente da República, que telegrafa às embaixadas para que essas dessem toda a infraestrutura e apoio a iniciativa de organização da bienal de arte. Segundo Yolanda: Logo depois que o Getúlio foi eleito presidente, os Embaixadores não sabiam muito bem a quantas andavam as coisas. Era um enigma essa nomeação. Foi muito bom, porque eles se redobraram em amabilidade (FARINA, 2008). André Malraux, naquele tempo, em início de carreira, é importante na organização do evento. A partir de lista redigida por ele, indicando as pessoas a quem Yolanda deveria buscar na França para que o país aderisse à ideia da Bienal. Em seguida, ela buscou o apoio da Itália, na figura de Marcos José Mantoan 359 Giulio Andreotti, subsecretário de Estado para a Presidência do Conselho Italiano, porém, é com o apoio do Conde Dino Grandi que reuniu mais 18 personalidades influentes na vida cultural italiana, que ela vê mais um país importante aderir ao seu projeto. Como uma “embaixadora das artes”, Yolanda serve-se do corpo diplomático brasileiro na Europa para as adesões dos países. Quando a diplomacia não é suficiente, no caso da Suíça, Yolanda não tem dúvidas em colocar sua veia empresarial em ação: Acrescentei que havia sabido, por membros da família de meu marido, que eles estavam indecisos entre a Inglaterra e a Suíça para fazer teares. Se os suíços continuassem inflexíveis com a arte, talvez seus teares não se materializassem (FARINA, 2008, p. 181). Nesse episódio, Yolanda utiliza as relações econômicas e comerciais que o Estado Suíço espera firmar com as Indústrias Matarazzo a favor das relações artístico-culturais – aqui se assinala sua postura de gestora das artes, afinal, ela lança mãos de todos os instrumentais necessários, particularmente de sua visão de negócios, para a adesão da delegação suíça na organização da bienal. Após o final da “campanha diplomática” na Europa, Yolanda ainda consegue, por intermédio de Assis Chateaubriand, o pavilhão para abrigar a I Bienal. Com a presença de cerca de 5000 pessoas, na inauguração, em 20 de outubro de 1951, a I Bienal contou com 21 países, 1.800 obras (AJZENBERG, 2004, p. 18). Yolanda foi responsável por trazer as diversas delegações internacionais, pelo domínio que adquirira no cenário artístico nacional e internacional. Para seus idealizadores a Bienal deveria: inserir a arte moderna no ambiente brasileiro e, simultaneamente, transformar São Paulo em centro artístico internacional. Graças aos esforços de Yolanda Penteado, Maria Martins, Franscisco Matarazzo Sobrinho e muitos outros colaboradores, a I Bienal de São Paulo é a primeira exposição de arte moderna de grande porte realizada fora dos centros culturais europeus e norte-americanos. São trazidos ao Brasil artistas abstracionistas internacionais, tal como Max Bill e sua obra emblemática, Unidade Tripartida, 1948/49, apresentada na I Bienal. Sob esta influência, muitos artistas brasileiros passam a identificar os abstracionismos como uma proposta de transformação das artes no país, História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 360 em detrimento da arte figurativa. É neste quadro que emergem os artistas concretos, e os abstracionistas geométricos e líricos. Yolanda tem participação marcante em outras edições do evento. Porém, sua atividade mais efetiva se dá na II Bienal (que acompanhava as comemorações dos IV Centenário da cidade de São Paulo; trouxe Guernica, 1937, de Pablo Guernica ao Brasil – um dos maiores acontecimentos do cenário artístico até aquele momento e, transforma a ideia das bienais brasileiras em algo consolidado e reconhecido internacionalmente) – a gestão de Yolanda na II Bienal é colocada no presente estudo como linha de frente nas investigações. Torna-se importante mencionar que a participação de Yolanda Penteado na organização das bienais somente se ressente com a separação de Ciccillo, em 1962. Face aos contatos realizados para a organização do MAM SP e depois das Bienais de São Paulo, Yolanda manteve contatos com diversos artistas internacionais que hoje se inscrevem na história da arte, entre eles estão: Fernand Léger, Matisse, Alberto Magnelli, Brancusi e Picasso. Um dos relatos mais marcantes em Tudo em Cor-de-Rosa discorre sobre sua convivência com Pablo Picasso. Eram encontros diários, em Antibes (França), por volta de 1952/1953. Nesse período, ela tinha a intenção de trazer trabalhos do artista espanhol para o Brasil. Nos primeiros dias, foi aconselhada por Marie Cuttolie (amiga do pintor) a ouvi-lo com paciência e não pedir nada. Seu jeito prestativo e carismático convenceu Picasso há trazer para o País, Guernica, 1937 – que à época estava na reserva técnica do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), aguardando a mudança de governo espanhol para retornar ao seu país. Diariamente, nos encontrávamos com Picasso em Antibes. O convívio com o Mestre e as duas Marias cria uma grande camaradagem. Pedi a Picasso uma dedicatória num seu livro. Ele pegou meu batom e desenhou a cabeça de cabra, escrevendo: Pour Yolanda, Picasso (PENTEADO, 1976, p. 255). Herdeira de D. Olívia Guedes, Yolanda Penteado sempre manteve contatos om artistas nacionais e internacionais. Era muito boa anfitriã, especialmente em sua fazenda. Durante as primeiras bienais, por exemplo, ela organizou inúmeros jantares para os convidados especiais do evento. A abertura da IV Bienal de São Paulo (1957) deu-se na fazenda de Leme, com Marcos José Mantoan 361 os convidados transportados em aviões que pousavam na pista construída nas terras de Yolanda e depois cedida ao poder público municipal. Naquela noite, o principal convidado era o presidente Juscelino Kubitschek, que jantou e pernoitou no local (OLIVEIRA, 2001, op.cit.). Yolanda também teve estreito relacionamento com cineastas, diretores e atores de cinema, uma vez que Ciccillo era sócio da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, na década de 1950, em São Bernardo do Campo, tendo como produtor Franco Zampari. A Companhia durou 04 anos e realizou 22 filmes longa-metragem, marcando a história do cinema brasileiro. Em diversas ocasiões Yolanda reafirma: “toda a minha vida está ligada à terra, à Fazenda Empyreo” (PENTEADO, 1976, p. 37). Essa ligação afetiva com a terra, Yolanda leva por todos os lugares por onde passa. Por mais que se tornasse “uma cidadã do mundo”; que falasse em diversos idiomas; que tratasse com a elite paulistana e depois com milionários, personalidades, intelectuais e artistas internacionais (gozando de amizades e contatos em Paris, Nova York, Berlim, Nova Delhi, Amsterdã, entre outros centros urbanos importantes), Yolanda jamais deixa de ser a “Caipirinha de Leme”. Em síntese, ao longo de 30 edições da Bienal de São Paulo, diversos acontecimentos marcaram a primeira grande mostra de arte moderna no Brasil e na América Latina: a organização da coleção pessoal de Yolanda e Ciccillo, por volta de 1946; a fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1948/1949; o surgimento da ideia de organização de mostra internacional de grande porte, em 1949 e outros fatos decorrentes, tais como a criação da Fundação Bienal Internacional de São Paulo (na década de 1970). Porém as duas primeiras edições assinaladas pela forte presença de Yolanda Penteado, como gestora das artes, especialmente dedicada às relações internacionais e ao contato com artistas (jovens e consagrados) são fundamentais para o êxito da organização da mostra. Referências Bibliográficas AJZENBERG, Elza. A Formação da Coleção. In: AJZENBERG, Elza. Ciccillo: Acervo MAC USP – Homenagem a Francisco Matarazzo Sobrinho. São Paulo: MAC USP, 2006. 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Muito conhecido do público devido ao sucesso de mercado e à atuação junto aos meios de comunicação e à indústria, Aldemir sempre se dedicou a temas brasileiros, como o cangaço, a vida simples do interior do país – principalmente do Nordeste –, a nossa fauna e flora, assim com cenas do cotidiano. Dessa forma, podemos dizer que o artista criou uma imagem do Brasil com suas obras, e a esse fato podemos somar sua generosa personalidade, sempre preocupada com as questões da arte e da identidade nacional, e mesmo regional, o que faz dele um marco fundamental na história da arte do Brasil. Expondo seus trabalhos desde os 20 anos de idade, realiza sua primeira individual em 1946 e, na década seguinte, participa de diversas edições da Bienal Internacional de São Paulo. Dedicando-se inteiramente ao desenho por aproximadamente duas décadas, Aldemir Martins descobre novos meios de expressão que incluem a pintura e a cerâmica, além de experiências em design de objetos e televisão Artista completo, com uma trajetória exemplar, foi amigo de personalidades importantes do teatro, da literatura e da televisão nos anos seguintes à 2a Guerra Mundial. Presente no cotidiano dos jovens artistas, tornou-se uma referência para as gerações futuras. Dessa forma, Aldemir Martins é um nome muito querido e sempre lembrado na arte brasileira, por seu incrível talento e notável pessoa. Este texto retoma parte do meu livro: Aldemir Martins. 1a. ed. São Paulo: Folha de São Paulo/Instituto Cultural Itaú, 2013. 1 365 Manteve-se sempre fiel à sua experiência afetiva e visual junto às tradições e à paisagem do Ceará. Em maio de 1963, por ocasião da mostra individual na Galeria Querino, em Salvador, Bahia, o jornalista baiano Odorico Tavares (1912-80) descreveu assim sua personalidade: “Ao meio-dia, na porta da casa natal cearense, o menino olha a paisagem da rua: tudo branco, tudo quase sem contorno, tudo transfigurado pela luz implacável do sol, rei absoluto, senhor todo-poderoso. [...] O menino olha em redor e para ver tem que cerrar os olhos: eis o homem meio deitado com suas roupas de couro, vigilante, o rifle de lado. Bem perto, cantiga suave dos bilros: a rendeira como que só dispõe de movimentos nos dedos céleres de suas mãos mágicas. [...] O menino guarda tudo isso na sua alma e no seu coração e nunca mais esquecerá.”2 Nascido no interior do Ceará, Aldemir Martins teve formação no colégio militar de Fortaleza, destacou-se como artista durante o serviço militar e tornou-se um expoente no ambiente artístico cearense em meados dos anos 1940. Aos 24 anos, migrou para a cidade do Rio de Janeiro e logo depois para São Paulo, onde fixou residência e alcançou enorme sucesso. Desde muito cedo atuou como organizador de agremiações artísticas como a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP); trabalhou em instituições de ponta no final dos anos 1940, como o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp); expôs em eventos de grande porte nos anos 1950, como a Bienal Internacional de São Paulo e a Bienal de Veneza, conquistando o prêmio de Melhor Desenhista Internacional na 28a Bienal de Veneza de 1956. Realmente notável em Aldemir Martins, entretanto, é a qualidade excepcional de seu desenho e de sua pintura, fartamente reconhecida pelos incontáveis prêmios que recebeu durante a vida. E não podemos deixar de destacar a engenhosidade com que transpôs sua arte para os mais variados meios: ilustrações para a imprensa e para livros de literatura, cenografias para teatros, bilhetes de loteria, latas de sorvete e vinhetas de televisão, sendo que nesta última modalidade, foi pioneiro. Aldemir Martins nos deixou também o legado de uma imensa e lindíssima gama de temas ligados à cultura nacional, seja nos personagens nordestinos, como o cangaceiro, o jagunço e as rendeiras, seja nas naturezas2 Artigo “Aldemir (Bahia, maio de 1963)”, de Odorico Tavares (Araújo, 1985, p. 109). História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 366 -mortas composta por frutas regionais, seja nas paisagens que remetem à caatinga ou ao litoral brasileiro. O artista imbuiu esses temas de uma beleza monumental, nos seus desenhos de grandes dimensões (no que também foi pioneiro) e no intenso colorido de suas pinturas. Sua obra ficou igualmente marcada pela produção de desenhos e pinturas de seus prosaicos galos e gatos, que nos enchem de alegria ao vermos imagens tão refinadas desses simpáticos animais domésticos. É essa arte alegre e sofisticada que constitui sua verdadeira marca. Produzindo intensamente durante uma vida toda, ele povoou o imaginário brasileiro com seus personagens e paisagens, e difundiu a linguagem modernista em desenhos, gravuras, pinturas, design, cerâmicas e joalheria. Aldemir Martins nasceu em 8 de novembro de 1922 em Ingazeira, pequena cidade do interior do Ceará, onde residiam seus pais, Miguel de Souza Martins e Raimunda Martins. Ele, Miguel, era funcionário público, responsável pela expansão das linhas férreas no estado do Ceará. Ela, filha de índios da região de Quixeramobim, ascendência sempre lembrada com orgulho pelo próprio artista. Em função do trabalho do seu pai, a família muda-se dessa pequena cidade do vale do Cariri para Guaiuba, Município de Pacatuba, muito próximo da capital Fortaleza, onde Aldemir começa seus estudos no Colégio Militar. Já nesse colégio, em função de sua notável habilidade com o desenho, será escolhido como orientador artístico. Aos 17 anos, deixa o Colégio Militar para formar-se no Ateneu São José, também em Fortaleza. Em 1941, alista-se no Exército, onde permanecerá até 1945, quando termina a Segunda Guerra Mundial. Será durante essa longa e forçosa permanência no Exército que Aldemir Martins terá sua primeira atuação profissional: desenha o mapa aerofotogramétrico de Fortaleza e alcança, por concurso, o cargo de cabo-pintor. Segundo depoimento do artista, o período de serviço militar foi muito produtivo, pois ele pôde se dedicar ao aprimoramento da técnica de pintura e desenho. Durante esses anos iniciais em Fortaleza, Aldemir Martins participa como protagonista na incipiente organização do ambiente artístico cearense. Junto com artistas como Mário Baratta, Barbosa Leite, Antônio Bandeira, João Siqueira, Luís Delfino, Raimundo Campos, funda o Grupo Artys que dará origem ao Centro Cultural de Belas-Artes e à Sociedade Cearense de Artistas Plásticos. Ana Maria Pimenta Hoffmann 367 Neste período, produz pinturas e desenhos, expondo no II e III Salão Cearense de Belas-Artes (1942 e 1943), no I Salão de Abril (1943) e na exposição coletiva intitulada Pinturas de Guerra (1944) organizada pela SCAP. Além disso, começa a trabalhar como ilustrador na imprensa cearenses, em jornais como O Unitário e Correio do Ceará. É neste ambiente que conhece Paulo Emilio Salles Gomes (1916-77), intelectual paulista, que em passagem por Fortaleza compra um quadro seu e incentiva o jovem artista a procurar novas oportunidades em cidades maiores. “Minhas metas inclinaram-se para o Rio de Janeiro, cidade então vestida com as responsabilidades de capital federal, e São Paulo, já considerada a locomotiva do crescimento industrial do país.”3 Ao embarcar para o Rio de Janeiro, Aldemir cumpre assim o passo final no seu trajeto: vindo do interior do estado do Ceará, de região isolada, passou pela capital do estado, onde teve importante atuação em Fortaleza, e foi para ainda maiores tornar-se importante peça na história do desenvolvimento das artes plásticas no Brasil, em um cenário de intensas transformações socioculturais. Desenvolvendo uma figuração única, e trabalhando intensamente em temáticas brasileiras, como o folclore, as paisagens e hábitos do Nordeste, tornou-se símbolo de arte brasileira, sem ser nacionalista. No texto abaixo podemos ler como o jornalista baiano Edwaldo Pacote, seu amigo de longa data, analisa a relação entre seu desenho e os temas por ele abordados: “A agressividade dos cangaceiros, a postura hierática das rendeiras tecendo tramas delicadas com a musicalidade dos seus bilros, a combatividade do galo, a tristeza conformada dos retirantes, todos os temas de Aldemir só poderiam ser interpretados adequadamente por meio de traços severos, embora ágeis e livres, sem o sombreado bonito e maneiroso dos que aprenderam a desenhar na escola. E o seu desenho era duro, desmentindo a aparente fragilidade da linha, cheio de arestas cortantes como o mandacaru. Diziam ainda que suas figuras não tinham movimento, que os seus cangaceiros assumiam a pose arrogante e estática do samurai. Isso nada mais era do que a impressão apressada de quem nunca sentiu o peso sufocante do meio-dia na caatinga, quando nada se mexe, as nuvens ficam paradas no 3 Depoimento de Aldemir Martins (Guimarães, 2005, p. 24). História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 368 céu, não sopra nenhuma aragem para mover a folha do umbuzeiro e o gado magro se deita à espera da morte, sem forças para caminhar.”4 Em abril de 1945, Aldemir Martins embarca para a cidade do Rio de Janeiro a bordo do navio Almirante Alexandrino, levando consigo 12 telas, 15 desenhos e a convicção de que necessitava ampliar os horizontes. É recepcionado pelo amigo e conterrâneo, o pintor Antônio Bandeira, que logo iria para a Europa. Já no ano de sua chegada, Aldemir, expõe no 51o Salão Nacional de Belas-Artes, o mais importante salão oficial naquele período. Além disso, participa de coletiva na Galeria Askanasy. Viaja a São Paulo no ano seguinte para visitar Paulo Emilio Salles Gomes, que o recebe em casa por três meses. O artista decide estabelecer-se na cidade e começa a trabalhar como ilustrador na imprensa paulista. Lembrando essa época, ele nos conta que “fazia tudo para sobreviver, desde que fosse ligado às artes plásticas”5. Ainda em 1946, Aldemir Martins faz sua primeira exposição individual, no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), onde exibe 10 pinturas e 15 desenhos, “todos fundamentalmente em temas nordestinos e nas cores vivas e cruas que marcavam meus trabalhos na época”6. No ano seguinte, participa da exposição 19 Pintores, organizada por Maria Eugenia Franco na Galeria Prestes Maia. A mostra incluía conferências sobre arte moderna coordenadas por Sérgio Milliet (1898-1966), Luís Martins e Lourival Gomes Machado (1917-67), e contava com um incrível júri de premiação formado por Anita Malfatti (1889-1954) (volume 9 desta Coleção), Di Cavalcanti (1897-1976) (volume 1) e Lasar Segall (1891-1957) (volume 6). Aldemir Martins obtém o terceiro lugar na premiação, e alcança prestígio no meio artístico paulista. Essa exposição se notabilizou por revelar uma nova geração de artistas que trabalhava no início do pós-guerra com a linguagem expressionista. Junto com Mario Gruber (1927-2011) e Enrico Camerini (1926-), entre outros, participa ainda em 1947 de uma pequena mostra intitulada Desenhistas Brasileiros, na cidade de Praga, na antiga Tchecoslováquia, atual República Tcheca. 4 “Maitíri!”, de Edwaldo Pacote (Araújo, 1985, p. 18). 5 Depoimento de Aldemir Martins (Guimarães, 2005, p. 26). 6 Depoimento de Aldemir Martins (Ibid, p. 26). Ana Maria Pimenta Hoffmann 369 O Modernismo brasileiro estava passando nessa época por um período de reavaliação. Os artistas e intelectuais que ajudaram a cria-lo nos anos 1910 a 1930 empenhavam-se agora para estabelecer novos debates e consolidar os projetos de instituições artísticas como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e do Rio de Janeiro (MAM-RJ), as Bienais e o Masp. O jovem Aldemir Martins, então com 24 anos, participa do processo, engajando-se em muitas dessas iniciativas. Autodidata declarado, Aldemir Martins sempre procurou conhecer os mais diferentes aspectos da cultura visual e das artes plásticas, mantendo-se próximo aos críticos e historiadores da arte. Em 1949, encantado com o projeto do Masp, faz o curso de história da arte com o professor Pietro Maria Bardi, a fim de qualificar-se para atuar como monitor no recém-inaugurado museu. Segundo o artista, esse curso representou um salto na sua formação. No ano seguinte, participa do curso de gravura oferecido pela Escola do Masp e ministrado Poty Lazzarotto, a quem eventualmente substituía. Durante o curso, produz um álbum em água-forte intitulado Cenas da Seca do Nordeste. O trabalho ganhou prefácio de Rachel de Queiroz, intelectual e romancista cearense com quem irá desenvolver outras parcerias ao longo da vida. Nos anos seguintes, segue-se uma sucessão de mostras e premiações importantes. Em 1951 participa da I Bienal de São Paulo com três desenhos a nanquim e ganha o prêmio aquisição Olivia Guedes Penteado. Expõe pouco depois na Bienal de Veneza (1952), onde vende dois desenhos, intitulados Cangaceiros I e II. Na II Bienal de São Paulo, em 1953, conquista o Prêmio Aquisição Nadir Figueiredo, e na terceira edição do certame paulista conquista o Prêmio Desenhista Nacional, consagrando-se nesse ano de 1955. A mais alta láurea obtida por Aldemir, entretanto, foi com certeza o prêmio de Melhor Desenhista Internacional na XXVIII Bienal de Veneza, em 1956. A condecoração o colocou no páreo para concorrer com os vencedores do prêmio em outras edições da Bienal, sendo por fim escolhido como melhor desenhista das dez primeiras Bienais de Veneza do pós-guerra (1946-66) pelo júri da Galerie Rive Gauche, que havia tomado para si a tarefa de fazer essa análise retrospectiva em 1968. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 370 A esse sucesso somou-se o Prêmio de Viagem ao Exterior, concedido no VII Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1959. No ano seguinte, aos 38 anos, Aldemir Martins embarca com a mulher e a filha para Roma, onde permanece por dois anos, período “de muitas aquisições intelectuais e contato com diferentes escolas”7. Tendo dedicado sua arte à consagração de temática ligada ao Nordeste, Aldemir Martins fez inúmeras viagens de estudo por todo o Brasil, em especial pelo interior de sua região natal. Em 1951, vai a Fortaleza pintar dois painéis para o Ceará Rádio Clube e volta em um pau de arara. Nessa viagem faz as anotações necessárias para desenvolver as primeiras séries de desenhos de retirantes, cangaceiros e rendeiras, temas que passam a marcar sua produção ao longo de toda a década. Pouco depois, percorre o roteiro do cangaço em uma viagem que se estendeu de dezembro de 1951 a abril de 1952, passando por Caruaru, Canudos, Riacho do Navio e outras regiões da caatinga nordestina. Ainda em 1952, vai para a Bahia com Mario Cravo (1923-) e Zanine Caldas (1919-2001), quando conhece o sertão baiano, que possui caraterísticas diferentes da caatinga. É nesse período que começa a desenhar com nanquim colorido. O convite para expor em Washington, quatro anos depois, proporciona-lhe a oportunidade de permanecer três meses nos Estados Unidos, visitando museus e acompanhando cursos de artes plásticas, e o Prêmio de Viagem ao Exterior do VIII Salão Nacional de Arte Moderna (1959) lhe permite, pouco depois, nova temporada fora do Brasil. Dessa vez, permanece dois anos em Roma com a família. Lá, complementa sua formação em museus italianos como o Museu Etrusco, onde, “em frequentes vistas, aprendi com meus próprios olhos os fundamentos da arte etrusca e suas repercussões nos movimentos artísticos europeus”8. Na Copa do Mundo de 1966, parte para a Inglaterra a fim de acompanhar os jogos, o que lhe rende inúmeros trabalhos sobre o futebol, mas também marca sua trajetória na aquisição de conhecimentos sobre uma técnica recém-introduzida no mercado de arte, a tinta acrílica, que ele passa a adotar. 7 Depoimento de Aldemir Martins (Ibid p. 30). 8 Depoimento de Aldemir Martins (ibid, p. 30). Ana Maria Pimenta Hoffmann 371 Em 1988, faz outra viagem importante: vai à China a convite do governo desse país, na companhia do artista plástico Rubens Matuck (1952-), travando intercâmbio com artistas e acadêmicos chineses, na Galeria de Belas-Artes da China. Aldemir Martins nos deixou uma vasta produção, criada em um largo espaço de tempo e constituída essencialmente de desenhos, gravuras e pinturas. Além disso, procurou apresentar as variadas temáticas com as quais o artista se notabilizou, como os personagens e objetos da cultura nordestina – o cangaceiro, o jagunço, a dança do bumba meu boi, a rede –, as paisagens e as naturezas-mortas, assim como os tão conhecidos gatos. Em certa medida, esse seu repertório iconográfico remete-nos aos artistas modernistas europeus, como Pablo Picasso (1881-1973), com seus touros e animais domésticos; Henri Matisse (1869-1954), com seus interiores e paisagens; e Marc Chagall (1887-1985), com suas cenas imaginárias que evocam o cotidiano russo. Tendo começado muito cedo a carreira, Aldemir Martins produziu ininterruptamente por sete décadas, deixando obras em várias técnicas, e também nos meio de comunicação de massa e em produtos industrializados. Assim, pode-se dizer que sua obra é testemunha do século XX, e podemos ver nesse conjunto algumas características importantes da arte deste século: o uso não descritivo dos elementos plásticos, como espaço, luz e cor; a autonomia de tais elementos, quase chegando à abstração; e a busca de uma poética individual, muitas vezes militante. O campo de atuação do Aldemir Martins é o da figuração, mas sua militância é pela cultura da sua região de origem, e seu caminho foi pela arte modernista. Na obra Cangaceiro, 1951 (Col. MAC USP), desenho que Aldemir Martins participou da I Bienal Internacional de São Paulo, ganhando o Prêmio Aquisição Nadir Figueiredo, vemos um grupo de cangaceiros sentados no chão, dispostos em roda. O grupo é caracterizado pelo uso do típico chapéu de couro e pela presença de uma cabaça à direita, e a cena bucólica sugere que estão descansando ou comendo. Retratados inúmeras vezes por Aldemir Martins, os cangaceiros percorriam em bandos o interior do Nordeste na segunda metade do século XIX e início do XX. Alguns constituíam grupos organizados de assaltantes armados, outros atuavam como pistoleiros, prestando serviço a grandes fa- História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 372 zendeiros. Fossem o que fossem, tonaram-se símbolo de resistência social e valentia. Sem sombra de dúvida, o mais conhecido deles veio a ser Lampião (1898-1938). Ao mesmo tempo guerreiro e religioso, inspirou lendas e inúmeras narrativas com sua história de vida cinematográfica – em especial sua morte em um ataque-surpresa, seguida de degola e exibição de sua cabeça como troféu em vários lugares do Brasil. Com traço rápido de creiom sobre papel e uso da texturização própria da técnica, temos um desenho com aparência rústica, evocando a natureza do ambiente da caatinga e a precariedade que caracterizava a vida nômade desses bandos. Por outro lado, vemos um conjunto amplo, em que os personagens, principalmente o da esquerda, adquirem monumentalidade devido à sua disposição no papel. Nenhum detalhe do ambiente é mostrado ao espectador, toda a cena se passa em um fundo neutro, com exceção da cabaça, que serve como indicativo de um hábito presente em grande parte do Brasil. Entretanto, com a memória que temos sobre o cangaço, podemos imaginar detalhes. Dois anos depois, em 1953, o artista ganha com o desenho “Cangaceiro”, 1953 (Col. MAC USP), o Prêmio Aquisição D. Olivia Guedes Penteado, na II Bienal de São Paulo, onde está retratado um cangaceiro deitado em escorço. O símbolo máximo da valentia e rapidez é representado em seu momento de repouso, criando-se assim um paradoxo. Toda a cena dá indicativos da calma do seu sono: a lua ao alto, a munição disposta ao lado do corpo, a cabeça apoiada nos bornais (como são chamadas essas sacolas de couro, usadas a tiracolo), a carabina apoiada no chapéu, o cantil. Sabe-se que o bando de Lampião foi cercado em um ataque-surpresa pelo Tenente João Bezerra, durante o amanhecer, no exato momento em que o grupo despertava. Assim, não tiveram como se defender nem fugir, sendo quase todos mortos ou capturados. Vendo esta imagem, podemos pensar nesse momento que antecedeu o embate final entre o bando do conhecido cangaceiro e as forças militares brasileiras, que tentavam alcançá-lo havia mais de uma década. O desenho é feito em traços finos, típicos do uso da pena. Bastante descritivo, busca ao mesmo tempo efeitos de síntese para dar universalidade ao personagem, à paisagem e aos paramentos. Podemos identificar sua filiação ao Modernismo brasileiro praticado por artistas como Candido Portinari (1903-1962). Ana Maria Pimenta Hoffmann 373 A iconografia do guerreiro em repouso humaniza o personagem. Podemos pensar nela como um contraponto às notícias que pouco tempo antes haviam tomado conta das manchetes nos jornais: a captura e morte de Lampião data de 1938. Em outra obra pertencente à coleção MAC USP, Cabra, 1956, podemos ver toda a síntese do desenho de Aldemir Martins: o amor pelo grafismo, o caráter universal do tema, a importância do imaginário nordestino e sua forte conexão com a arte modernista europeia. Autodidata declarado, Aldemir teve, desde muito cedo, interesse pela arte moderna e pela arte não acadêmica. Organizou e frequentou várias exposições de vanguarda durante os anos 1940 e 1950, notavelmente a Bienal, e também trabalhou muito nelas. Nesse período, tanto na Europa e Estados Unidos como no Brasil, estava sendo feita uma reavaliação do Modernismo do começo do século XX. O trabalho do jovem Aldemir é fruto da compreensão dos ganhos obtidos pela Arte Moderna, ganhos estes que podemos resumir na liberdade formal, isto é, liberdade de um sistema representativo que não está preocupado com aspectos realísticos. A arte não busca mais reproduzir a natureza, mas traduzi-la de forma própria. Os desenhos de Aldemir Martins nesse período, que irão marcar sua obra como um todo, podem ser entendidos nessa chave. A cabra, representada com os úberes cheios, símbolo da prosperidade, constitui peça fundamental no sistema de sobrevivência do homem do sertão. E na arte de Aldemir aparece universalizada pelo desenho, transformada pela estilização geometrizante que a conecta com as cabras pintadas e esculpidas por Pablo Picasso. As costas são uma linha reta, a anatomia do animal é traduzida em formas geométricas preenchidas com grafismo que constroem o volume por tonalizações pela luz. Nesta obra podemos ver um exemplar exercício de experimentação formal entre as possibilidades criadas pelas vanguardas modernistas – pelo Expressionismo alemão, pelo Cubismo francês –, muito bem compreendidas pelo jovem artista, então com 34 anos. Por ultimo, gostaria de analisar a pintura “ O Jagunço”, de 1967 (Col. Masp), que retrata um dos personagens do imaginário brasileiro mais pródigos de significações. Símbolo de valentia e de resistência política, é retratado neste quadro enquanto realiza a manutenção da sua arma, talvez História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 374 momentos antes de algum ataque. Euclides da Cunha, no ano de 1897, empreende viagem a Canudos, reunindo material para escrever o livro Os Sertões: Campanha de Canudos, publicado em 1902. Escrito durante cinco anos e dividido em três partes intituladas “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”, a obra descreve a geografia, os tipos humanos e os conflitos sociais da região. No trecho dedicado à compreensão do homem do interior do Brasil, Euclides da Cunha descreve o jagunço da seguinte maneira: “O jagunço [...] procura o adversário com o propósito firme de o destruir, seja como for. Está afeiçoado aos prélios obscuros e longos, sem expansões entusiásticas. A sua vida é uma conquista arduamente feita, em faina diuturna. Guarda-a como capital precioso. Não esperdiça a mais ligeira contração muscular, a mais leve vibração nervosa sem a certeza do resultado. Calcula friamente o pugilato. Ao riscar da faca não dá um golpe em falso. Ao apontar a lazarina longa ou o trabuco pesado, dorme na pontaria...” Aldemir Martins considerava o autor de Os Sertões o “nosso maior escritor de todos os tempos”9. O quadro acima mostra o jagunço exatamente na atividade com que Euclides da Cunha termina sua descrição, mostrando o preparo das armas, fundamental para o guerreiro infalível que constitui este tipo sertanejo. Tela de grande formato, constitui-se inteiramente de efeitos gráficos. É sintético o tratamento da figura humana que, sentada, com a perna cruzada para apoiar a arma, empreende esforço para o bem afiar da lazarina. Esta tela, junto com os desenhos precedentes, constituem um testemunho importante da arte de Aldemir Martins no processo de conhecer pela arte o interior do Brasil e divulgar tal imaginário nas artes brasileiras. BIBLIOGRAFIA D’AMBROSIO, Oscar; MATUCK, Rubens. “O Desenho de Aldemir Martins”. São Paulo: Cepar Cultural, 2011. ARAÚJO, Emanoel (Ed.). “Aldemir Martins: Linha, Cor e Forma”. São Paulo: K/MWM, 1985. 9 Ibid, pag. 30. Ana Maria Pimenta Hoffmann 375 GUIMARÃES, Benemar. “Aldemir Martins por Aldemir Martins”. São Paulo: Bestpoint, 2005. HOFFMANN, Ana Maria Pimenta. “Aldemir Martins”. São Paulo: Folha de São Paulo/Instituto Cultural Itau, 2013. KLINTOWITZ, Jacob. “Aldemir Martins: O Viajante Amigo”. São Paulo: Senac, 2006. MATUCK, Rubens; MOULIN, Nilson. “Aldemir Martins: No Lápis da Vida Não Tem Borracha”. São Paulo: Callis, 1999. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 376 exposições e narrativas Os salões nacionais de arte em Belo Horizonte na década de 1980 Ana Luiza Teixeira Neves Historiadora da Arte. Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG O presente trabalho é parte de uma discussão maior, desenvolvida a partir do Grupo de Pesquisa do CNPq, denominado “Memória das Artes Visuais de Belo Horizonte (MAV-BH)”, vinculado ao Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes da UFMG, que tem como base a discussão das teorias e métodos da História da Arte, assim como a análise de obras artísticas pertencentes aos acervos de museus públicos mineiros: Museu Histórico Abílio Barreto, Museu Mineiro e Museu de Arte da Pampulha, comparativamente a outros acervos brasileiros e internacionais. A história da arte, enquanto campo de pesquisa autônomo, necessita da utilização de métodos que abarquem tanto os aspectos teóricos acerca da produção artística de um período quanto a abordagem do objeto artístico em sua materialidade, por meio da “educação do olhar”. Tal educação diz respeito a uma análise da obra artística em seus componentes formais, que dão a ela uma singularidade que não pode ser buscada em outro “lugar” senão nela mesma. Segundo o pesquisador Rodrigo Vivas, no Brasil, ainda não há história da arte como campo autônomo, visto que, para que isso ocorra, deve haver “uma definição do campo, uma categoria de objetos que serão analisados, um quadro teórico-metodológico e uma escrita específica”. Para essa escrita, torna-se necessário uma intensa pesquisa sobre a produção artística do período a ser analisado, e além disso, na contemporaneidade, deve-se problematizar a construção de acervos de museus que se dedicam a guardar determinadas obras premiadas em salões de arte. O grande problema dos historiadores que tratam uma obra artística no seu aspecto apenas informativo ou informacional é o de negar um conjunto de elementos formais que caracterizam a especificidade da imagem artística. Como é possível perceber, não parece existir um campo disciplinar constituído pela História da Arte no Brasil e por isto é natural esse sintoma constante de crise (VIVAS, 2011, p. 100). 377 O historiador da arte deve ter contato com a obra em sua materialidade, pois esse contato permite entender como uma determinada obra situa-se na interligação entre o espaço museológico e o aspecto físico do observador. Isso se torna inteligível quando Giulio Carlo Argan (19091992) situa a localização da obra de arte dentro do campo histórico: A obra de arte não é um fato estético que tem também um interesse histórico: é um fato que possui valor histórico porque tem um valor artístico, é uma obra de arte. A obra de um grande artista é uma realidade histórica que não fica atrás da reforma religiosa de Lutero, da política de Carlos V, das descobertas científicas de Galileu. Ela é, pois, explicada historicamente, como se explicam historicamente os fatos da política, da economia, da ciência (ARGAN, 1992, p. 17). Ao falarmos de obras de arte, devemos compreender anteriormente como se dão os processos de seleção e conservação das mesmas enquanto referências para a construção de uma história da arte, seja nacional seja regional. Os museus de arte moderna e contemporânea muito nos tem a dizer com seus acervos, como apontado no estudo de Emerson Dionísio de Oliveira, onde mostra que grande parte dos acervos existentes nos museus de arte moderna e contemporânea brasileiros foi formada pelos prêmios de aquisição advindos dos salões de arte. Oliveira realizou estudo sobre nove museus púbicos de diferentes localidades brasileiras e, segundo ele, pode ser averiguado que “todos herdaram obras de eventos que os ligam a uma instituição anterior: os salões de arte” . Ao encararem sua tarefa como formuladores de uma coleção, os museus contemporâneos de arte tornam-se a arena de negociação entre memórias coletivas e individuais, dentro de um processo de seletividade em que a presença institucional passou a ser continuamente questionada – sobretudo pelos próprios artistas.14- Os museus de arte dos grandes centros culturais, independentemente da tipologia adotada, passaram a preocupar-se com a dinâmica de circulação da arte e não apenas com sua exposição e conservação, tanto no que se refere ao seu valor mercadológico quanto ao simbólico (OLIVEIRA, 2010, p. 22). História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 378 Percebemos no Brasil a inexistência de uma política de formação de acervo dos museus e coleções, a não ser ora pelas premiações de aquisições dos salões existentes desde o século XIX ora por meio de coleções particulares que são doadas por seus colecionadores. O que não se faz como único problema, visto que, além do que é escolhido para que vire patrimônio de determinado país ou estado, os museus também enfrentam o desafio de como lidar com as obras a serem conservadas e expostas ao público. Oliveira nos coloca essa questão ao pesquisar sobre formação de acervos de museus brasileiros, em que, segundo ele, “os museus ganharam uma má fama atrelada a um passado burocrático, elitista e, por conseguinte, segregador”. E essa má-fama está relacionada à opção, muitas vezes, por preservar arquivos ou objetos obsoletos. Porém, para ele, Essa leitura dos acervos dos museus não é de toda infundada; ao contrário, um dos pontos centrais de sustentação do discurso preservacionista, que atravessou as práticas dos museus, principalmente nos últimos anos do século XIX, como vimos, refere-se à ideia de que tais instituições devem ser o depósito de nossas histórias. Armazenam, portanto, uma infinita gama de “seres” e “entes” que lá, guardados, nos lembram de que temos um passado, mesmo que meramente protocolar, lido por valores hegemônicos e acessíveis a poucos” (Ibid, p. 22). Os problemas apontados por Oliveira foram enfrentados no decorrer desta pesquisa, contudo, faz-se importante o acesso a essas obras, mesmo que não expostas, como nesse caso, em que as obras analisadas se encontram na reserva técnica do Museu de Arte da Pampulha. Juntamente a essas análises, foi necessário o levantamento da fortuna crítica, por meio de textos jornalísticos e catálogos dos salões, para recuperar os juízos elaborados no período sobre uma determinada produção. Quando Argan nos orienta a “ler” o maior número possível de obras de arte, que se possa gozar da intimidade do objeto, conhecendo processos expressivos, artistas e coleções, ele é enfático ao afirmar que um historiador da arte forma-se em museus, galerias, igrejas, ao que acrescentaríamos, também em salões, pois é no local onde a obra se encontra que o historiador da arte se titula (LUZ, 2005, p. 19). Ana Luiza Teixeira Neves 379 Ao considerar tais variáveis e partindo do pressuposto que a única instituição que obedece aos critérios de preservação, divulgação e possibilidade de consulta das obras em Belo Horizonte (com um acervo que preservou a história da arte da década de 1980) é o Museu de Arte da Pampulha (MAP), esta pesquisa se concentrou no contato e na análise de obras pertencentes a esse acervo, inseridas dentro do formato de aquisição por meio dos salões de arte. O Salão de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte e a coleção do Museu de Arte da Pampulha Para se entender o desencadeamento da história da arte em Belo Horizonte, faz-se necessário o estudo dos salões, que, desde seu começo, passou por significativas transformações. Quanto ao estudo dos salões, é possível concordar com Vivas quando esclarece sobre a importância dele e o motivo pelo qual ele deve ser nosso objeto de estudo para diagnóstico da produção artística de uma época: Apesar da relevância do tema, poucos estudos foram realizados sobre os salões. No Brasil, o estudo inaugural foi realizado por Ângela Âncora da Luz. O estudo dos salões de arte é um caminho profícuo e capaz de relacionar os mais variados componentes da produção artística, sejam eles: institucionais (o museu, a crítica de arte e o público); os artísticos (as obras artísticas consideradas nos seus aspectos técnicos e estéticos) e sociais (significado das premiações e valorização dos artistas) (VIVAS, 2012, p. 118). Outra questão importante neste estudo é o fato de os salões, não só em Belo Horizonte, mas em todo o Brasil, passarem a constituir seus acervos por meio de premiações de aquisição, ou seja, não há uma política de aquisição ou um colecionismo mais direcionado. Entender a história da arte de Belo Horizonte é buscar nos salões todo o referencial de um período, o que os artistas produziam e submetiam à seleção, ao pensamento dos críticos e à reação do público. Os salões são capazes de diagnosticar um pensamento que se delineava no campo artístico do momento estudado. O crítico Márcio Sampaio aborda esse surgimento na capital: História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 380 Tendo surgido em meados dos ano 30 como reação ao academicismo que dominava as mostras coletivas e os concursos de arte em Belo Horizonte, o Salão de Arte promovido pela Prefeitura teve seu formato modificado de tempos em tempo, sempre como resposta às críticas, às demandas dos artistas e às exigências da própria arte e dos meio de sua comunicação nas ultimas décadas (SAMPAIO, 2009, p. 152). Ligado aos Salões está o Museu, pois ele é o local escolhido para a mostra e a guarda das obras que foram expostas, além de sua conservação. O Museu de Arte da Pampulha, dedicado às artes moderna e contemporânea, possui um acervo de aproximadamente 1.400 obras, formado por praticamente todas as premiações desses salões, mostrando ser também tais premiações diagnósticos de produções, modismos, e delineando momentos artísticos de Belo Horizonte. Relacionado a essa questão, aborda Sampaio: Por meio das premiações no Salão é que o Museu começaria a construir o seu acervo: os primeiros prêmios em cada categoria regulamentar – pintura, escultura, desenho e gravura – tinham caráter aquisitivo, e as obras premiadas passavam a integrar a coleção do MAP, havendo, eventualmente, doações de artistas premiados em 2° e 3° lugares. Em algumas edições, o Museu contou com o apoio de instituições e empresas como patrocinadoras dos prêmios de aquisição, mas estas, via de regra, não doavam as obras ao Museu. Com isso, muitas obras importantes deixaram de ser incorporadas ao seu acervo (Ibid, p. 27). Sampaio também aponta como problema outras questões relacionadas ao Museu, como: a localização, que dificulta o acesso do grande público, e a falta de recursos e a inadequação de suas instalações à função museológica. Contudo, as histórias dos salões e dos museus estão imbricadas e necessitam ser vistas. O Museu da Pampulha foi construído em 1943, concebido por Oscar Niemeyer, na gestão do prefeito Juscelino Kubitschek, para funcionar como cassino, fazendo parte do complexo arquitetônico da Pampulha (Iate Clube, Casa do Baile e Igreja São Francisco de Assis), representando a chegada da modernidade em Belo Horizonte, nos quesitos artístico e arquitetônico. Porém, as instalações do prédio foram fechadas, após o jogo de azar ter sido Ana Luiza Teixeira Neves 381 proibido no Brasil, em 1946. Desse momento em diante, precisamente até 1951, o prédio passou a sediar eventos, comemorações diversas e até mesmo exposições de arte. Naquele mesmo ano, foi transferido, assim como todo o complexo arquitetônico, para o Governo do Estado de Minas. Em 1957, é inaugurado como sede do Museu de Arte de Belo Horizonte, com a cerimônia do XIII Salão Municipal de Belas Artes. A história dos salões na capital mineira é mais antiga que a própria criação de seu Museu, como demonstra Sampaio em seu estudo: Em seus 72 anos de existência oficial, o Salão de Arte de Belo Horizonte passou por diversos formatos e denominações, mantendo, contudo, sua importância como instrumento de estimulo à criação artística na capital mineira. Suscitou polêmicas, questionamentos, mas indubitavelmente contribuiu para o surgimento e a inserção de inúmeros artistas no circuito artístico de Minas e no contexto nacional. É também o principal mecanismo utilizado para a constituição do acervo de arte brasileira e mineira do Museu de Arte da Pampulha (Ibid, p. 25). Vivas ressalta a importância dos salões da capital para o circuito artístico brasileiro, não só promovendo intercâmbio e propiciando formação para os artistas, mas também servindo para desenhar uma história da arte em Belo Horizonte, definindo e direcionando as obras que seriam conservadas até os dias de hoje. Os Salões Municipais de Belas Artes (SMBA) da Prefeitura de Belo Horizonte têm um papel fundamental para o desenvolvimento das artes plásticas no Brasil. Considerado muitas vezes como responsável por preservar o estilo acadêmico, os salões transformam-se na instituição capaz de financiar artistas, conceder viagens internacionais e constituir o acervo dos museus de arte. Neste sentido, acabam por definir o conjunto de obras que faria parte da memória visual artística brasileira, além de determinar critérios que deveriam ser seguidos pelos artistas para serem aprovados pela instituição (VIVAS, 2012, p. 229). Em seus primeiros anos de existência, os salões aconteciam no saguão da Prefeitura e, nas décadas de 1940 e 1950, eram um grande evento ligado História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 382 às comemorações do aniversário de Belo Horizonte. Na década de 1950, mais precisamente, em 1957, os salões seriam transferidos para o Museu e, desse momento em diante, deu-se o início da constituição do seu acervo com os prêmios de aquisições e outras doações. Acervo esse formado por meio do salão, e, como demonstra Sampaio, é possível crer em seu caráter circunstancial. Primeiro, porque o Salão, em quase todas as suas edições, dependeu do interesse dos artistas em inscrever suas obras, e o conjunto inscrito conformaria um contexto sobre o qual o júri teria de trabalhar; segundo, pela razão de as curadorias exercerem o poder de escolha dos membros de seleção e premiação, e, assim, na composição de um júri, poder predominar um direcionamento conceitual e crítico da curadoria; terceiro, porque o júri trabalha com um certo nível de experiência e subjetividade e de composição de preferências a partir de discussões do grupo; quarto, por a premiação, muitas vezes, ser guiada também pela “consideração da hora”, isto é, pelo que cada obra expressa ou representa naquele momento (SAMPAIO, 2009, p. 23). Outro fator que contribuiu para o fortalecimento do acervo do Museu foi o fato de que, em 1958, o jornalista Assis Chateaubriand articulou um grupo de doadores para incorporar obras ao acervo, e, assim, foi possível criar um maior repertório da produção artística apresentada no Museu, indo do moderno ao popular. Há ainda o fato apontado por Sampaio, de que obras premiadas, muitas vezes, foram incorporadas às coleções particulares de patrocinadores (instituições e empresas diversas), em vez terem sido doadas ao Museu. Outra forma de constituição do acervo, além dos salões de arte, são doações diversas, e, desde 2003, os programas de arte contemporânea do Museu também contribuem para formar a coleção do MAP, a exemplo do Projeto Bolsa Pampulha, que passou a substituir os salões de arte, com algumas semelhanças em sua formatação (edital, portfólio, seleção e premiação), além de outras exposições. O estudo do professor Vivas (2012) nos interessa, pois delineia um momento de mudanças não só no campo da arte, mas de forma geral, no que diz respeito ao advento da arte contemporânea em Belo Horizonte, com sua nova ordem, e a quebra de parâmetros formais que irá atingir também os salões: Ana Luiza Teixeira Neves 383 A década de 1960 desempenha, como demonstra Michel Archer, uma mudança vertiginosa no sistema artístico internacional. O fim do duopólio pintura-escultura demarca a ruptura com séculos de representação artística. Observa-se que, ainda no início da década de 1960, é possível dividir a produção artística em escultura e pintura. Mas, como afirma Archer, o duopólio passa a ser questionado após o advento das colagens cubistas e da performance futurista, além dos eventos dadaístas (VIVAS, 2012, p. 203). Vivas situa a mudança dos salões na capital dentro dessas transformações, advindas do questionamento das modalidades artísticas apresentadas, e, nos salões, os questionamentos e a necessidade de mudança não seriam diferentes. O circuito artístico de Belo Horizonte, após 1967, caracteriza-se pelo diálogo constante entre a ruptura e a tradição. Dessa forma, após constantes crises, inicia-se um conjunto de medidas para reconquistar a legitimidade do SMBA junto aos artistas mineiros. O discurso de ruptura rapidamente parecia estar sendo novamente incorporado por práticas conservadoras. A primeira medida é transformar o Salão Municipal da Prefeitura em Salão de Arte Contemporânea (SAC) e abolir as divisões tradicionais como pintura, escultura e desenho. O objetivo do SAC, segundo o novo programa do salão, seria premiar bons trabalhos, independentemente de quem os produzisse. Com essa observação, busca-se romper com a imagem do SMBA, que estaria apenas premiando artistas do eixo Rio-São Paulo. Inicia-se, novamente, a tentativa de estabelecer, nos salões, critérios específicos para a arte mineira (Ibid, p. 203-204). A partir de 1969, encerra-se o ciclo dos Salões Municipais de Belas-Artes, mais tradicional no formato e nas linguagens apresentadas, e cria-se o Salão Nacional de Arte Contemporânea. Como argumenta Vivas a passagem do moderno ao contemporâneo dependeu da crise dessa instituição. O processo de quebra do suporte, a negação do museu como espaço expositivo privilegiado, a quebra do distanciamento com os espectadores, o uso do corpo como expressão artística e a volta à figuração são algumas características da arte contemporânea observáveis na manifestação “Do corpo à terra”, ocorrida na capital mineira (Ibid, p. 41). História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 384 A partir de 1971, é retirado da denominação dos salões o termo “Contemporâneo”, passando a ser chamado Salão Nacional de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte. Como informa Sampaio: Encerrava-se então o primeiro cicio dos Salões do Museu, reconhecendo-se, sem dúvida, sua importância e seu saldo amplamente positivo. Iniciava-se uma nova fase com regulamentação aberta a novas linguagens e tendências. Aboliu-se a divisão por categorias, permitindo com isso a inscrição de trabalhos em linguagens ainda não catalogadas, interdisciplinares ou que se situavam na fronteira de uma e outra categoria – o regulamento referia-se a trabalhos e não mais a obras. (...) Quanto à premiação, também se aboliu a divisão por categoria. Estabeleceu-se um “Grande Prêmio” e outros prêmios de caráter aquisitivo sem hierarquização (SAMPAIO, 2009, p. 32). Após essas elucidações, pretendeu-se, dentro do contexto apresentado, investigar a arte produzida em Belo Horizonte, na década de 1980, e sua inserção dentro do circuito artístico da capital mineira por meio dos salões de arte. Esta pesquisa realizou um levantamento sobre os salões nacionais de arte promovidos pela Prefeitura de Belo Horizonte na década de 1980, figurando-se naquele momento como um dos principais eventos do país, no sentido de apresentar e promover a arte nacional. Portanto, foi preciso optar por um recorte tamanho o volume de informações encontradas, fontes textuais e obras, sobre o assunto abordado. Decidiu-se, então, por investigar e analisar cinco salões nacionais de arte de Belo Horizonte, ocorridos entre 1979 e 1984 (exceto 1982) por meio das fontes produzidas por tais eventos, que podem ser divididas em: fontes textuais – catálogos, críticas jornalísticas, atas e regulamentos dos salões – e visuais, as obras artísticas premiadas. Esses salões tiveram o diferencial, dentre prós e contras, de terem se realizado, ora em seu formato tradicional com concorrência ora como uma grande exposição coletiva, em torno de um tema predeterminado por curadores ou críticos trabalhando conjuntamente. A principal justificativa para a mudança dos salões tradicionais para os salões temáticos, segundo seus organizadores, decorreu do esvaziamento dos salões ocorridos na década de 1970 – e os motivos apontados para tal esvaziamento foram: a ditadura militar, que ainda alarmava o país; o medo Ana Luiza Teixeira Neves 385 dos artistas da censura; o vazio cultural assombrado pela efervescência das décadas anteriores. Outro fator que apresentou mudança foi o fato de, em muitos desses salões, ter ocorrido a substituição do sistema de seleção dos artistas. Em alguns dos salões, foi extinto o corpo de jurados que premiava as melhores obras e, em vez de uma irrestrita concorrência, adotou-se um sistema de convite a artistas consolidados no circuito. Destaca-se, ainda, a criação do sistema de curadoria, delineando um pensamento específico para o evento, juntamente com a inserção de uma proposta temática para cada salão analisado. O foco deste estudo foram os salões temáticos, que, como se sabe, foram cinco em toda a história dos salões em Belo Horizonte: XI Salão Nacional de Arte, Figuração referencial, 1979; XII Salão Nacional de Arte, A cidade faz, 1980; XIII Salão Nacional de Arte, A casa, 1981; XV Salão Nacional de Arte, Precariedade e criação, 1983; e XVI Salão Nacional de Arte, O homem, 1984. Os salões temáticos trouxeram consigo um caráter peculiar, principalmente pelo fato de terem acontecido num momento de transição na política brasileira (ditadura-abertura) e por seus organizadores tentarem fazer com que, de alguma forma, isso aparecesse na formatação desses eventos, ampliando a participação para outros tipos de manifestação popular, juntamente com a produção artística erudita ou mesmo no teor das obras apresentadas quando os artistas eram convidados. Por meio dos textos e das obras apresentadas nos salões, foi possível verificar isso. Diferentemente do que havia ocorrido até o contexto aqui tratado, em 1979, o XI SNA – Figuração referencial ocorreu no formato de uma grande mostra temática, com convites a artistas, demonstrando a tendência nos trabalhos apresentados da figuração de referência político-social e cultural, nos quais se destacaram obras de Marcos Coelho Benjamin, João Câmara e Mariza Trancoso. Em 1980, o XII SNA – A cidade faz, aberto à concorrência em torno de um tema, trouxe consigo o diferencial de ocorrer sob uma curadoria compartilhada, envolvendo críticos, jornalistas e historiadores, abarcando, assim, áreas e abordagens diferentes, como arquitetura e jornalismo. O concurso de artes plásticas também foi inovador, ao ampliar o aceite de propostas que iriam para além do espaço do Museu. Destacaram-se nesse salão História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 386 as obras de Manfredo Souzanetto, Marco Túlio Resende, Hugo Denizart e Ana Amélia Diniz Camargos. Em 1981, em continuidade a uma proposta temática, realizou-se o XIII SNA – A casa, no qual manteve-se a proposta de concorrência aberta, juntamente com convites a artistas que tivessem trabalhos em torno da temática. Destacaram-se as obras de Paulo Roberto Leal, Amilcar de Castro e, novamente, Hugo Denizart. Após a quebra do ciclo temático, em 1982, no ano seguinte, voltaria o formato de salão temático, ocorrendo, em 1983 o XV SNA – Precariedade e criação. Novamente, assim como em 1979, apenas com convite a artistas e, dessa vez, sem prêmios de aquisição. Mesmo sem obras no acervo, foi possível destacar as presenças de Marcos Coelho Benjamin e Fernando Lucchesi. No ano de 1984, acabaria o ciclo dos salões temáticos, com o XVI SNA – O homem, e, com ele, a hipótese de que seria aquele o ano mais marcante da emergência da pintura como categoria principal eleita pelos artistas, seguida do desenho, que tinha forte presença principalmente na produção artística mineira. Destacam-se nesse salão as obras de Marcos Benjamin e Mariza Trancoso, mais uma vez. Dentre os salões estudados, de 1979 a 1984, fez-se forte a presença da pintura e do desenho, eleitos por grande parte dos artistas, jovens ou mesmo com carreiras consolidadas; fato que pode ser delegado também à preferência do júri e da crítica por esses suportes. Assinala-se, ainda, a ampla recorrência ao objeto e à instalação, que, devido ao caráter perecível, acabaria por não fazer parte do acervo do MAP. Em suma, tanto no que diz respeito à produção artística da década de 1980 quanto ao acervo do Museu de Arte da Pampulha, podem surgir questões que nos possibilitam pensar numa escrita da história da arte contemporânea brasileira, pela relevante quantidade de obras e fontes que podem ser encontradas a respeito de tal período, especificamente, no acervo do Museu de Arte da Pampulha. Ana Luiza Teixeira Neves 387 REFERÊNCIAS ARCHER, M. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ARGAN, G. C. Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. 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Num século que pretende nivelar em tom cinzento a indistinta massa humana, ele pertencia ao número dos que representam algo de excepcional.” Murilo Mendes, em seus Retratos-Relâmpago. “ Yo creo en los objetos inclusive más que en los seres humanos (...) los objetos los traicionamos nosotros. ” (...) ” Nosotros somos los que mentimos, los objetos no mienten.” Manuel Mujica Láinez, entrevista concedida a Joaquín Soler Serrano, TVE, anos 1970. Nascido em Petrópolis no ano de 1896, Cornélio Penna viveria marcado pelo ambiente espiritual mórbido e tradicional, místico e um pouco divorciado do mundo real que encontrou na infância em Itabira, Minas Gerais, Brasil. Essa infância no interior da província é sempre lembrada como matriz das imagens, temas e mesmo dos personagens que viria a utilizar em suas obras futuras. Não há exagero em ressaltar este apego, como fizeram Afrânio Peixoto ou Adonias Filho, ao espírito da terra que o “embruxou” na estadia mineira. Cornélio chegaria a dedicar Dois Romances de Nico Horta, o segundo livro que publicou, à cidade querida, apresentada como sua amiga mais cara na abertura da obra. Mas o caso mais radical dessa devoção seria mesmo Fronteira (1935) romance escrito e ilustrado por ele e que teria seu tema místico extraído de uma história verdadeira, passada em Itabira. Diplomado em Direito em 1919, Cornélio passa a viver do jornalismo e da atividade de ilustrador e pintor. Trabalha, no Rio de Janeiro, como redator nos jornais Gazeta de Notícias, A Nação e O Jornal. Realiza a única individu- 393 al de seus trabalhos – pinturas desenhos e ilustrações - na Associação dos Empregados do Comércio, no Rio de Janeiro, em 1928. Publica seus livros, definindo uma nova área de interesses, entre 1935 e 1954, desenvolvendo e apurando o mecanismo da análise introspectiva e psicológica em cada uma de suas obras. Dos capítulos mais curtos e de sabor impressionista de Dois Romances de Nico Horta (1939) e Repouso (1948), vemos seu estilo desenvolver-se no sentido da a expressão de ampla envergadura, culminando na metáfora da decadência e desagregação da sociedade aristocrática rural representada por A Menina Morta (1954), sua realização maior e compêndio de seu processo criativo. Inacabado deixaria o romance Alma Branca, publicado como anexo à edição dos Romances Completos que mereceu da Ed. José Aguilar em 1958. Sob sua técnica e habilidades, podemos lembrar o juízo de A. Coutinho: “Dotado de singular capacidade de análise introspectiva, criou personagens de grande realismo e complexidade, situando-os, além do mais, em ambiente de densa atmosfera, soturnos, próprios ao desenrolar dos enredos e episódios que narra numa linguagem seca, objetiva e direta. Seus romances possuem grande significação simbólica, situando-se na zona de ‘fronteira’ em que se procura fazer sondagens sobre o mistério da vida, das pessoas, dos fatos”1 A atmosfera de sonho que se desprende de seus textos são apenas parte de um caráter complexo e marcado por força criativa excepcional. Sob a gênese de seus romances, assim se havia manifestado, em entrevista ao também escritor J. Condé, publicada nos seus Arquivos Implacáveis: “(...) desde que me conheço, ouvia histórias de Itabira, de Pindamonhangaba e das fazendas dos meus avós e tios, contadas de forma interrompida, desconexa, cercadas pela mais suave discrição que já me foi dado contar, contadas por minha mãe. Eu guardava tudo com avidez, sem demonstrar como era funda a emoção que me provocavam aqueles episódios sem uma ligação evidente entre eles, que eu recolhia e depois ligava com um fio inventado por mim.”2 COUTINHO, Afrânio ( Dir.): Enciclopédia de Literatura Brasileira (2 vols.), São Paulo: Global Editora, 2001, Vol. 2, pág. 1234 1 FILHO, Adonias: Romances da Humildade, introdução aos Romances Completos, Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1958, págs. XXXIX- XL 2 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 394 Sua personalidade extravagante e misantropa foi fixada através de séries de artigos ou referências literárias, unânimes ao destacar seu caráter arcaizante, sua paixão pelas relíquias familiares, móveis antigos ou seu intransigente apego ao passado, seja aquele da memória infantil - dominada pela lembrança de uma Itabira fantástica, matizada de cores afetivas e impressões irremovíveis - ou o da Monarquia banida e à qual permaneceu aparentemente fiel (“Era mesmo das baronesas”, como no Retrato elaborado por Murilo Mendes). M. Rebelo, em seu conto A árvore, em que evoca o bairro de Laranjeiras, o inclui entre os personagens típicos daquele canto do Rio de Janeiro, passeando “o quanto pode” pelas ruas do bairro, apoiando-se ao braço da mulher, companheira de toda a vida3. A sua casa - mausoléu, espécie de cenário montado dom o fim de reforçar esse caráter sombrio e original que o acompanhava, seria descrita por Lêdo Ivo com minúcia e sensibilidade num texto cujo efeito é quase o de um conto gótico: “A casa onde reside Cornélio Penna, em Laranjeiras, dá frente para a rua, e, com a sua alta porta de madeira pintada de escuro, cor de bronze antigo, lembra logo um pequeno convento. Para essa impressão, muito contribui o estar sempre de janelas cerradas, bem como o seu ar de recolhimento e de silêncio, no meio das outras residências ruidosas e muito abertas. O grande vitral que nos surge logo aos olhos, com duas figuras graves, de olhar sereno, aumenta a sensação de paz e de longitude, que os móveis sombrios, os papéis de cores discretas, a grande quantidade de quadros de pinturas de tons velados e os enormes retratos de família acentuam.”4 Daquela casa viria a maior parte dos objetos pessoais, quadros esculturas e mobília hoje legados à Fundação Casa de Rui Barbosa, assim como os desenhos e demais papéis que se encontram no mesmo arquivo. Mário de Andrade dedicaria a Penna, mais especificamente na ocasião do lançamento de Dois Romances de Nico Horta, o artigo “Romances de um 3 “Viam Cornélio Penna, enquanto pode, passeando ao sol com passos trôpegos, firmando-se no braço da esposa dedicada e na mão invisível do Salvador, que o empolgou, afinal, para tê-lo eternamente junto ao seu seio amantíssimo”. Em Rebelo, MARQUES, A Árvore, incluído em Os Melhores Contos de Marques Rebelo São Paulo: Global Editora, 1984, págs. 122 e 123. Depoimento a Lêdo Ivo publicado originalmente n’O Jornal, em 23 de maio de 1948 e mais tarde incluído nos Romances Completos, Rio de Janeiro, José Aguilar Editora, 1958, pág. LIII. 4 André L. Tavares Pereira 395 antiquário”5. Também neste título transparece a figura do autor dedicado a revolver o passado, recolhido entre seus leques, relógios ou salvas de prata do tempo do rei. Em muito recorda os ambientes e personagens de Mujica Lainez em Los Ídolos. Esse o perfil de Cornélio pelo autor de Macunaíma: “Alma de colecionador vivendo no convívio de objetos velhos, Cornélio Penna sabe traduzir, como ninguém entre nós, o sabor de beleza misturado ao de segredo, de degeneração e mistério, que torna uma arca antiga, uma caixinha-de-música, um leque, tão evocativos, repletos de sobrevivência humana assombrada. Se sente que seus os romances são obras de um antiquário apaixonado, que em cada objeto antigo vê renascer uns dedos, uns braços, uma vida, todo um passado vivo, que a seu modo e em seu mistério ainda manda sobre sobre nós.”6 A estréia como romancista em 1935, justamente com Fronteira, abre caminho para uma série de novos romances, inaugurado - ou ao menos, reinventando - uma tradição regionalista e introspectiva que seria, mais adiante, desenvolvida até os limites da hipersensibilidade por Lúcio Cardoso, autor a quem Cornélio Penna é sempre associado. O clima opressivo do interior desolado do país, o peso da tradição e dos antepassados, a descrição impressionista e sugestiva dos ambientes, sua influência no caráter das personagens cujas vidas parecem conduzir-se por fios invisíveis, tudo está presente nessas narrativas. Os adjetivos assombrado, misterioso ou nublado são recorrentes na descrição de seu estilo, tanto na literatura quanto no desenho. O próprio autor, demonstrando possuir senso de auto-ironia e bom humor, assim diria a João Condé sobre este ponto: “Sobre Fronteira, alguém disse que era um romance de Boris Karloff, e eu achei que tinha razão.”7 Ao texto inovador de Fronteira seguir-se-iam Dois Romances de Nico Horta e Repouso, etapas em que burilaria as histórias que colecionara em seu íntimo dando a elas a forma de romances escuros, até então organizados em capítulos curtos. Sua obra, máxima, porém, será A Menina Morta, 5 O artigo de 24-09-1939 foi publicado, mais tarde, no volume O empalhador de passarinho. 6 Mário de Andrade, pág. 124. 7 João Condé, apud Adonias Filho, op.cit.,pág.XLI. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 396 obra-prima do gênero de romance fantasmagórico e noturno que refinou ao extremo. O insólito do tema – a desagregação de uma família aristocrática no Vale do Paraíba vista através da movimentação ao redor das exéquias de uma criança defunta - soma-se à história da criação do próprio romance: a inspiração derivava de um retrato de uma parenta (Zeferina, sua tia por parte de mãe) morta ainda menina e que o autor conservava em sua casa. Neste romance, Cornélio Penna expande seu texto, segurando por mais tempo, com mão de mestre, o leitor perplexo. A trama aparece adensada, os capítulos mais extensos. Ao comentar a intimidade do autor com os objetos antigos e ao culto do seu passado, assim escreve Murilo Mendes, não sem a habitual dose de humor soturno: “O símbolo máximo era obviamente o quadro grande da menina morta (sua tia Zeferina), pintado no século passado por um francês residente no Brasil que lhe daria a matéria de um livro. A mudança de Cornélio para outra casa era sempre condicionada ao ajustamento desta tela à parede da sala de jantar. Vi-o rejeitar uma bela casa em Botafogo, onde o espaço é o primeiro elemento funcional, onde se contacta a natureza, onde os marginais recebem títulos de cidadania: desses sobrados com delicioso jardim e pomar, hoje extintos. Hélas! Não cabia na sala o quadro favorito, objeto feérico de sua paixão”8 A relíquia familiar deu ensejo à criação de sua obra mais significativa. Apesar do sucesso de seu procedimento e da acolhida favorável da crítica, Cornélio Penna sempre se posicionou um pouco fora dos holofotes e das discussões mais aferradas. Assim contava a João Condé, respondendo a uma pergunta sobre o juízo que, eventualmente, faria do movimento de 22: “Não julguei na época e não julgo hoje o modernismo, porque não conheço os movimentos literários e penso que eles agem e influem fora da literatura. (...) De resto, leio apenas para não pensar, para esquecer a vida e não para refletir sobre a literatura e fazer juízos paralelos”9 O autor mereceu, em princípios da década de 1980, uma exposição intitulada “Os dois mundos de Cornélio Penna”, iniciativa da Fundação Casa 8 Murilo Mendes, Retratos Relâmpago in Obra Completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar,. 9 Ver Adonias Filho em Romances Completos, pág. LII. André L. Tavares Pereira 397 de Rui Barbosa depositária de seu acervo pessoal. O catálogo, assinado por Alexandre Eulálio, converteu-se na referência maior para a análise do trabalho de C. Penna como artista gráfico e pintor. Neste texto, publicado posteriormente na Revista Discurso (FFLCH / USP, 1981) bem como no volume Escritos (Ed. UNICAMP), Alexandre Eulálio tratava de esclarecer possíveis fontes visuais, modelos de figuração, para o estilo fantástico das imagens elaboradas pelo autor de “A Menina Morta”. Seu parecer era de que “ Em Cornélio Penna, pintura e literatura constituíram as formas artísticas que, nessa ordem, o criador relutante aceitou a assumir a fim de dar expressão a um mundo pessoal torturado e sombrio. Embora duvidasse muito da eficácia da própria atitude, sempre a oscilar entre a inutilidade de cada gesto e o arrebatamento interior, o artista acaba por aceitar o caminho da invenção”10 Se, ainda na faculdade de Direito, iniciara-se nas letras com pequenas lendas e narrativas curtas dentro de filiação simbolista, seria na imprensa que sua personalidade artística ganharia espessura. Nesta etapa, o artista gráfico passaria à frente do escritor, apurando sua técnica e definindo seu campo de interesse temático. A esta altura, “Executa (...) caricaturas políticas, apontamentos esquemáticos, desenhos vários, em que o lado grotesco do dia-a-dia vence a anotação por vezes lírica apanhada ao vivo: cenas de rua, comentários de porta de bar, ridíciulos e mesquinheza da pequena-burguesia.”11 Sua atividade, porém, foi além da caricatura e da ilustração de pequenas histórias publicadas nos jornais e revistas da moda. Trabalhou, ainda, como um proto-designer, compondo modelos tipográficos “modernos”, é dizer, com letras geometrizadas e arrojadas para cartazes, anúncios e letreiros de lojas que desejassem para si um perfil e imagem inovadores. A exposição de 1928 aparece, então, como uma conseqüência natural do prestígio crescente que seus desenhos vinham alcançando. Os estímulos Alexandre Eulálio, Os dois mundos de Cornélio Penna in Revista Discurso, São Paulo: FFLCH / USP, 1981, pp.29 – 48. Esta citação, pág. 29. 10 11 Alexandre Eulálio, op.cit, págs. 29 e 30. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 398 dos amigos e fãs dedicados acaba entusiasmando o autor, o que é de causar espécie, dado o caráter retraído que vinha cultivando até então: “Já animado com o que me diziam alguns amigos, resolvi fazer uma exposição individual, o que realizei graças ao espírito empreendedor de Dona Nini Gronau, e o Sr. Teodoro Heubergerm que contou com o patrocínio do Ministro da Alemanha em nosso país, o Sr. Hubert Knipping, fizeram tudo para que esse desejo se tornasse uma realidade. Em 1928 foi inaugurada minha única exposição, e consegui vender alguns quadros (...). O catálogo foi escrito pelo Sr. Augusto Frederico Schmitd(...).”12 Em 1929, porém, mesmo após o sucesso de sua exposição e ao continuado apoio manifestado pelos fãs de seu desenho nervoso e do cinismo sutil com que impregnava alguns de seus sketches mais bem-sucedidos, Cornélio Penna decide subordinar, pela deficiência na transmissão plena do conteúdo emocional que deseja comunicar, o desenho à escrita, publicando seu acerto pessoal de contas com o universo artístico e resolvendo, através da atitude radical, a indecisão, a dúvida na escolha exata do meio de expressão consoante com seu gênio, a que vinha se submetendo. Assim, “Atingindo um paroxismo insuportável para o mesmo artista, sem no entanto provocar no espectador a ânsia de absoluto que nele gostaria de incutir, Cornélio Penna julga frustrada a própria obra, que passa a considerar um equívoco. (...) Procurando libertar-se com tristeza, mas de modo definitivo, de um sofrimento que parece não levar a coisa alguma, Penna assume para si mesmo que o abandono da pintura é a única solução para o dilema. A pintura deixará portanto (afirma) o principal meio de expressão do mundo interior dele. Em lugar adota a pintura – arte do tempo, não do espaço, arte que afinal constituía o seu outro mundo - ,que a partir daí se torna o sangradouro dessa represa que ameaça aluir por excesso de tensão dinâmica.”13 O desenho parecia ter sido, até aí, o veículo. Passando ao romance, adotaria um estilo sugestivo, marcado pelas impressões vagas e pelo discurso “a meia-luz” que associam-se com eficácia poética. A cisão entre o artista Depoimento a Lêdo Ivo em A vida Misteriosa de Cornálio Penna, Romances Completos, Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1958, pág. LX. 12 13 Alexandre Eulálio, op.cit., pág.38. André L. Tavares Pereira 399 plástico e o romancista era, a esta altura, irreversível. Assim se manifesta C. Penna sobre os eventos posteriores à exposição e que culminaram na Declaração de Insolvência: “(...) fizeram-me um convite para levar a exposição a Buenos Aires, a bordo do navio estrangeiro que inaugurava então linha de navegação de longo curso, para permanecer na capital argentina durante vinte dias, tudo à custa da empresa. Recusei, e pouco tempo depois, tendo desenhado um quadro que chamei Anjos Combatentes, verifiquei com tristeza, que não era pintor, nem desenhista, nem ilustrador, apesar de ter feito capas e ilustrações para livros de Moacyr de Almeida, Arnalfo Tabaiá, Rubey Wanderley e outros...”14 O momento de impasse em que se inscreve o Cornélio Penna artista gráfico – os anos 20 da definição militante do caráter nacional – pode ter atordoado, mais do que desafiado – como fez a tantos outros – o artista, precipitado num debate em que se via prostrado, incapaz de uma contribuição efetiva. Chegava mesmo a achar graça, a zombar de certa postura panfletária que percebia em certos grupos de artistas15. O autor entendia que, a despeito dos cem anos de atividade da Academia e da renovação promovida pelas novas hordas de pintores, escultores ou desenhistas, o ambiente das artes plásticas padecia da falta de consistência e urdidura, inculcando na- 14 Do depoimento a Lêdo Ivo, pág. LX. 15 Assim escrevia, na Declaração de Insolvência, publicada originalmente no jornal A Ordem, do Rio de Janeiro, em 1929, sobre os que buscavam insistentemente a invenção de uma pintura “genuinamente” brasileira: “Muitas vezes, em minha miséria, procurei esse apoio negativo, e só encontrei quem procurasse, por sua vez, um pintor-cobaia ou um pintor-tabu; aqueles que pintam as idéias de seu grupo, ou aqueles que têm a propriedade exclusiva da seção de pintura, também de seu grupo. Ora não posso aceitar, nem compreender, sem rir, uma e outra dessas atitudes(...).E daí não poder escrever nunca sobre arte, porque em vez de me acudirem afirmações e doutrinas, brotam em mim, atropelando-se umas às outras, perguntas e dúvidas, criadas pela minha educação literária, monstruosa e vulgar”. Ver Romances Completos, Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1958, pág1350. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 400 queles que se dedicassem ao seu estudo mais dúvidas e acanhamento intelectual que segurança e desenvoltura artística. A preferência pela literatura, ao fim do balanço e da curva de vida representados pela Declaração, parece ter correspondido a uma busca por um campo mais preparado para as realizações artísticas, representado, entre nós, pela tradição literária. Uma postura como esta deduz-se imediatamente de opiniões como a que se segue: “Uma vez que nosso adiantamento literário, as nossas livrarias e os nossos literatos, pelo menos em um pequeno agrupamento à parte, são muito mais interessantes, completos e avançados, como é natural, do que o nosso adianta mento artístico, as nossas galerias e os nossos artistas, dispersos e isolados moralmente, todo aquele que deseja conhecer e estudar só acha diante de si livros e teorias, e as viagens que faz, apressadas e como um coroamento do que já conseguiu, são antes um novo elemento de confusão e desvirtuamento. - Por quê? – interroga-nos, por sua vez Cornélio Penna – porque fazia literatura desenhada... Minha intenção primitiva na pintura era significar alguma coisa, criando uma imagem que falasse longamente ao espírito, mesmo depois de esquecida a forma, o trabalho manual, a representação em cores e linhas.”16 Dessa dúvida e da escolha subsequente nasceria um dos mais originais autores da primeira metade do século XX no Brasil. Estreando em um período em que os romances do novo regionalismo, vaga representada pelo êxito de A Bagaceira de José Américo de Almeida, pelo Caetés de Graciliano Ramos ou Cacau ou Suor de Jorge Amado, por exemplo, Cornélio Penna abriria uma vertente audaciosa, reaproveitando elementos folclóricos, superstições e densidade poética, indicando o caminho, v.g., ao Lúcio Cardoso de Maleita. Extrapola, por certos procedimentos na estruturação narrativa, como a composição livre e deliberada de cenas encerradas em si mesmo, como num sonho, as narrativas sombrias, porém marcadas pelo recurso a finais surpreendentes ou a “codas” monumentais, de um João do Rio ou, mais próximo ainda do universo de Cornélio Penna, do Monteiro Lobato das Cidades Mortas ou dos contos dramáticos de Negrinha. Os quadros e outros trabalhos artísticos seriam depositados no desvão da escada da emblemática casa de Laranjeiras, no espaço a que o autor 16 PENNA, C., Declaração de Insolvência, op. cit., pág. 1350. André L. Tavares Pereira 401 chamava - nada mais típico do epírito corneliano – Necrotério. A Lêdo Ivo confessou, por fim: “ – Não pintei mais – continuou o escritor, sem o menor sinal de emoção, na voz. Parecia falar de alguém indiferente, morto há vinte anos. – Acabou-se a dúvida, e, se não me convenci de todo que sou escritor, pelo menos estou certo de que não sou pintor.”17 O autor continuaria, explicando sua decisão dramática por um juízo a um tempo lúcido e profundo sobre a realidade artística brasileira de meados dos anos vinte: “No Brasil, a arte é sobretudo um caso pessoal, e nós precisamos, primeiro da formação de artistas, mesmo que sejam cegos e surdos em nosso país, tão ruidoso e tão claro, para depois descobrir-se um nexo entre eles, e nascer uma vaga e confusa personalidade coletiva, que poderá ser estudada.”18 Curiosamente, alguns dos trabalhos mais pungentes e composições mais concisas e marcantes de Cornélio Penna viriam após o advento de sua Declaração de Insolvência. De algum modo, ter-se desincumbido formalmente do papel de artista plástico ou da função de contribuir diretamente para a criação de uma arte brasileira genuína ao gosto dos debates da segunda metade dos anos 1920, parece ter dado asas à sua imaginação ou, ao menos, removido alguns pudores que o impedissem de se apropriar livremente das estilizações angulosas e fantasiosas, mais compactas e sem o característico “ziguezaguear” de linhas, que definem o seu estilo dos anos 1930. Continuou a executar desenhos a nanquim, ex-libris para amigos, capas e desenhos sem maior pretensão. Gravuras como “Família” de 1933 ou as cinco gravuras – capa e quatro imagens para o miolo, provavelmente linóleos - que elaborou para Fronteira (1935) indicam um artista em continuado, mesmo que velado, desenvolvimento. Suas figuras e composições ganhavam em potência psicológica e o gosto anterior pela alegoria explícita cedia lugar a uma concisão de meios e a um uso mais eficiente das sombras e veios gravados. A fantástica capa, muito elogiada por Alexandre Eulálio, de “Espelho d’Água – Jogos da Noite” , livro de poemas de Onestaldo de 17 18 Cornélio Penna a Lêdo Ivo, Romances Completos, op.cit., pág. LXI. PENNA, C. Declaração de Insolvência, op.cit. pág. 1349. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 402 Pennafort não data senão de 1931, assim como a ilustração de cariz medievalizante para “O Príncipe Glorioso”, conto de Estrela Azul, de Murilo Araújo, não viria antes de 1940, onze anos adiante da Declaração... Teria a auto-censura sido convertida em liberdade criativa? O seu estilo inconfundível, porém, vinha sendo desenvolvido desde o início de sua carreira na imprensa em ca. 1920. A sua capacidade criativa e seus recursos como ilustrador vinham sendo pouco a pouco expandidos e, trabalho após trabalho era possível enxergar mudanças significativas. E, de fato, vemos a série de caboclos (desenvolvida ao menos desde 1923), de caráter inicialmente impreciso e hesitante ganhar em sentido visual, segurança de traço e profundidade de caráter a cada nova tentativa para culminar em novos e melhores resultados. O topo desta série estará, sem dúvida, em desenhos como aquele de 1924 depositado, hoje, no Museu de Arte Contemporânea. O que se passa com a série dos Caboclos é significativo para compreendermos o progresso no estilo de Cornélio e na maneira do autor compreender as suas possibilidades plásticas e sua capacidade de expressão em um e outro meio. As imagens – desenhos a nanquim, guache e aquarela, principalmente - francamente medíocres do início da década de vinte - como, por exemplo, “O Homem”- conviveram com gravuras macabras de sabor decadentista. Assim era “Volúpia” (1923), v.g., muito mais interessante como resultado plástico do que as telas e grisailles que vinha produzindo. Segundo Alexandre Eulálio, o interesse pela série Caboclos viria do tratamento original dedicado ao assunto. Assim, “A insistência no tema indigenista, nos vastos sombreiros dos homens, nos bandós, coques e xales das mulheres, assim como o modo pouco ortodoxo de dispor a matéria na tela, provocou curiosidade no Primeiro Salão da Primavera inaugurado no Rio naquele ano.” – 1923, lembremos, para continuar – “Os trabalhos foram aí acolhidos com benévola curiosidade pelo júri, que pensou tratar-se da produção de pintor mexicano não se sabia se de passagem ou estabelecido havia pouco no Brasil”19 Quando opta abertamente pela estilização, pelos temas obscuros e pelos desvãos de alma que tenta esquadrinhar, alcança estratos mais altos em sua produção. Não há o resultado final dos Caboclos do MAC USP sem trabalhos como “Piedade” (1924), Conversa Afiada ou da série com temas 19 Alexandre Eulálio, op.cit., pág. 33. André L. Tavares Pereira 403 macabros de 1924. Da mesma cepa dos “Caboclos”, a capa assinada Penna, em letra alongada como seus desenhos, para o romance João Miguel de Raquel de Queiroz editado por Schmitd. Sobre a relação entre o artista plástico e o escritor, a análise de Adonias Filho é das mais precisas: “Nos quadros e desenhos, expostos no saguão da Associação dos empregados do Comércio, que oito anos depois Almeida Sales evocaria para explicar certos aspectos do Romance Fronteira, uma personalidade singular observava o crítico, focaliza os seres e as coisas sob um prisma fantasmagórico. O painel embebido de mistério diluído, continua Almeida Sales, na descontinuidade dos contornos, o recorte humano das figuras, já Cornélio Penna estabelecia os dados imediatos da futura mensagem literária. Verificando o subjetivismo, o ‘desprendimento do mundo’, e no ensaio que escrevia sobre o pintor, o poeta Augusto Frederico Schmidt lembrava William Blake como ponto de referência para ‘a falta de prisão às coisas palpáveis’. E não subsistirá exagero se acrescentarmos que a mensagem do romancista começa no pintor Cornélio Penna. A correlação, em verdade, é perfeita.”20 A correspondência entre arte visual e literatura encontraria sua intersecção mais bem resolvida e equilibrada em Fronteira. Para Adonias Filho, a ligação entre os desenhos e pinturas dos anos 20 e a novidade da incursão literária era mais que evidente: “As atmosferas são idênticas e de tal modo se ajustam que os desenhos podem ilustrar os romances. O grande exemplo se encontra na edição de Fronteira: As ilustrações que a enriquecem não a contrariam os desenhos e os quadros porque, dispondo dos mesmos traços, oferecem o mesmo fundo. No pintor, e não viesse a ser escrita sua obra ficcional, já se encontravam os elementos da mensagem: o mundo sombrio, o fundo místico, em sangue a conversão da angústia.”21 Essa análise da obra de C. Penna seguia o seu percurso apontando as razões que, hipoteticamente, teriam conduzido nosso autor do desenho e da pintura ao romance. A idéia central é a de que os conteúdos intensos que 20 Adonias Filho, op.cit., pág. XX. 21 Adonias Filho: op.cit. pág.XX. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 404 C. Penna já desenvolvia e apresentava em seu trabalho artístico revelariam, in herba, a sua matéria literária predileta, solicitando, para desenvolvimento natural, os recursos infinitamente potentes do romance, grande painel em que não só poderia evocar as imagens que colecionava desde as narrativas que ouvira na infância mas, também, aproveitar as que reelaborara como ilustrador. Assim, “É possível que, em conseqüência da força dessa mensagem – e mais literária que plástica – Cornélio Penna chegasse ao romance como veículo mais eficiente para exteriorizá-la. O romance, e não a pintura, era o veículo mais eficiente para explorá-la em todos os seus rumos e todas as conseqüências. Sua estrutura especulativa, complexa e poderosa, demonstrava menos o pintor e mais o romancista. E este não tardaria em absorver aquele.”22 Na prática, a Declaração de insolvência daria azo à criação de uma forma especial de romance ilustrado. O autor desejaria organizar uma forma híbrida e equilibrada em que narrativa e imagem, elaboradas pelo mesmo artista, fosse combinada num possível modelo que lhe satisfizesse as pretensões em um e outro campo? É hipótese a ser verificada, mas a que respondemos antecipadamente com um sim. Nostalgia, colecionismo bem a recriação de mundos perdidos sempre andaram associadas à criação literária. Literatos oferecem versões do passado artístico que funcionam como potes a este mundo do passado. Neste espectro, seguimos nossa investigação nos passos de José Régio e suas casas de Vila do Conde e Portalegre, cheias dos santos e móveis dos séculos XVII e XVIII, Mujica Láinez e a seu Paraíso de Córdoba, as casas perdidas de Adolfo Couve em Santiago e Cartagena ou os múltiplos universos das casas de Neruda ou Eça de Queiroz. A casa de Cornélio, como no poema de Manuel Bandeira, esta permanece suspensa no ar, seus objetos dispersos aguardando o fio que os reúna. 22 Adonias Filho, op.cit., pág. XX. André L. Tavares Pereira 405 BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Carlos Drummond de, [Carta a Cornélio Penna]. Uma folha manuscrita A.M.L.B. Acervo Cornélio Penna. Transcrição André Tavares. Rio de Janeiro. 2006. _______. Brasil Terra e Alma – Minas Gerais. Rio de Janeiro: Editora do Autor.1967 ANDRADE, Mário de, O empalhador de Passarinho, São Paulo, Livraria Martins Editora, 1972. ARAÚJO, Olívio T. de, Celso Renato. São Paulo. Cosac & Naify.2005. ARRIGUCCI JR., Davi, Enigma e Comentário. São Paulo. 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A Polêmica das Limpezas na National Gallery ocorrida na primeira metade do século XX, aproximadamente entre os anos de 1933 e 1963, foi um episódio marcado por acirradas discussões metodológicas sobre limpezas de coberturas pictóricas e sobre a aparência final de pinturas de cavalete após tais intervenções. O staff do museu se dividiu e um dos grupos estava totalmente imbuído do pensamento cientificista modernizante presente na época. Era composto por dois diretores, alguns membros do Conselho de Curadores e a equipe de restauradores que fixaram-se na obtenção de resultados objetivos e incontestáveis para ações de limpeza e restauração. Além disso, esse grupo tinha a firme intenção de evitar a todo custo o que interpretara como erros de abordagem detectados em intervenções anteriores e que, segundo alguns de seus integrantes, haviam causado danos às pinturas. Havia uma peremptória recusa por parte desse grupo em priorizar a consulta a qualquer fonte documental anterior ao século XIX, que não fosse exclusivamente técnica, do próprio museu e que não contivesse anotações que confirmassem o acréscimo de vernizes com o intuito “romântico” de escurecer as pinturas. Para eles, a remoção de tais camadas devolveria à obra seu momento de constituição original e os estudos historiográficos serviriam apenas para complementá-los, se passassem por uma criteriosa seleção de fontes que corroborasse a necessidade de tais limpezas. Quaisquer críticas ou mesmo observações feitas por entidades ou pessoal que não tivesse o mesmo gabarito técnico e, principalmente, que não compartilhasse da mesma visão, teria suas colocações analisadas como se tivessem sido feitas por diletantes ou amadores com visão conservadora. Em oposição estavam outros membros do Conselho de Curadores, da Royal Academy, especialistas do Warburg Institute, técnicos e restauradores independentes que indicavam que a radicalização em apenas um método 407 ou base documental, sem uma certa flexibilização, poderia gerar um entendimento incompleto da obra. Além disso, para este grupo os aspectos físico-químicos constitutivos de uma pintura não poderiam fornecer uma apreensão mais profunda sobre a imagem como fora concebida pelo artista para compor o quadro. Os estudos estéticos e historiográficos poderiam colaborar para expandir essa visão, se não fossem rechaçados como fontes não confiáveis pelo grupo da National Gallery. Entraram em campo, para engrossar o grupo dos opositores às ações de limpeza profunda, dois expoentes em suas áreas que, apesar de não terem conseguido mudar minimamente o curso das intervenções naquele museu, contribuíram muito para que as discussões entorno da imagem e da importância da História da Arte como colaboradora na Restauração atingissem grande clareza de ideias: Cesare Brandi e Ernst Gombrich. Eles compreendiam que os aspectos históricos e estéticos são os que fundamentam a obra pictórica e os textos levantados em datas heterogêneas por ambos para embasar suas versões voltavam-se, por exemplo, para a origem histórico-documental das veladuras encontradas em alguns poucos manuais, tratados e anotações, a importância do caráter modelador dos contrastes entre luzes e sombras, os procedimentos de aplicação em camadas, a motivação dos artistas em usá-las para apaziguar as cores das telas e painéis garantindo dramaticidade e, finalmente, o uso dessas coberturas como prováveis referências às ascendências artísticas de cada pintor. O fundamento de se olhar para o passado Em julho de 1949 Brandi publicou um artigo discutindo certas afirmações da equipe do museu. Ele não considerava necessária a seleção das fontes historiográficas, restringindo-as a um determinado período para embasar suas ações de restauro. Além disso, as diferenças entre as abordagens nas limpezas (se mais profundas ou se mais moderadas) não constituíam uma cisão entre dois campos multidisciplinares e colaborativos entre si, como o da História da Arte e da Restauração. Ele ofereceu alguns exemplos de artistas e estudiosos de vários séculos que anotaram fórmulas tanto de vernizes quanto de veladuras em seus tratados e arquivos. O mais importante para ele era que esses documentos poderiam ser entendidos como registros História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 408 de certas intenções dos artistas justificando os motivos assumidos para a aplicação dessas coberturas. Para Brandi, a afirmação da equipe da National Gallery era equivocada, pois o rebaixamento de cores com o fenômeno da pátina ou com o uso de veladuras e vernizes escuros não era acréscimo tardio e de caráter “romântico”. A fonte historiográfica poderia ser pensada como uma base documental para pelo menos considerar uma possibilidade de existência da técnica em vários períodos. Seu texto procurava fornecer alguns pressupostos necessários para fundamentar a permanência de certas coberturas na obra pictórica. Para exemplificar seus pontos de vista, Brandi apresentou três pinturas de períodos variados e de produção bem anterior ao século XIX, sobre as quais ele interveio diretamente. Durante essas ações de limpeza e restauro, ele pôde constatar a presença de vernizes aplicados com a função de rebaixar as luzes e a colocação de veladuras coloridas para obtenção de efeitos dramáticos específicos. Com isso, atestou que estudos sobre esses acabamentos, executados tanto em pinturas em painel de madeira quanto em tela, não eram recentes e que certas práticas de sua conservação já haviam sido sedimentadas, baseadas em investigações plurais e não só químicas. As substâncias usadas como coberturas funcionavam não apenas como proteção contra o desgaste dos pigmentos, mas também como agentes estéticos, tonalizando ou amortizando cores e luzes. A pujança da cor despojada de seus atenuantes, traria à tona a questão da sobreposição da importância da matéria sobre àquela da imagem. Caso a limpeza removesse as coberturas escuras modeladoras, revelaria a crueza de suas matérias primas de confecção. Isso transformaria o status da obra, de objeto que concentra e sintetiza conceitos em sua imagem tal como se pretende que seja a arte, em artigo utilitário de artesanato, onde “a matéria triunfa”. A ideia de que a limpeza traria o original de volta, mostrando a obra como estaria assim que acabada, também foi um argumento rebatido por Brandi, pois não seria possível comprovar que a pintura permaneceu a mesma sob as coberturas. Dois técnicos da National Gallery concordaram que as discussões trazidas pelo artigo de Brandi foram muito enriquecedoras para o meio, mas continuaram afirmando sua discordância em relação às fontes da historiografia da arte. O apego aos textos, às descrições e aos motivos pelo uso das veladuras e dos vernizes era uma questão “puramente estética” e não técnica, que poderia induzir a um erro de abordagem sobre a unidade da imagem “original” na pintura. A pátina, a veladura e o verniz eram Giordana Rocha Nassetti 409 acréscimos feitos posteriormente, fosse pela ação do tempo ou pela ação de pessoas. Em momento algum a equipe consentiu sobre a possibilidade de haver uma ação do artista nesses acréscimos, desconsiderando essas práticas como técnicas conhecidas e/ou aceitas. A dupla recusou a possibilidade da transformação superficial de vernizes e veladuras em pátinas. Mas, na tentativa de refutar alguns posicionamentos, acabaram por confirmá-los, inclusive citando pela primeira vez no decurso da Polêmica o argumento de Plínio, O Velho, sobre a pintura de Apeles, algo que Gombrich discutirá intensamente no futuro. [...] O artigo do Professor Brandi mostra que suas maiores objeções às limpezas completas estão baseadas no medo de que parte das intenções dos artistas na forma da pátina, da veladura e do verniz sejam removidos ou danificados durante o processo. [...] É incorreto[...] referir-se à veladura como um ‘remédio secreto... dificilmente reconhecível’ e ‘mantida quase ilegítima e omissa da existência da pintura’. O emprego da veladura desde os tempos remotos é por certo universalmente reconhecido. Longe de ser o caso em que ‘o método é sugerido pela primeira vez em Armenino, ou seja, em 1587, a essência da técnica é de fato descrita por Plínio, na Academia de Lucca, no oitavo século e em muitos outros manuscritos anteriores ao século XVI. Muitas autoridades sequer assumem por completo a técnica da pintura a óleo desenvolvida a partir do uso de veladuras oleosas sobre a têmpera (a tão falada ‘técnica mista’). Brandi respondeu à dupla, três meses após a publicação do artigo. A postura geral dos técnicos parecia ser aquela de esperar que os clássicos da historiografia da arte fornecessem evidências claras e comprovadas na prática de seus conteúdos para que fossem levadas em consideração como fontes merecedoras de crédito. Brandi procurou demonstrar que é preciso fazer uma grande coleta de informações em textos muito variados para que se pudesse chegar a um posicionamento e, permanecer ciente de que ele poderia não ser comprovado de imediato ou que poderia ser contestado ao longo do tempo. Esta foi a última vez em que Brandi manifestouse na The Burlington Magazine sobre a questão dos acabamentos. Ele passou a trabalhar sobre o tema até que sua Teoria da Restauração fosse completamente formulada num livro que ele publicaria treze anos depois. Ernst H. Gombrich era assistente de pesquisa do Warburg Institute História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 410 quando a instituição foi transferida para Londres (no ano de 1934) e quando a guerra terminou em 1945, o historiador da arte foi nomeado seu pesquisador sênior. Como apoio a Brandi, Gombrich anexou algumas linhas com seus comentários ao artigo em resposta a Marclaren e Werner, em outubro de 1950. Seu texto trazia a citação curta de uma passagem de Plínio, o Velho, sobre as técnicas pictóricas do artista Apeles. Gombrich compreendeu que este seria o exemplo historiográfico mais antigo já citado pela dupla do museu sobre coberturas e acabamentos finais tonalizantes de que se tem notícia. Para ele, por conta da importância que os textos de Plínio tiveram, seria lógico pensar sobre a possibilidade da emulação de tais técnicas por artistas posteriores a Apeles. Ou ainda, aceitar que artistas que tivessem somente lido o trecho de Plínio tivessem procurado reobter o efeito descrito no texto em suas próprias obras. Contudo, Gombrich tinha plena consciência da dificuldade de se obter provas concretas disso, mas manteve-se firmemente agarrado à ideia da emulação da técnica de Apeles e foi o instrumento da historiografia ao qual mais recorreu durante o período em que argumentou sobre o assunto com a National Gallery. [...] A seguinte passagem do Historia Naturalis de Plínio (XXXV, 97) parece-me relevante para a presente discussão sobre a existência e o propósito dos vernizes coloridos no passado. Cito a partir da edição por E. Sellers, Londres, 1896, p. 133 (referente a Apeles). Todos têm lucrado com a sua inovação, embora um destes jamais possa ser imitado; ele usou para dar às suas pinturas, quando terminadas, uma veladura negra tão fina que, devolvendo a luz poderia suscitar uma cor [?esbranquiçada] e, ao mesmo tempo, uma proteção contra poeira e sujeira, só tornando-se visível se em inspeção mais próxima. Um dos propósitos principais desta, era impedir que o brilho das cores ofendesse os olhos - o efeito foi como se fossem vistas através de talco - e também, quando vistas à distância, aquelas que estavam vivas em excesso poderiam ser imperceptivelmente atenuadas. A passagem é um tanto obscura e talvez [esteja] corrompida, contudo o que menos importa é o que Apeles fez, e sim o que ele pensou para fazer. Embora eu não tenha examinado a evidência, parece improvável, em face disso, que essa descrição da técnica do proverbial Grande Pintor da Antiguidade no livro mais influente na arte, não deva ter deixado nenhuma impressão sobre as normas e práticas de artistas pós-medievais. Será que realmente sabemos Giordana Rocha Nassetti 411 o suficiente sobre essas coisas [?] [N]a verdade, podemos nunca saber o suficiente sobre o passado e dizer com garantia ilimitada que nenhum dos antigos mestres tentou seguir Apeles ao usar algum verniz escuro ‘para que o brilho das cores não devesse ferir os olhos’ e - se a tradução o permitir - ‘secretamente impor austeridade em tons estridentes demais’ [...] Em 1962, em seu livro Arte e Ilusão, Gombrich retomou o assunto e dedicou um capítulo inteiro à questão das coberturas de acabamento, à aparência das obras pictóricas e às concepções assumidas pelo museu. A National Gallery de Londres tornou-se agora o foco de discussão sobre o grau de ajustamento que estamos preparados a admitir quando contemplamos quadros antigos. Aventuro-me a pensar que essa questão seja frequentemente apresentada como um conflito entre os métodos objetivos da ciência e as impressões subjetivas de artistas e críticos. A validade objetiva dos métodos empregados nos laboratórios das nossas principais galerias está tão pouco em discussão quanto a boa-fé daqueles que os aplicam. Pode-se muito bem objetar, no entanto, que os restauradores, na sua função responsável e difícil, deveriam levar em conta não só a composição química dos pigmentos mas também a psicologia da percepção – a nossa e a das galinhas. O que queremos deles não é que restaurem pigmentos individuais à sua cor antiga, mas algo definitivamente mais delicado e ardiloso – preservar as relações. [...] Sempre que se dá início ao processo de limpeza, produz[-se] uma diferença semelhante na claridade do quadro, um inesperado gradiente que é como se uma luz banhasse a pintura. [...] Temo que faça parte da natureza das coisas o fato de o historiador desconfiar sempre do homem de ação nesses assuntos difíceis e delicados. Ficamos tão siderados quanto qualquer pessoa quando os nossos documentos desbotam ou os nossos quadros ficam sujos; mas, por outro lado, estamos cônscios da nossa ignorância sobre o passado. O historiador da arte assumiu como concretas as possibilidades de que o texto de Plínio, o Velho, tenha sido lido por algum mestre nos séculos seguintes e também que sua técnica possa ter sido copiada. Para ele esta é a cisão apresentada em toda a Polêmica, ou seja, um confronto de ideias sobre dois métodos diferentes de abordagem da imagem: a historiográfica e estética em comparação com aquela “cientificista” com a indicação de História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 412 referências completamente fora do alcance dos artistas do passado, como no caso do texto de Freud, por exemplo. Tal como Brandi, Gombrich considerava o indício textual do passado como algo que merecia crédito para a procura de outras citações semelhantes em outros escritos. Essas indicações seriam as balizas para a ação de limpeza e restauro, com as quais o profissional já partiria. Haveria, com isso, uma grande diferença de postura diante da obra e da abordagem na intervenção. Segundo Gombrich, as limpezas radicais, baseadas em outro conjunto de ideias, não levariam em conta esses conceitos e a National Gallery vinha demonstrando essa abordagem desde 1933. Além disso, o aspecto “original” da obra era mais um conceito do que um fato tangível. Para aqueles mais pragmáticos, que compreendiam que a obra deveria fornecer todos os dados necessários para seu entendimento, Gombrich sugeriu a consulta às gravuras copiadas das pinturas, como meio termo entre a fonte historiográfica e a fonte imagética. Ele atestou que as indicações feitas por Cesare Brandi treze anos antes na revista, procuravam justamente apresentar uma maior flexibilização nos estudos e mais alternativas aos parâmetros adotado pelos técnicos do museu. Mesmo as suas propostas, relativas ao tema de Plínio, deveriam ser encaradas como alternativas possíveis. Mas a equipe da National Gallery manteve sua contestação a toda e qualquer colocação, fosse ela sobre a existência de acabamentos tonalizantes, fosse sobre a possibilidade da emulação técnica de Apeles em Plínio, argumentando sempre da mesma forma: os textos da historiografia da arte não apontavam evidências claras sobre as coberturas. Para a visão cientificista, indícios não são provas incorruptíveis e podem ser contestadas e o que valia eram apenas a práticas de ateliê passadas adiante pelo ensino direto, desconsiderando a possibilidade de que os artistas pudessem pesquisar o passado procurando por referências escritas. Referências Bibliográficas Giordana Rocha Nassetti 413 LIVROS BRANDI, C. Teoria da Restauração. Tradução: Beatriz Mugayar Kühl; apresentação: Giovanni Carbonara; revisão: Renata Maria Parreira Cordeiro. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 261. FREUD, S. Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância. In: Cinco Lições de Psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos (1910). Edição Standard Brasileira de Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XI. Rio de Janeiro”: Ed. Imago, 2006. Pp. 37-83. GOMBRICH, E. Parte IV, Capítulo I: Da luz à tinta, Primeira Parte: Os Limites da Semelhança. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução: Raul de Sá Barbosa; revisão: Mônica Stahel. – 4ª. ed. – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. Pp. 48-54. REVISTAS BRANDI, C. The Cleaning Pictures in Relation to Patina, Varnishes and Glazes. The Burlington Magazine Publications Ltd. v. 91, n. 556, jul. 1949, Pp. 183-185. Disponível em <http://www.jstor.org/ stable/870047>. Acesso em 22 jun. 2013. BRANDI, C.; Gombrich, E. The Cleaning of Paintings in Relation to Patina, Varnish and Glazes. The Burlington Magazine Publications Ltd. v. 92, n. 571, out. 1950, Pp. 296-298. Disponível em <http://www. jstor.org/stable/870560>. Acesso em 22 jun. 2013. GOMBRICH, E. Dark Varnishes: Variations on a Theme from Pliny. The Burlington Magazine. v. 104, n. 707, fev. 1962, Pp. 51-55. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/873590>. Acesso em 22 jun. 2013. MACLAREN, N.; WERNER, A. Some Factual Observations about Varnishes and Glazes. v. 92, n. 568, jul. 1950, Pp. 189-192. Disponível em <http://jstor.org/stable/870432>. Acesso em 4 nov. 2013. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 414 arquivos e fontes Do pecado da gula ao Douceur de Vivre: Fontes escritas para uma natureza morta Angela Brandão Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A divisão da pintura em gêneros, como classificação temática, surge no pensamento teórico artístico do século XVII, no âmbito das Academias, especialmente fracesa e italiana, e se fixa de modo cada vez mais ortodoxo até o século XIX, tornando-se uma verdade quase incontestável. Esta divisão da pintura em gêneros não foi apenas uma organização teórica e pedagógica da pintura, mas representou também uma divisão hierárquica. Os gêneros de natureza morta ou paisagem foram considerados inferiores se comparados ao retrato e à pintura de história. A natureza morta se tornou, portanto, o mais ínfimo dos gêneros ao excluir a figura humana e representar flores, alimentos e objetos. Como se sabe, a representação dos alimentos na arte remontava às tradições da Antiguidade, especialmente manifestada nos pisos em mosaicos e pinturas parietais romanas, em espaços das vilas dedicados às refeições. Representações de peixes, frutas, pães e mesmo ossinhos de carnes já digeridas cumpriam, ao mesmo tempo, uma função decorativa e de definir a destinação daquele espaço da casa, de um lado, e a função simbólica de manifestar a opulência daquela morada. Durante a Idade Média, de modo geral, o alimento não fora representado “isolado”, mas quase sempre como parte de uma cena de refeição, como as Santas Ceias. O Renascimeto traria um novo interesse pela representação da natureza de modo imitativo, na arte, e um olhar que se tornava científico ao representar gêneros alimentícios. No final do século XVI, portanto, localiza-se o que se poderia chamar de “invenção da natureza-morta” como gênero para a pintura, fenômeno associado tanto à emblemática cesta de frutas de Michelangelo Merigi da Caravaggio quanto aos “bodegones” de Sanchez Cotán1. 1 GRIEGO, Allen J. The Meal. Themes in Art. London, 1992. Pp. 9-50 415 Um interesse mais detido pelos comestíveis e por sua representação na pintura teria surgido na mesma medida em que o alimento deixasse de ser um elemento associado à gula e ao prazer terreno como algo negativo e se transformasse, gradativamente, em algo positivo, parte de uma nova possibilidade de exercício espiritual, que incluía o desenvolvimento dos sentidos, como veremos adiante. Numa das salas da Casa de Padre Toledo, em Tirandentes, encontramos um forro com pinturas de naturezas-mortas (fig.1). O cômodo, certamente destinado a abrigar as refeições solenes da casa, apresentava aos olhares dos convivas um raro e apetitoso exemplar de pinturas deste gênero no Brasil Colonial. Trata-se de uma pintura a têmpera e cola em cinco painéis, sobre madeira, emoldurados pela divisão estrutural do forro em cinco gamelas, com quatro trapézios laterais e um elemento central, quadrangular. Os espaços predominantemente vazios contém elementos de decoração rococó, rocalhas e flores em tons avivados pelo recente restauro2, azuis, verdes e vermelhas, formando medalhões. Ao centro de cada um dos cinco medalhões, estão representados recipientes com frutas: fatias de melancias ao centro (fig.2); e, nas laterais: uvas, pêssegos, ameixas ou jabuticabas, e romãs ou abacaxis3. Nada sabemos a respeito da autoria destas pinturas. Poder-se-ia, no entanto, aventar uma hipótese, ou ao menos, estabelecer um esforço de atribuição, comparando as pinturas realizadas em outra obra importante da mesma cidade, a Igreja Matriz de Santo Antônio, onde trabalharam pintores como João Batista das Rosas (Painéis Laterais do Altar Mor Santa Ceia e Bodas de Canãa) ou as pinturas de Manuel Victor de Jesus feitas para o órgão em 1798 e o quadro do Batistério. Mas estudos documentais e VELOSO, Bethania Reis et allii. Crônicas de um Processo: Casa do Padre Toledo e os Históricos de suas Restaurações. In DANGELO, A.G.D. et allii (org.) Museu Casa Padre Toledo: memória da restauração artística e arquitetônica. Belo Horizonte: Fundação Rodrigo Mello Franco Andrade, EA, UFMG, 2012. Pp. 78-90 2 Por sugestão do Prof. Amilcar Torrão Filho, as frutas representadas poderiam ter relação com o livro Frutas do Brasil: numa nova, e ascética Monarchia, consagrada à Santíssima Senhora do Rosário. Fac-símile da edição de Lisboa: António Pedroso Galrão, 1702. Apresentação de Ana Hatherly. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002. de Frei Antonio do Rosario (1647-1704). “Por meio das sedutoras imagens das exóticas frutas brasileiras, Frei Antonio do Rosário propõe-se ensinar e propagar a essência da filosofia cristã, com seus preceitos morais”. BIRON, Berty R. R. Frutas do Brasil: uma alegoria do novo mundo. in Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n° 3, Novembro de 2009. Pp. 47-57. 3 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 416 análise comparativa formal ainda deverão ser realizados para que se chegue a uma mínima possibilidade de atribuição de autoria para as pinturas da Casa de Padre Toledo. As pinturas de natureza-morta não foram comuns no período colonial brasileiro, cujos esforços artísticos se dedicaram sobremodo à arte religiosa. A existência de uma pintura de forro no espaço civil, mas ao mesmo tempo religioso – por se tratar da nobre morada de um representante do clero ilustrado nas Minas Gerais do Século XVIII – sugere algumas reflexões. Qual a relação destas imagens com a presença de um livro de receitas numa das bibliotecas mais numerosas, pertencente a outro importante representante do mesmo período4? Por que o Padre Toledo escolheria um tema aparentemente profano para decorar sua sala de jantar, em lugar de uma temática religiosa relacionada à alimentação, como a Santa Ceia? Por que um espaço – ao mesmo tempo privado e público, uma vez que a casa era cenário de reuniões políticas entre as que levariam à Inconfidência Mineira – fora decorado com naturezas-mortas, exaltando a beleza e uma certa “sedução” do olhar em direção ao “gustativo”, se o pecado da gula ainda aparecia como algo prescrito pela legislação que regia o clero naquele momento? Qual a relação destas imagens com as demais pinturas que decoram a casa? Ensaiaremos esboços de respostas provisórias. No estágio atual desta investigação não pudemos ainda analisar os títulos dos livros no rol dos bens confiscados do Padre Toledo, arrolados nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira5. Sabemos que ali constavam cento e cinco volumes de vários autores, entre grandes e pequenos, a saber, noventa e nove, com capas de pasta, e seis com capas de pergaminho. No entanto, procuramos observar a presença de um livro de receitas na biblioteca de outro representante do clero, no mesmo período, em Minas Gerais, para traçar um parelelo provisório para construir nossa hipótese. Ao analisar o inventário de morte do quarto bispo de Mariana, portanto, encontramos entre seus livros, um volume dedicado à culinária6. VILLALTA, Luiz Carlos. Os Clérigos e os Livros em Minas Gerais da Segunda Metade do Século XVIII. Acervo. Rio de Janeiro. Vol. 8 – n I-II, p. 19-52, jan.-dez, 1985. pp.1952. Neste texto, Villalta analisa quantitativa e qualitativamente as ‘livrarias’ dos clérigos em Minas Gerais da segunda metade do século XVIII a partir do estudo dos inventários. 4 IHGB – Rio de Janeiro. Autos de sequestro em bens do vigário Carlos Corrêa de Toledo e Melo. 1789. [DL 101.3] 5 Inventário de Dom frei Domingos da Encarnação Pontével , 1793, armário I, 4ª gaveta, livro. Arquivo Episcopal da Arquidiocese de Mariana. 6 Angela Brandão 417 Dom Frei Domingos da Encarnação Pontével, quarto bispo de Mariana, assumiu a diocese em 1780. A julgar por sua biblioteca7, uma das maiores do período colonial brasileiro, foi um erudito, cujas leituras passavam da filosofia à teologia, de tratados de moral e retórica, da história à geografia. Encontramos ali um volume dedicado à culinária”: o Cozinheiro Moderno8, um dos primeiros livros de receitas publicados em língua portuguesa, pode ser compreendido como exemplo da mudança na concepção dos hábitos alimentares. Editado em Lisboa em 1780, considerado como o primeiro livro de culinária em língua portuguesa a trazer regras e valores da cozinha de corte francesa, foi escrito por Lucas Rigaud. O autor fora cozinheiro da corte de Dom João V e trazia sua experiência de trinta anos de ofício pelas principais cortes da Europa: Paris, Londres, Turim, Nápoles e Madri. Tratava-se de um manual culinário, um receituário que apresentava a prática e a teoria na arte de cozinhar e surgia, talvez, da intenção de Rigaud de apresentar uma obra em oposição a sua precedente Arte da Cozinha9, de Domingos Rodrigues de 1683. O livro de Rigaud permite o estudo do que se entendia como “cozinheiro moderno” e da importância atribuída ao alimento naquele período10. Além da presença de um exemplar muito atualizado do ponto de vista da mudança da compreensão do sentido dos alimentos, o que também chamou a atenção, no entanto, na leitura do inventário de Pontével, foi a presença de um grande aparato de mesa e de utensílios de alimentação: chocolateiras, fontes de chá, chaleiras, cafeteiras, bules de cafés, várias peças de louças da índia azuis e vermelhas, toalhas de mesa e guardanapos, pratos para guardanapos, vidros lavrados, vários utensílios de prata, cobre e estanho. VILLALTA, Luiz Carlos. O Diabo na Livraria dos Inconfidentes. In NOVAES, Adauto. Tempo e História. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Companhia das Letras,1992. Pp. 372-375. “(...) nela se notava a proeminência das ciências sacras sobre as ciências profanas: logramos identificar 251 obras na primeira seção e 76 na última, respectivamente 60% e 18%, ficando o restante (85 obras, 21%) sem classificação em virtude da falta de dados completos sobre as mesmas. Dentre as ciências sacras, além disso, constatamos igualmente a maior presença de livros de teologia e liturgia (...).” 7 RIGAUD, Lucas. Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha. Lisboa: Colares, 1999. 8 9 RODRIGUES, Domingos. Arte da Cozinha. 1683. Lisboa: Colares, 2001 YANG, Klency Brito Kakazu e DOMENECH, Fernanda. Relatório Final de Iniciação Científica PIBIC- CNPq 2013-2014. Arte efêmera nos séculos XVII e XVIII: a estética da alimentação. Orientação Angela Brandão. Departamento de História da Arte, UNIFESP. 10 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 418 A importância dada aos alimentos – um consumo do chá, café e chocolate e ainda a descrição do estoque de alimentos (azeitonas, barris de azeite, carga de bacalhau, licores) refletia, como o livro de culinária constante em sua biblioteca, O Cozinheiro Moderno, um novo sentido dado à culinária nas cortes do século XVIII – não mais definitivamente um conjunto de preceitos dietéticos e curativos, mas o deliberado requinte, o prazer e o desfrute da mesa e dos alimentos. Durante muito tempo dependente da medicina, a cozina acabou por conseguir se libertar dela lentamente e sem ruído, no decorrer dos séculos XVII e XVIII. (...) Tendo deixado de ser incluída na seção de saúde – na qual, por rotina continuava a ser classificada pelos bibliófilos – a arte culinária não se colocou, em primeiro lugar, a serviço da gula – pecado capital – mas a serviço do bom gosto, como todas as belas artes11. O entendimento de uma modificação no sentido do alimento e da refeição de algo inferior, associado à gula, para algo superior, relacionado à arte de viver e receber bem, modificação que pode ser percebida pela leitura do livro Cozinheiro Moderno e sua sintomática presença na biblioteca de um importante representante do clero, naquele momento, fornece elementos para compreender a pintura de naturezas-mortas no teto da sala de jantar da casa de Padre Toledo. No entanto, ainda parece inquietante a presença das frutas apresentadas aparentemente “por si mesmas”, sem qualquer sentido religioso imediato. O vigário Carlos Corrêa de Toledo e Melo, por sua vez, nascera na Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté, Capitania de São Paulo, em 1731. Foi designado vigário, em 1777, da Matriz de Santo Antônio, e presbítero do hábito de São Pedro. Por seu envolvimento na Inconfidência Mineira, foi preso aos 59 anos, em 1789. Expatriado para Portugal, permaneceu retido na Fortaleza de São Julião, até ser transferido para uma prisão eclesiástica em Lisboa, onde morreu em 1803. A casa em que residiu é considerada como um dos mais importantes edifícios civis da arquitetura no Brasil Colonial, com aproximadamente 800m2 de área construída sobre o plano FLANDRIN, Jean-Louis. Da dietética à gastronomia ou a liberação da gula. In FLANDRIN, J.L. e MONTANARI, M. História da Alimentação, São Paulo: Estação Liberdade, 2008. P. 687. Ver BRANDÃO, A. O Uso e o Luxo: as artes decorativas num inventário do século XVIII. Anais do II Colóquio Internacional de História da Arte e da Cultura. Juiz de Fora, UFJF, 2012. 11 Angela Brandão 419 elevado do Largo do Sol. Embora a documentação primária não permita uma datação segura, a análise estética e histórica indicou que se trata de um edifício de segunda década da segunda metade do século XVIII, cujas primeiras notícias documentais datam de 1777. Ali residiu primeiramente o Cônego Luiz Vieira da Silva, que se tranferiria para Vila Rica com a chegada do vigário Carlos Correia Toledo e Melo. Não há, portanto, fontes precisas que informem a data da construção deste solar térreo, acrescido posteriormente de pequeno torreão ou mirante, um anexo de dois andares, o “sobrado místico” como é mencionado nos Autos da Devassa. Este anexo foi construído por encargo do Padre Toledo, durante os doze anos em que viveu na casa, para, talvez, dotar-lhe de um sentido monumental e dar-lhe um aspecto assobradado. As pinturas dos forros, bastante visíveis após o cuidadoso restauro, e as pinturas das paredes (que hoje se podem ver apenas em fragmentos) não têm autoria confirmada12. No sequestro de bens do Vigário Carlos Correia de Toledo, podemos encontrar todos os ingredientes necessários para festas ou refeições solenes, além do mobiliário e dos aparatos de mesa, um escravo cozinheiro e dois músicos: Doze cadeiras de cabiúna, com assento de tripé carmesim; uma mesa grande de cabiúna (...)três dúzias de pratos finos da índia; doze copos de vidro, entre grandes e pequenos; três bules de louça da índia; duas terrinas de louça de Lisboa; sete charões de louça de Lisboa, ou pratos compridos, entre pequenos e grandes; quatro pratos de estanho grandes (...) uma dúzia de xícaras e outros tantos pires de louça da índia (...) Leandro Angola, cozinheiro; José Mina, que toca trompa; Antônio Angola, que toca rabecão13. Embora se possa compreender a presença das pinturas de natureza morta no forro da sala de jantar de um personagem que pertencia ao clero ilustrado, um “homem de luzes” – como foi designado nos Autos da Devassa14, e que compusera em torno de si um ambiente religioso e civil DANGELO, A.G.D. et allii (org.) Museu Casa Padre Toledo: memória da restauração artística e arquitetônica. Belo Horizonte: Fundação Rodrigo Mello Franco Andrade, EA, UFMG, 2012. Pp. 35, 78-81. Fundação Rodrigo Melo de Franco Andrade. https://www. ufmg.br/frmfa/museu-padre-toledo/ acesso em 21 de novembro de 2014. 12 IHGB – Rio de Janeiro. Autos de sequestro em bens do vigário Carlos Corrêa de Toledo e Melo. 1789. [DL 101.3] 13 Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Vol. 7. Brasília, Belo Horizonte. Imprensa Oficial de Belo Horizonte, 1982. 14 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 420 próprio do século XVIII, marcado por um certo “douceur de vivre”, cabe lembrar o significado ainda depreciativo que se atribuía, do ponto de vista da legislação canônica, ao pecado da gula. As Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia foram ordenadas pelo quinto arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide. Reunirase o sínodo, na cidade de Salvador, em 1707, a fim de confirmar e adequar os preceitos do Concílio de Trento às terras brasileiras. Deste Conclave resultaram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, elaboradas em 1707 e publicadas em Lisboa em 1719, e em Coimbra, em 172015. O documento foi reimpresso em Lisboa, em 1765, e em São Paulo, em 1853. As Constituições eram formadas por cinco livros e 1318 títulos que contemplavam tanto as questões dogmáticas, a doutrina, a administração religiosa, o funcionamento do culto, quanto as atitudes frente às “coisas sagradas”, o comportamento dos religiosos e dos fiéis no cotidiano, os procedimentos do clero e instituía as sanções determinadas em caso de descumprimento de seus preceitos. O livro das Constituições, como legislação do direito eclesiástico, deveria obrigatoriamente constar entre os documentos das Sés catedrais e Cabidos, em todas as Igrejas paroquiais e curadas, assim como deveriam possuí-lo também o provisor, o vigário geral, desembargadores, o promotor, vigário da Vara e advogados, além do Meirinho Geral e o escrivão da Câmara. Foi determinado que os párocos deveriam ler trechos específicos em voz alta aos fiéis em certa ocasiões, para que tomassem conhecimento dos preceitos a serem seguidos16. Assim prescrevia o artigo 464 das Constituições Primeiras: É cousa indecente ao estado Clerical (...) andarem os Clérigos por tavernas e comerem e beberem nellas, (...) ordenamos e mandamos a todos os Clérigos de Ordens Sacras, que não entrem em vendas, estalagens, tavernas, e outras casas públicas a comer, ou beber, exceto quando forem de caminho, e não tiverem outra casa (...)17” Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e reverendíssimo senhor d. Sebastião Monteiro da Vide... 1707. São Paulo: Typographia Antonio Lousada Antunes, 1853. OLIVEIRA, M.R.A. de. O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naif, 2003 15 LOTT, Myriam Moura. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Texto apresentado no VII Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões, realizado na Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte – MG. 2005. P. 1 16 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e reverendíssimo senhor d. Sebastião Monteiro da Vide... 1707. São Paulo: Typographia Antonio Lousada Antunes, 1853. P. 183. 17 Angela Brandão 421 Lia-se no artigo 465: Se alguns Clérigos de Ordens Sagradas forem muito destemperados em seu comer, e beber, de maneira em que se turvem do juízo, ou seja em estalagens, tavernas, casas públicas ou fora dellas ou em suas próprias casas serão pela primeira vez admoestados, e castigados com a pena pecuniaria, que parecer justa. E não se emendando serão suspensos do Offício (...) por seis mezes e se não se emendarem se procederá contra elles com maiores penas como parecer justiça18 O artigo 466 prescrevia: E, outrossim, lhes proibimos que em suas casas não façam banquetes ou bodas ilícitas, salvo sendo de seus parentes. E se lhe encommendamos muito que nas licitas, honestas e graves em que se acharem, se hajão com muita moderação e modestia dando em tudo exemplo, como de suas pessoas, e estado se deve esperar19. As Constituições Primeiras conservavam, por certo, dentro dos parâmetros do direito canônico pós-tridentino a ser aplicado no Brasil, uma visão negativa da gula, associada ao pecado. No entanto, o comportamento do clero ilustrado nas Minas Gerais de segunda metado do século XVIII apresentava-se mais adequado à modernização dos significados da alimentação, resultante de um longo processo que permite compreender a importância dos refinados utensílios de mesa nos inventários de alguns clérigos; a presença de um livro de culinária como o Cozinheiro Moderno na biblioteca do quarto bispo de Mariana e as pinturas do forro da sala de jantar da casa do vigário Carlos Corrêa Toledo e Melo. Tal processo de “civilização do apetite” que se desenvolvera desde o século XVI20, caraterizou-se por uma progressiva “desculpabilização católica dos prazeres da mesa” e baseava-se nas ambiguidades mesmas da Gula. “Ao escolher apenas um dos significados da gula, os manuais de confissão conseguem envergonhar o glutão e o bêbado sem condenar a 18 Ibid. Idem 19 Ibid. Pp. 183-184. Nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, a terceira regra é “ a abstinência nos alimentos, para evitar desordem, pode ter-se de duas maneiras: uma, habituando-se a comer alimentos ordinários, a outra, tratando-se de delicados, em pequena quantidade.” LOYOLA, Inácio de. Exercícios Espirituais. São Paulo, Loyola, 2002. 20 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 422 honestidade do gourmet”, afirmou Quellier em seu livro “Gula: história de um pecado capital”. Para o autor, “os ensinamentos da Igreja conduziram a uma gastronomia da boa mesa: o prazer pela boa comida é apenas aceito a partir do momento em que respeita as regras, à frente das quais figuram as boas maneiras à mesa (...) Desde os séculos XV e XVI, o culto à boa comida se desenvolveu na Itália e, a partir do século XVII a “gula honesta” associada ao surgimento do “gourmet honesto e sofisticado” se impõe como componente essencial do modelo cultural francês21.” Mas, para além de uma reflexão em torno da história da alimentação e da gula, as pinturas de natureza-morta da Casa de Padre Toledo sugerem uma complexa gama de significados. Seria preciso lembrar-se da inevitável carga simbólica da iconografia pós-tridentina; da vigência da linguagem codificada ao largo dos séculos XVI e XVII; do caráter emblemático dos atributos dos santos; da utilização de elementos icônicos: cores, frutas e flores. A representação da natureza fora, em diferentes momentos da história da pintura, marcada por concepções simbólica (a água, a flor, as frutas). O mundo, como a escritura cifrada de Deus, faz questionar todo aparente realismo puro da pintura. A cultura do barroco foi, como se sabe, fortemente emblemática. Mesmo com um certo esvaziamento simbólico na arte rococó, seria ilusório crer num aparente puro realismo, numa preocupação somente com o natural: o objeto real esconderia, sob sua vulgar aparência cotidiana, um sistema de referências e alusões. As pinturas de natureza-morta da casa de Padre Toledo poderiam, portanto, ser entendidas como um elogio ao valor da modéstia, da frugalidade, do ascetismo e da simplicidade; como um elogio à vida contemplativa; como uma reflexão sobre o efêmero e a vaidade: as coisas do mundo são perecíveis, só o espírito é eterno. Poderia ser aventada, ainda, a relação com os cinco sentidos: especialmente “o gosto”. O tema dos cinco sentidos foi aceito a partir da cultura barroca, quando se apresenta sua “boa utilização”. O uso dos sentidos, como uma experiência não necessariamente ligada ao pecado, mas como um caminho de conhecimento e aprimoramento espiritual compunha parte dos exercícios de Inácio de Loyola e que se estendem sobre a sensibilidade barroca22. QUELLIER, Florent. Gula: história de um pecado capital. São Paulo, SENAC, 2011.pp. 100-101, 105. 21 LOYOLA, Inácio de. Exercícios Espirituais. São Paulo: Loyola, 2002. Exercício 69 – “Quarto ponto, gostar, com o gosto, coisas amargas, assim como as lágrimas, tristeza e o 22 Angela Brandão 423 Concluimos, provisoriamente, este primeiro conjunto de respostas, aqui apenas esboçadas, para iniciar um estudo mais detido sobre as pinturas no forro da sala de jantar da casa onde viveu o abastato e culto Inconfidente, considerando as fontes escritas que a ela podem ser associadas indiretamente, quais sejam: dois inventários de bens; um livro de receitas e a legislação canônica então vigente. No entanto, não se pode deixar de observar, de saída, a relação destas representações de frutas da sala de jantar com o tema do grande salão nobre da mesma morada. Trata-se das pinturas na sala principal que representam os cinco sentidos, a partir de cenas da mitologia clássica. O paladar é representado com uma personagem feminina, Bacante, com os seios à mostra, que oferece a taça de vinho a Baco, ambos sentados sob uma videira. (fig. 3) Podemos, com isso, supor uma interpretação que relacione as pinturas de natureza-morta da Casa de Padre Toledo e uma base documental não diretamente relacionada com as mesmas, porém capaz de fornece subsídios para compreender o sentido do “comer” em seu tempo. Podemos acrecescentar, ainda, que houvesse uma relação iconográfica entre as alegorias dos cinco sentidos – especialmente o paladar, pintadas no salão principal, e as pinturas da sala de jantar, como um refinado convite a percorrer a trama complexa que articularia o programa decorativo da casa, levando os convidados, de um cômodo ao outro, dos prazeres do pensamento em direção ao desfrute da boa mesa. Referências Bibliográficas BIRON, Berty R. R. Frutas do Brasil: uma alegoria do novo mundo. in Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n° 3, Novembro de 2009. Pp. 47-57. DANGELO, A.G.D. et allii (org.) Museu Casa Padre Toledo: memória da restauração artística e arquitetônica. 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Pintor desconhecido, segunda metade do século XVIII. Pintura a têmpera e cola sobre madeira. Forro da Sala de Jantar, Casa de Padre Toledo. Tirandentes – MG. Foto A. Brandão. Angela Brandão 427 Figura 2 Melancias. Medalhão central. Pintor desconhecido, segunda metade do século XVIII. Pintura a têmpera e cola sobre madeira. Forro da Sala de Jantar, Casa de Padre Toledo. Tirandentes – MG. Foto A.Brandão História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 428 Figura 3 Alegoria do paladar. Baco e Bacante. Pintor desconhecido, segunda metade do século XVIII. Pintura a têmpera e cola sobre madeira. Forro da Sala Principal, Casa de Padre Toledo. Tirandentes – MG. Foto A. Brandão. Angela Brandão 429 arquivos e fontes Relatos sobre el arte moderno en las bibliotecas argentinas. Pistas halladas en el archivo y la biblioteca Antonio Vigo Berenice Gustavino Doctora en Historia y crítica del arte. Facultad de Bellas Artes, UNLP, Argentina Numerosos libros extranjeros de historia, crítica y teoría del arte moderno integran las bibliotecas y participan del universo intelectual de artistas y críticos argentinos hacia los años sesenta. Esos conjuntos permiten identificar las lecturas privilegiadas, su procedencia y su representatividad de las tradiciones intelectuales extranjeras. La producción de los autores en contacto con esos aportes hace posible detectar cómo las nociones y categorías facilitadas por esa bibliografía participaron en los modos de pensar el arte y la historia del arte del siglo XX en Argentina. Los años comprendidos entre la segunda posguerra europea y la eclosión del experimentalismo neovanguardista ponen en escena algunas transformaciones que llevarán a revisar las certezas provistas de manera bastante estable por la narrativa histórica y la crítica del arte moderno. El caso que comento permite abordar la manifestación de esas modificaciones en un contexto periférico y tradicionalmente receptor de los grandes relatos elaborados en los centros. Esta situación excéntrica no redujo a los argentinos necesariamente al rol de “buenos lectores” pasivos y acríticos. Al contrario, algunos de ellos transformaron activamente las versiones canónicas de la modernidad artística, atentos a los recorridos divergentes de la historiografía de la primera mitad del siglo. La circulación de la literatura extranjera especializada de la primera parte del siglo XX es profusa entre los argentinos. En este conjunto es evidente la preeminencia de la literatura francófona. Tanto en las listas de referencias bibliográficas como en las citas, notas y comentarios de los textos de Julio E. Payró, Jorge Romero Brest, Cayetano Córdova Iturburu, Ángel Osvaldo Nessi y otros, abundan los títulos de Marcel Brion, Jean Cassou, Raymond Cogniat, Pierre Courthion, Bernard Dorival, Élie Faure y René Huyghe. Esa bibliografía es leída principalmente en lengua original. Los autores argentinos dominan el francés -y otras lenguas- como resultado 431 de su educación formal, y de los viajes y estadías en Europa. Aunque en la década del treinta Francia no renueva el envío de profesores a los países del sur del continente1 y se verifica una pérdida de su predominio general, el francés continúa integrando los programas de las escuelas argentinas hasta 19422 y se sigue estudiando en el seno de las élites, donde se lo considera una lengua superior, un elemento de discriminación y de distinción cultural. Esta familiaridad permite acceder a una literatura extranjera que no cuenta, en general, con versiones en español. Los argentinos no son sólo lectores privados de esta bibliografía sino que participan activamente de la industria del libro como autores, traductores, editores y redactores de prefacios. Romero Brest, por ejemplo, codirige la editorial Argos entre 1946 y 1952, puesto que le permite publicar obras no disponibles hasta entonces como Los orígenes del arte gótico, de Louis Courajod (1946); Laocoonte, de Lessing (1946); Cartas, de Nicolas Poussin (1947); y Las obras maestras de la pintura griega, de Georges Méautis (1948). Payró, por su parte, traduce obras de André Lhote y Lionello Venturi, mientras que Damián Bayón traduce ensayos de André Malraux y Pintura y sociedad de su maestro francés, Pierre Francastel3. Los argentinos cosmopolitas y políglotas importan en su idioma, para darlas a conocer, las obras de la modernidad central. Operan así como seleccionadores o gate-keepers, en tanto agentes que intervienen en el desplazamiento de una obra de una lengua a otra por medio de la traducción4; son los passeurs5 entre el universo de referencias europeas y la crítica y la historia del arte “en español”. La traducción les permite acrecentar el propio patrimonio mediante la anexión y la apropiación de un patrimonio extranjero6. Denis Rolland, La crise du modèle français. Marianne et l’Amérique Latine. Culture, politique et identité, Rennes, Presses Universitaires de Rennes. Institut Universitaire de France, 2000, p. 229. 1 2 Ibidem, p. 233. André Malraux, Las voces del silencio. Visión del arte, Buenos Aires, Emecé, 1956, traducción de Bayón y Elva de Lóizaga, y Pierre Francastel, Pintura y sociedad. Nacimiento y destrucción de un espacio plástico. Del Renacimiento al Cubismo, Buenos Aires, Emecé Editores, 1960. 3 Pierre Bourdieu, « Les conditions sociales de la circulation internationale des idées », in Actes de la recherche en sciences sociales. « La circulation internationale des idées », nº 145, diciembre 2002, pp. 3-8. 4 5 Denis Rolland, L’Amérique latine et la France: acteurs et réseaux d’une relation culturelle, Rennes, Presses universitaires de Rennes, 2011, p. 12. 6 Pascale Casanova, La république mondiale des lettres, Paris, Éd. du Seuil, 2008, p. 332. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 432 Esta bibliografía está formada por el trabajo de críticos, historiadores, periodistas, conservadores y funcionarios franceses o francófonos, que desempeñan muchas veces esos roles a la vez. Muchos de ellos estaban en actividad antes de la Segunda Guerra y, durante la posguerra, dirigen las principales instituciones artísticas francesas. Todos elaboran balances, panoramas o historias del arte moderno o contemporáneo previo a la guerra y defienden posiciones conservadoras y nacionalistas originadas en los años treinta7 o antes8. Estos autores se preocupan por aquellas propuestas historiográficas posteriores a la guerra que “no hacen pasar el arte moderno por París” e instalan “una doxa de la historiografía de la modernidad a la francesa” por medio de la escritura y de sus funciones en las instituciones9. Así, elaboran una historia del arte moderno basada en la convicción de la preeminencia de su país, insistiendo sobre los valores de “medida” y “contención” de la pintura francesa que se distinguiría así de los “excesos” de la pintura alemana, por ejemplo. Una exposición como Les sources du XX siècle, organizada por Cassou en 1961 en el Museo de Arte Moderno de París, completa y pone en escena esta historia del arte moderno “a la francesa”. Este evento trazaba una historia de la modernidad que se había vuelto clásica: orígenes en el posimpresionismo, más precisamente en Cézanne y Seurat, subestimación de Degas, sobreestimación de Renoir, articulación fundamental del fauvismo con el cubismo, ninguna mención de los ready mades de Duchamp...10. Los argentinos no son indiferentes a esta concepción historiográfica; siguen este modelo cuando escriben sus propias historias del arte europeo y lo observan constantemente al escribir la historia del arte local. Payró, por ejemplo, considera a Van Gogh, Cézanne, Gauguin y Seurat como “los héroes del color” y a los fauves como “la segunda línea heroica” en las Leeman, R. Le critique, l’art et l’histoire: de Michel Ragon à Jean Clair. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010, págs. 48-52. 7 8 Michaud, E.: “Nord-Sud. Du nationalisme et du racisme en histoire de l’art”, en Histoire de l’art: une discipline à ses frontières. Paris: Hazan, 2005, págs. 49-84. 9 Leeman, R. Op. Cit.: pág. 103. 10 Ibid: pág. 107. Berenice Gustavino 433 búsquedas pictóricas modernas11; y explica la evolución de la pintura de los últimos cincuenta años a partir de la sucesión “del postimpresionismo, fauvismo, cubismo, futurismo, orfismo, purismo, expresionismo, surrealismo y todas las formas del arte figurativo(…).12”. Fig. 1. En el conjunto de las bibliotecas de los autores argentinos, la de Edgardo Antonio Vigo representa un caso particular. En primer lugar, y a diferencia de los autores mencionados, Vigo es un artista. Sin embargo, su producción como crítico, poeta, profesor y editor, de la que dan cuenta los documentos conservados en su archivo y biblioteca, revela que su vínculo con la literatura especializada no se restringió al acopio y a la lectura privada sino que, al contrario, adoptó una forma apropiativa y productiva que alcanzó, en algunos casos, la circulación social13. A fines de los años cincuenta, su biblioteca reúne libros adquiridos en La Plata y Buenos Aires, y otros traídos probablemente de su primer 11 Esta adjetivación es tomada por Payró de André Salmon. Payró, Julio E., Cézanne, Gauguin, Van Gogh, Seurat. Los héroes del color y su tiempo. Buenos Aires: Nova, 1951. Payró, Julio E. Picasso y el ambiente artístico-social contemporáneo. Buenos Aires: Nova, 1960. P. 7. Sobre este tema ver Wechsler, D., “Julio Payró y la construcción de un panteón de ‘héroes’ de la ‘pintura viviente’”. Estudios e Investigaciones, Boletín del instituto de Teoría e Historia del Arte “Julio E. Payró”, n°10, 2006. 12 Edgardo Antonio Vigo (1928-1997) fue un artista, crítico y editor nacido en La Plata, Argentina. Su obra plástica incluye grabados, objetos y acciones. Desde 1958 redacta columnas de crítica de arte para el diario El Argentino. A lo largo de su carrera edita varias revistas experimentales como WC, Diagonal Cero y Hexágono ’71 en las que reúne poesía, grabado y crítica de arte. En esos proyectos editoriales innova en la puesta en página, los materiales y formatos. En 1967 funda el “Museo de la xilografía”, una organización ambulante que reúne grabados donados por distintos artistas que se conservan en cajas y valijas y son expuestos en lugares no convencionales. Vigo fue un pionero de la poesía visual y del arte correo junto a otros artistas de la región como el chileno Guillermo Deisler y el uruguayo Clemente Padín. Durante su carrera, Vigo colabora con el Grupo Sí y con el Centro de Arte y Comunicación (CAYC). Sus acciones, a las que denomina “señalamientos”, comprenden elementos conceptuales y cuestionan las nociones tradicionales de obra de arte, artista y espectador. Vigo es un artista comprometido con la situación política del país, en particular durante la dictadura militar (1976-1983). Uno de sus hijos es una de las personas desaparecidas durante ese régimen. Para el análisis de la obra de Vigo y de su actividad como editor ver los siguientes trabajos: Dolinko, S., Arte plural: el grabado entre la tradición y la experimentación 1955-1973. Buenos Aires: Edhasa, 2012; Bugnone, A., La revista Hexágono ’71: 1971-1975. La Plata: Universidad Nacional de La Plata; Centro de Arte Experimental Vigo, 2014; Davis, F., Edgardo-Antonio Vigo. Xilografías y ediciones (1962-1972). Buenos Aires: Museo del Grabado, 2004, y “‘Prácticas ‘revulsivas’. Edgardo Antonio Vigo en los márgenes del conceptualismo”. En Freire, C. y Longoni, A. (eds.) Conceitualismos Do Sul/ Conceptualismos Del Sur. Sao Paulo: Annablume, MAC USP, AECID, 2009. Pp. 283-98; entre otros. 13 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 434 viaje a Europa en 1953. Su colección está por entonces en construcción: en 1958 Vigo tiene recién 30 años, ha viajado una sola vez a Europa y lleva pocos años en la docencia. Por otro lado, acaba de comenzar su actividad como crítico de arte en las páginas del diario platense El Argentino y de fundar WC, la primera de sus revistas experimentales. Vigo es un gran lector, según demuestran los rastros de algunas prácticas de lectura conservados en su biblioteca: lee los libros que colecciona, sus volúmenes están prolijamente cortados y algunos de ellos fueron subrayados con diferentes colores. Sus intereses incluyen el desarrollo del arte moderno, sus diferentes estilos y movimientos. Entre los libros en francés de su biblioteca se cuentan Cézanne de Dorival (Paris, Pierre Tisné, 1948) y Picasso, étude biographique et critique de Maurice Raynal, (Genève, Skira, 1959). Sin embargo, en las elecciones de Vigo, la modernidad artística ya no se remonta al impresionismo o al posimpresionismo, ni siquiera a Picasso: en 1957, el artista sostiene que “Picasso hace que se olvide a otros nombres importantes. Picasso hoy es pasatista, su trabajo ya lo hizo y fue punto de partida para otros. Hoy son otros nombres los que hay que tener en cuenta14.” En los escritos y proyectos editoriales de Vigo, estas lecturas son convocadas mediante la cita y el comentario. La traducción aparece, sin embargo, como la forma más radical de apropiación de ese material. Efectivamente, además de acrecentar progresivamente su biblioteca tradicional, el artista confecciona desde 1954 y hasta 1975 aproximadamente una biblioteca paralela, compuesta por una serie de libros únicos de manufactura artesanal. Vigo se lanza a la traducción al español y a la edición “casera” de ejemplares únicos, capítulos de libros y artículos en francés, existentes en versión original en su biblioteca. Estas ediciones le permiten seleccionar, componer, montar y editar sus propios libros a partir de textos de otros sobre los temas que le interesan. La esposa del artista, Elena Comas, se ocupa de traducir y su colaboración es regularmente señalada. Los textos son mecanografiados y Vigo realiza la puesta en página, las tapas, la ilustración, la decoración y la encuadernación. Los formatos varían aunque, aunque a lo largo de los años, algunas series se recortan por su apariencia similar y temas comunes15. Vigo, E. A. “Charla en la Asociación del Poder Judicial dada el 20/12/50 i 7” [sic]. Notas mecanografiadas. Archivo del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV) de La Plata. 14 No me detengo aquí en la apariencia de estos libros, aspecto ligado tanto a los textos traducidos como a los diferentes períodos en el desarrollo de la obra plástica del artista. 15 Berenice Gustavino 435 La biblioteca paralela muestra la preferencia del artista por ciertos movimientos artísticos como las vanguardias abstractas, el surrealismo, el dadaísmo, el suprematismo y el neoplasticismo. Así, encontramos la traducción de Le surréalisme d’Yves Duplessis; de L’art abstrait: ses origines, ses premiers maîtres, y de Mondrian, sa vie, son œuvre, ambos de Michel Seuphor; de los escritos de Wassily Kandinsky, Du spirituel dans l’art: et dans la peinture en particulier; además de libros sobre Picasso, Hans Arp y Paul Klee, y artículos sobre Mondrian y Theo van Doesburg. Fig. 2. La traducción en Vigo puede ser comprendida como una manifestación de la avidez por conocer y dominar las ideas sobre el arte moderno, y como vía para “compensar” y reparar las lagunas en la bibliografía sobre arte en español, motivaciones que el artista comparte con otros de sus contemporáneos. Esto lo lleva, por ejemplo, a anticipar dos años la versión española de Du spirituel dans l’art, traducida del francés por Edgar Bayley y publicada en 1956 por Galatea-Nueva Visión. Los motivos que guían otras elecciones son menos evidentes. Este es el caso de Vie des formes de Henri Focillon, traducido integralmente por la pareja, a pesar de que una versión existe desde hace una década publicada por El Ateneo16; o el del pequeño compendio sobre el surrealismo de Yves Duplessis, editado en 1953 en Barcelona con traducción de Juan Eduardo Cirlot. Otros libros traducidos por Vigo, como L’art abstrait... de Seuphor, no cuentan con traducción castellana hasta la actualidad17. Por otro lado, en los escritos de Vigo de la época es común encontrar comentarios sobre la necesidad de leer para combatir la falta de información. El artista ataca abiertamente el conservadurismo del público que se deja dirigir y se expresa despectivamente sobre lo moderno; al Estado y las instituciones como responsables de no proveer los conocimientos necesarios; y a la crítica de arte como el elemento más negativo del medio artístico que revela en sus trabajos “un desconocimiento de los problemas de las artes plásticas en general18.” Con el fin de revertir esta situación, Vigo utiliza sus presentaciones públicas y sus artículos como tribunas Focillon, H., Vida de las formas; seguido por el Elogio de la mano. Buenos Aires: El Ateneo, 1947, traducción de Inés Rotenberg. 16 17 Otros libros de Seuphor sí cuentan con ediciones en español, como por ejemplo Mondrian. Pinturas. Barcelona: Gustavo Gili, 1958, con traducción de Juan Eduardo Cirlot; Pintura abstracta. Buenos Aires: Kapelusz, 1965, traducción de Roberto Guibourg del Dictionnaire de la peinture abstraite; y El estilo y el grito. Caracas: Monte Ávila Editores, 1970. 18 Vigo, E. A. “Charla en la Asociación del Poder Judicial...”, documento citado. P. 20. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 436 desde donde movilizar y familiarizar al gran público con los problemas del arte moderno. Además de comentar la actividad artística y de reseñar las novedades editoriales, sus columnas suele incluir la transcripción de extensos párrafos tomados de los libros y revistas de su biblioteca. Esta preocupación por la divulgación lo lleva a traducir y utilizar artículos que proponen clasificaciones y periodizaciones del arte moderno, como “La peinture de 1900 à 1950. Essai de classification” de Leon Degand, extraído de la revista francesa Art d’aujourd’hui, del que reparte un resumen entre los asistentes a sus charlas19. Las elecciones bibliográficas de Vigo son coherentes con su defensa de la abstracción y de las vanguardias, que se comprueba en sus obras y opiniones de la época. Su exigencia de un arte que sea “de su tiempo”, es decir, abstracto, se hace escuchar en numerosas ocasiones: “hoy estamos en una etapa que al quedarse en esa representación copiativa de la naturaleza [sic], se realiza por parte del plástico una aberración de falta de enfoque, de una total nulidad del tiempo que nos toca actuar20.” Del conjunto de libros y artículos traducidos por Vigo entre fines de los años cincuenta y mediados de los sesenta, al menos tres pueden haberle facilitado al artista herramientas para pensar la historia del arte moderno en un sentido divergente al propuesto por la historiografía “a la francesa”. Vigo traduce a Seuphor, un autor francófono defensor de la abstracción y uno de los primeros en proponer una síntesis y una organización de la historia de esta tendencia. En L’art abstrait..., que constituye un corpus de base para libros publicados desde fines de los años cincuenta a los setenta, el autor elabora una historiografía que no pasa necesariamente por París, estudiando artistas y tendencias alemanas, las vanguardias rusas y otros “olvidados” de la historia del arte canónica. Aunque Seuphor ignore las contribuciones del uruguayo Joaquín Torres García, ausencia muy cuestionada por los argentinos21, sobre ese libro descansaría, por su apertura relativa en el contexto de la producción historiográfica europea, “la aplastante responsabilidad de haber asumido en Francia la historiografía 19 Ibid. P. 30. 20 Ibid. P. 4. Cfr. De Torre, G. Joaquín Torres García. Buenos Aires: Instituto de Arte Moderno, nº 8, 1951. P. 6. Citado en Giunta, A., Vanguardia, internacionalismo y política: arte argentino en los años sesenta. Buenos Aires: Paidós, 2001. 21 Berenice Gustavino 437 de la vanguardia internacional22”. Junto a otros autores francófonos, Seuphor contribuye al cambio de panteón artístico, inaugurando una nueva historiografía que toma distancia de la figura de Picasso, para hacer ingresar en el relato a Kandinsky, Klee y Mondrian. No sorprende que el ejemplar de L’art abstrait... de Vigo haya sido profusamente subrayado por el artista23. Fig. 3 y 4. Además de frecuentar esta historiografía en la que comienzan a perfilarse nuevos relatos sobre el arte de la primera mitad del siglo, que incorpora la abstracción en una posición central e introduce progresivamente el relevo de “los viejos”, Vigo entra en contacto con otras lecturas sobre el arte moderno elaboradas fuera de Francia. En la página 81 del libro de Seuphor citado se reproduce el célebre diagrama en el que Alfred Barr, primer director del Museum of Modern Art (MoMA), ordena las sucesivas tendencias artísticas comprendidas 1890 y 1935, y sistematiza sus conexiones. Vigo traduce y copia fielmente este esquema en rojo y negro sobre blanco que ilustraba originalmente el catálogo de la exposición Cubism and Abstract Art organizada en el MoMA en 1936. Fig. 5. Es comprensible que un diagrama como este haya despertado su interés: Barr no parte del impresionismo -como sí lo hacen otros cuadros similares disponibles por entonces en Argentina24- sino de la generación siguiente; reserva, además, un lugar importante al dadaísmo; y subraya las conexiones entre la “estética de la máquina” y una amplia gama de tendencias que va del cubismo a la arquitectura moderna y Bauhaus. Esa noción, usada por Barr para justificar la inclusión de objetos industriales y arquitectónicos en la colección del MoMA25, encuentra probablemente sus ecos en Vigo, que elabora en esos años distintas series de “máquinas inútiles” y “máquinas imposibles”26. De este modo, y de acuerdo con la ambición de informarse 22 Cfr. Leeman, R., Op. Cit. Esto fue también señalado en Gradowczyk, M. H. et al, MAQUINAciones. Edgardo Antonio Vigo: Trabajos 1953-1962. Buenos Aires: CCEBA-Centro Cultural de España en Buenos Aires, 2008. 23 24 Desde 1949, dos resúmenes gráficos de este tipo estaban disponibles en el catálogo de la exposición de arte francés presentada en Buenos Aires ese año. “La peinture française de Manet à nos jours”, estaba firmado por René Huyghe y el otro, menos extenso, comprendía la pintura entre 1905 y 1925. Kantor, S. G., Alfred H. Barr, Jr. and the Intellectual Origins of the Museum of Modern Art. MIT Press, 2003. P. 308. 25 Gradowczyk, M. H., “Edgardo Antonio Vigo: MAQUINAciones (1953-1962)”, en Op. Cit. 26 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 438 sobre el arte moderno, el artista frecuenta una historiografía desarrollada tempranamente, que será luego muy influyente entre los propios franceses, y que constituye la versión anglosajona de la modernidad artística. Iniciada por Roger Fry y por Barr, será transformada luego en la narrativa moderna con Clement Greenberg como principal vocero. Como ya señalamos, Vigo opta, como lector y como traductor, por aquella literatura que privilegia una versión del arte moderno marcada por el predominio de la abstracción. Pero su interés por otra rama dentro de las vanguardias lo demuestra también la gran cantidad de volúmenes dedicados al surrealismo y a Dada en su biblioteca, y el desarrollo de su estética y escritos de la época. Posiblemente, la traducción más notable de su biblioteca paralela sea, en este sentido, la de los escritos de Marcel Duchamp reunidos y publicados por primera vez en 1959 por Michel Sanouillet con el título de Marchand du sel. En 1966, Comas y Vigo traducen el libro a partir de un ejemplar adquirido, probablemente, en la librería Galatea de Buenos Aires. En español, el título se transforma en “vendedor de sal”, frase que acaba con el anagrama que permite, en francés, el desplazamiento de las sílabas del nombre del artista y el consecuente efecto poético. Entendemos, hasta el momento, que esta es la primera traducción integral al castellano de los escritos de Duchamp compilados hasta entonces, aunque su existencia sea, como en los otros casos, privada. Con este ejercicio, Vigo se adelante doce años a la primera traducción profesional de esos textos, hecha en 1975 a partir de un volumen posterior, organizado también por Sanouillet, bajo el título ahora de Duchamp du signe: écrits27. Fig. 6. Como afirma Richard Leeman, durante 1959 algunos críticos franceses reconocen la influencia de Duchamp en la generación más joven de artistas. Desde entonces se instala la idea de que tanto Picasso como Klee, Kandinsky y Mondrian, hasta entonces figuras insoslayables en el relato del arte moderno, ceden su lugar a Duchamp y a Picabia. Mientras que el nombre de Duchamp no produce ningún eco durante medio siglo en Francia, la historiografía del arte elaborada en ese país durante la década del sesenta, hará de Dada la gran ruptura del siglo XX, cuestionando y desplazando el rol que hasta entonces se le había asignado al impresionismo. En esos años se debatirá, por ejemplo, si el origen de la modernidad se sitúa 27 Duchamp, M. y Sanouillet, M. (ed.), Duchamp du signe: écrits. Paris: Flammarion, 1975. Este compilado que cuenta con varias ediciones es traducido y publicado por Gustavo Gili en Barcelona en 1978, con la traducción literal del título, “Duchamp del signo”. Berenice Gustavino 439 en los aportes de Cézanne o en los de Duchamp28. Para Thierry de Duve, un evento como la primera exposición retrospectiva del inventor del ready made en 1963 pone en evidencia que este deviene, si no más famoso que Picasso, al menos más relevante para la comprensión del arte actual29. Del mismo modo que en Francia, el nombre de Duchamp comienza a circular en Argentina durante los años sesenta, aunque ya previamente apareciera asociado al dadaísmo y a la invención del ready made30. Aunque no es objeto del debate historiográfico en términos de padre fundador de la modernidad como es el caso en Europa, ocupa un rol central como referente histórico en relación a los nuevos comportamientos artísticos. Ese rol se le reconoce en la prensa local -donde se lo presenta como enfant terrible y antecedente iconoclasta del arte pop31-, y en los primeros textos que historizan los estilos y movimientos más recientes32. El interés que demuestra Vigo por las ideas del francés no es aislado entre los artistas argentinos. Algunos de ellos encuentran coincidencias entre el trabajo y la figura de Duchamp, y sus propias ideas y búsquedas experimentales. Es conocida, aunque poco documentada, la anécdota según la que Alberto Greco habría conocido a Duchamp en Nueva York hacia fines de 1964 o comienzos de 1965. En esta oportunidad, Greco le habría pedido que escribiera y firmara la leyenda “¡Viva Greco!” en una hoja de papel que sería usada luego como tapa del catálogo de su próxima exposición33. La estadía de Duchamp en Buenos Aires en 1918 tampoco es demasiado conocida. En 1967, el escritor Julio Cortázar descubre el comentario de este viaje en Marchand du sel, pero reconoce no contar con suficientes elementos para asegurar la veracidad del relato34. Un año después, en un 28 Leeman, R., Op. Cit. Pp. 157-176. Fernández Vega, J., “El mensaje de Duchamp recién llegó a destino en los años sesenta. Entrevista con Thierry de Duve”. ramona. Revista de artes visuales. Nº 76, noviembre de 2007. P. 31. 29 Cfr. Romero Brest, J., La pintura europea contemporánea: (1900-1950). México: Fondo de cultura económica, 1952. Pp. 212-223. 30 31 Sin firma. “Maestros. El breviario del viejo terrible”. Primera Plana. 19 de julio de 1966. P. 91. 32 Pellegrini, A. Panorama de la pintura argentina contemporánea. Buenos Aires: Paidós, 1967. Rivas, F. Alberto Greco. Valencia: IVAM Centre Julio González, Fundación Mapfre, 1991. Pp. 328-331. 33 Cortázar, J. “De otra máquina célibe”, en La vuelta al día en ochenta mundos. Madrid: Debate, 1994. Pp. 110-121. 34 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 440 escrito posterior a la muerte del artista, Cortázar vuelve sobre ese dato, confirmado por Octavio Paz que habría escuchado la historia directamente de boca de Duchamp35. La atención de Vigo a las narrativas divergentes de la propuesta por la historiografía del arte “a la francesa” se confirma en una reseña de 1961 del libro de Jean Cassou, Panorama des arts plastiques contemporaines, traducido y publicado en España. El artista platense objeta que el título no aclare “en Francia”, ya que el supuesto “panorama” se restringe a ese país e ignora la pintura española, la italiana, la holandesa, omisiones que Vigo “inaceptables en un crítico y figura de prestigio” en las artes plásticas internacionales36. Las traducciones y ediciones de Vigo son una práctica mayormente privada. En los documentos y trabajos disponibles, no existen referencias a tentativas de publicación formal. Ellas alcanzan, sin embargo, una cierta circulación social a través de las revistas editadas por el artista, de las citas en sus columnas de crítica y en el contenido de sus conferencias y charlas. Otra “lectura” de Duchamp y de las vanguardias puede verificarse ampliamente en la producción plástica del artista, que puede ser considerada de “neovanguardia”, por su recuperación de las operaciones dadaístas y constructivistas, por la crítica de los principios del arte burgués autónomo y de la figura del artista expresivo, por la revisión de los convencionalismos de los medios tradicionales, y de los parámetros perceptivos, cognitivos, estructurales y discursivos de la institución artística37. La búsqueda de respuesta y saberes sobre el arte moderno, lleva al artista y lector “periférico”, a tratar de primera mano las fuentes de esas ideas. En esta operación, el passeur interviene activamente, eligiendo y combinando los elementos que le ofrece la tradición artística de Occidente, y optando por las explicaciones y los saberes que responden con mayor coherencia a sus intereses intelectuales y a la dirección que impone a su obra plástica. Cortázar, J. “Marcelo del Campo o más encuentros a deshora”, en Último round. Madrid: Debate, 1992. Pp. 304-308. 35 36 Sin firma (Vigo, E. A.). “Artes plásticas. Panorama”. El Argentino, 31 julio de 1961. P. 8. 37 Cfr. Foster, H. El retorno de lo real: la vanguardia a finales de siglo. Madrid: Akal, 2001. Berenice Gustavino 441 Figura 1 Payró, Julio E., Cézanne, Gauguin, Van Gogh, Seurat. Los héroes del color y su tiempo. Buenos Aires: Nova, 1951. Portada História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 442 Figura 2 Edgardo Antonio Vigo. Tapa del volumen que contiene “La peinture de 1900 à 1950. Essai de classification” de Leon Degand y otros artículos aparecidos en el número 78 de la revista Art d’aujourd’hui de marzo 1950. Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV) Berenice Gustavino 443 Figura 3 Páginas subrayadas del libro L’art abstrait: ses origines, ses premiers maîtres de Michel Seuphor. Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV) História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 444 Figura 4 Edgardo Antonio Vigo. Páginas de la traducción de L’art abstrait: ses origines, ses premiers maîtres de Michel Seuphor. Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV) Berenice Gustavino 445 Figura 5 Edgardo Antonio Vigo. Traducción del diagrama de Alfred Barr de 1936. Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV) História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 446 Figura 6 Edgardo Antonio Vigo. Portada de la traducción de Marchand du sel, écrits de Marcel Duchamp, 1966. Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV) Berenice Gustavino 447 arquivos e fontes Bienais de São Paulo: Arquivo, memória e esquecimento Renata Cristina de Oliveira Maia Zago Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagem. Universidade Federal de Juiz de Fora. Introdução Este texto é fruto de uma reflexão acerca de pesquisas realizadas nos últimos anos sobre algumas edições das Bienais de São Paulo, em especial as realizadas na década de 1970. Desde o início, ao eleger o acervo do Arquivo Histórico Wanda Svevo (AHWS) como principal fonte de pesquisa, tornou-se fundamental refletir sobre o papel do A(a)rquivo. As conceitualizações do termo arquivo e suas várias interpretações não são o objeto desta análise, no entanto, é inevitável criar um parâmetro para compreender a maneira como o trabalho se desenvolve, já que a interpretação acerca deste problema perpassa a escrita, levando-se em consideração o embate direto com as fontes arquivadas. No documento que prevê a criação do AHWS, destaca-se também a sua função de “local de pesquisa da arte contemporânea”. É imprescindível para a Fundação Bienal tornar o Arquivo acessível ao público, ou pelo menos ao pesquisador especializado ou interessado em arte, já que dessa maneira é possível difundir a história não apenas das artes visuais, mas da própria instituição desde 1951. Além disso, formulações sobre o conceito de memória são importantes para a abordagem das fontes selecionadas a fim de diagnosticar as diferentes construções da história das Bienais de São Paulo, ou seja, nesse caso, a maneira como a Fundação Bienal narra a sua história por meio de catálogos e publicações próprias e sites na internet, diferentemente do modo como sua história está sendo construída, pelos pesquisadores acadêmicos, baseando-se em fontes primárias, ou seja, na documentação histórica guardada no AHWS, ainda pouco explorada pela instituição. Dessa maneira, outras questões foram levantadas ao longo dessa reflexão, relacionadas a conceitos de tradição e identidade das Bienais, procurando dar conta de uma confusão persistente engendrada por meio da profusão do discurso 449 oficial, utilizado pela instituição para a construção de sua identidade, que difere do discurso gerado a partir dos enunciados contidos nas fontes analisadas, presentes no Arquivo. Ao escrever sobre as Bienais de São Paulo, é preciso lembrar que foram construídas em torno da Fundação Bienal, e mais especificamente das exposições Bienais, uma narrativa, uma história, um discurso. Há uma memória guardada e corroborada e uma tradição cultivada pela Fundação Bienal, evitada e trabalhada pelos curadores e por vezes questionada por eles próprios, pelos críticos e pelo público. Trabalhar com essas questões implica a ideia de recuperar um passado que evoca uma criação sobre ele. A presença de rupturas e continuidades na análise do passado pode ser percebida, portanto, como uma tentativa de, através de discursos construídos a partir de enunciados distintos, oferecer uma versão memorial sobre o passado que atenda a demandas específicas do presente. Estas possibilidades de apropriação do passado pela via do presente apontam para uma questão ainda maior: a construção de futuros possíveis. Assim, é no presente que a construção do passado é pleiteada como recurso para a construção de um futuro que responda às aspirações deste presente. Neste sentido, parece pertinente pensar as estratégias de armazenamento e esquecimento do passado. A construção dos museus, arquivos, centros de memória e institutos históricos como depositários de uma concepção e uma versão da memória são indicativos deste caminho. O que se guarda e armazena é o que se quer lembrar, pois o não-mais-visto e o não-dito tendem ao esquecimento. Néstor Canclini aponta para esta necessidade de criação de mitos e monumentos de preservação do passado como marcos fundamentais de construção de identidades, incluindo neste processo os documentos escritos. De acordo com Pierre Nora, é possível perceber os museus, institutos históricos, casas de cultura, monumentos, entre outros, como lugares de memória, cuja função é exatamente manter ativo o pertencimento a determinado vínculo identificatório.1 Canclini afirma que “ter uma identidade seria ter um país, uma cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse lugar se tornasse idêntico ou intercambiável. Nesses territórios a identidade é posta em cena, celebrada NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28. 1 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 450 nas festas e dramatizada também nos rituais cotidianos”.2 Há muito tempo está superada a perspectiva de que a memória é um atributo somente individual. Estudos de diversas origens disciplinares coincidem na experiência compartida da memória, ou seja, na sua natureza social. Mesmo quando envolvem experiências pessoais, as lembranças resultam da interação com outras pessoas. Além disso, a memória passa a ser um fator fundamental de identidade e de suporte dos sujeitos coletivos assim como desempenha também outra função importante, tanto na preservação da experiência histórica acumulada, de valores e de tradições, como, em muitas situações, pretende ser a depositária da própria história (por exemplo, no caso das sociedades sem escrita, ou o das comunidades rurais marcadas pela manutenção de forte tradição oral). É inegável que, representando interesses de certos setores ou da comunidade como um todo, a memória, transformada em senso comum, é uma referência de coesão identitária e faz parte da cultura política de uma determinada sociedade. Sendo uma construção ativa, dinâmica, a memória nunca é a repetição exata de algo passado. Trata-se, em realidade, de uma reconstrução que cada um realiza dependendo da sua história, do momento e do lugar em que se encontra. Portanto, a memória é uma construção e, como tal, é perpassada, veladamente, por intercessões que expressam relações de poder que hierarquizam, segundo os interesses dominantes, aspectos de classe, políticos, culturais, etc. Isto não é produto do acaso; é sim, resultado da relação e interação entre os diversos atores históricos em um determinado momento conjuntural. Lembrar e esquecer são ações que implicam seleção de informações, o que significa dizer que também não há memória sem esquecimento. Sendo a memória coletiva uma construção social e um fator de identidade, algumas questões surgem imediatamente. Então, como viver com esquecimentos impostos? Como lembrar ou esquecer o que não se permite conhecer? Como conviver diante do apagamento (desmemória)? Para uma dada coletividade, quais os prejuízos implícitos nesse acesso ao (des)conhecido passado bloqueado? Os responsáveis, por exemplo, pelos anos de chumbo latino-americanos sabem que o desconhecimento impede o posicionamento consciente e que, além disso, há um potencial de inércia que possui o esquecimento coletivo. A análise da temática da memória implica reconhecer CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp ,2ª ed.,1998, p. 190. Grifos do autor. 2 Renata Cristina de Oliveira Maia Zago 451 que há, como contrapartida, o esquecimento, os silêncios e os não-ditos. O esquecimento pode ser uma opção de restringir ao essencial certos fatos ou informações a respeito deles. No entanto, pode também ser o resultado de uma ação deliberada de ocultamento. Tzvetan Todorov3 afirma que os regimes totalitários do século XX deram à memória um estatuto inédito na medida em que perseguiram com afinco a sua supressão. Sabe-se que políticas diversas de censura ocorreram muito antes, entretanto no século XX, o domínio sobre a informação e a comunicação redimensionou a apropriação da memória. Há inúmeros rastros da eliminação de vestígios do passado, de manipulação ou de maquiamento do que existiu. E isso ocorre independentemente de qualquer ideologia. Seja sob ditaduras de direita ou de esquerda, a memória e a história são vítimas constantes dessa dominação. A ênfase recente na (re)construção de um pensamento único vinculado aos interesses da globalização mostra a vigência desta discussão e a permanente luta pelo controle das formas autônomas e científicas do pensamento. Bienais de São Paulo: entre a memória e o esquecimento Constantemente, ao longo das últimas décadas, os escritos fizeram reafirmar a memória coletiva construída pela Fundação Bienal, em nome de uma tradição, deixando de lado os esquecimentos ou apagamentos, ignorando-os4. Se a lembrança e o esquecimento implicam a seleção de informações e se essas informações eleitas para representar a memória coletiva foram retiradas em grande parte de enunciados presentes em artigos de periódicos de época – lembrando que o período em que estão inseridas as pesquisas da autora coincidem com o período do governo militar brasileiro – e nas próprias publicações realizadas pela instituição, pode-se deduzir que o discurso oficial da Fundação Bienal é construído a partir dessas fontes. Desta forma, por muito tempo, uma parte das pesquisas sobre as Bienais Ver TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós Asterisco*, 2000(a), p.12. 3 Nos últimos anos há muitos trabalhos no âmbito acadêmico que reverteram esse diagnóstico. Teses, dissertações e artigos com pesquisas sistemáticas de grande fôlego. Antigamente os textos escritos sobre as bienais tinham mais um caráter informativo ou de crítica jornalística, em grande parte embasados apenas pelos dados retirados de artigos de jornais e periódicos de época. Isso não é uma crítica da autora, apenas uma constatação acerca desse fato. 4 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 452 utilizaram-se de informações das fontes publicadas e não de fontes primárias. Parecem, então, guiadas por ecos de uma bibliografia que reforça o discurso oficial da Bienal5. O discurso oficial é responsável pelo domínio e pela manipulação de informações, daí a importância de trabalhos acadêmicos que contestem os esquecimentos. É possível questionar o poder “ditatorial” do criador das Bienais – Francisco Matarazzo Sobrinho – e seu alinhamento com o governo militar? Há rastros da eliminação ou da manipulação de informações do passado pela instituição (Fundação Bienal) ou na imprensa – que estava sob censura militar? Tais questões certamente não serão respondidas no decorrer, porém é necessário apontá-las para diagnosticar de que maneira foi construída a memória da Fundação Bienal6, bem como sua identidade e tradição. Além disso, a ratificação da tradição das Bienais de São Paulo também ocorre devido à posição ocupada pela mostra dentro de um “sistema da arte” instituído. Assiste-se atualmente ao surgimento e à disseminação de Bienais pelo mundo todo, porém, a Bienal de São Paulo ainda é considerada pelos estudiosos uma das três maiores mostras de arte contemporânea existentes, ao lado da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel. Assim, mesmo com o aparecimento de grande número de Bienais, a Bienal de São Paulo não perdeu seu status, sua tradição e sua identidade. Todavia, durante os anos 1970 houve uma crise que caminhou ao lado do questionamento do sistema artístico então instituído e da própria modificação do objeto da arte. Pode-se definir esse sistema artístico como o espaço, o lugar e o trânsito da arte contemporânea, que foi amplamente questionado por críticos e artistas a partir de novas propostas artísticas e “curatoriais”, justamente na década de 1970. Neste período, observou-se uma crise institucional da Fundação Bienal em duas frentes: política e artística. Artistas e intelectuais desse período agregaram à questão nacional a luta contra o autoritarismo e a Bienal estava inegavelmente ligada ao Estado, seja porque a maior parte do financiamento para realizar o evento provinha dos governos federal, estadual e municipal, seja pelo possível alinhamento de Ciccillo Matarazzo com o Estado. Nesse caso não se pode afirmar que seja a Fundação Bienal, pois as Bienais existiam antes da Fundação. Pode-se afirmar que é o discurso oficial dos gestores da Bienal, antes o MAM-SP e depois a FB. 5 6 Idem. Renata Cristina de Oliveira Maia Zago 453 Sabe-se, porém, que existem algumas linhas interpretativas a respeito da memória coletiva, construída sobre os vinte e um anos de regime ditatorial brasileiro. Como memória coletiva, a interpretação que prevaleceu foi aquela que privilegiava a questão da oposição, concebida pelos historiadores no final da década de 1970 e na década seguinte, não porque foi imposta, mas porque supria uma demanda gerada pela insatisfação com o regime, enfatizando o papel dos movimentos sociais de oposição, contra o regime. No entanto, segundo Denise Rollemberg, hoje existe uma vasta historiografia sobre a ditadura a partir da qual é necessário desconstruir uma memória de resistência não raramente superdimensionada e mitificada. Mais do que isso: É preciso compreender esses objetos não exclusivamente em campos bem delimitados de a favor ou contra, mas sim naquilo que o historiador Pierre Laborie chamou de zona cinzenta: o enorme espaço entre dois polos – resistência e colaboração / apoio – e mais, o lugar da ambivalência no qual os dois extremos se diluem na possibilidade de ser um e outro ao mesmo tempo.7 Denise Rollemberg aplica a análise que o historiador Pierre Laborie faz da sociedade francesa sob o regime de Vichy (1940-44) ao caso da ditadura brasileira. Afirma que aqui também houve uma zona cinzenta. Parece pertinente prolongar essa análise também para a posição institucional da Fundação Bienal em meio a esse período. Além disso, é preciso destacar que, para esta reflexão, tanto o regime militar quanto a oposição civil valorizavam a cultura, mas por motivos diferentes. Para o governo militar, a cultura servia concomitantemente como um “campo de batalha da ‘guerra psicológica’ da subversão e parte da estratégia de ‘reversão das expectativas’ da classe média, dado o esgotamento do ciclo de crescimento econômico que a beneficiava e garantia seu apoio à ditadura”8, enquanto para a oposição, o campo cultural era visto como ROLLEMBERG, Denise. “As trincheiras da memoria. A associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974)”. In Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat. (orgs.). A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no Século XX. v. 2: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.102. 7 NAPOLITANO, Marcos. “Vencer Satã só com orações: Políticas culturais e cultura de oposição no Brasil dos anos 1970”. In. Idem, p.150. 8 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 454 ambiente para articulações de forças sociais de resistência e reafirmação de ideais democráticos. Portanto, de acordo com o historiador Marcos Napolitano: O campo da cultura foi valorizado como canal de comunicação entre o Estado para com a sociedade civil e da sociedade consigo mesma, alimentado por uma conjuntura de fechamento do espaço político tradicional. E a cultura engajada de esquerda teve um papel central, ainda que contraditório, nesse jogo, no qual práticas de ‘cooptação’ e ‘resistência’ não se excluíram e muitas vezes conviviam nos mesmos agentes e instituições socioculturais.9 Além disso, a dimensão da identidade a serviço de instituições ligadas ao Estado permite que, em muitos casos, cunhe-se a ideia de que identidades bem sucedidas são aquelas destinadas à estabilidade, o que cabe nos preceitos apresentados no período que abarca as condições políticas, históricas e artísticas aqui tratadas, seja com o intuito de negar ou confirmar o alinhamento da Fundação Bienal com o Estado brasileiro autoritário da década de 1970. Discurso oficial e Arquivo Entende-se aqui, por discurso oficial, a maneira em que a história deve ser lembrada de acordo com a memória coletiva construída, nesse caso, por uma instituição, ou pelas exposições Bienais de São Paulo, o que ressalta a existência de um passado, mesmo que pouco acessível, lido por valores hegemônicos e protocolares. A Fundação Bienal pretendia construir narrativas que constituíssem sua própria duração e autoridade por meio de suas exposições comemorativas, catálogos, documentos preservados em seu Arquivo, entre outras formas de edificar sua identidade, criando sua tradição. É responsabilidade da instituição escolher os valores e seus locutores autorizados. Há discursos que representam a instituição, que ela própria é instituidora dos valores artísticos e refém de outros valores. Notou-se, por exemplo, durante apesquisa 9 Ibidem. Renata Cristina de Oliveira Maia Zago 455 de doutorado, que a Fundação Bienal não parece preocupada em preservar a memória das Bienais Nacionais10. Ao edificar uma narrativa específica, apoiando-se na memória coletiva, no esquecimento e/ou nas lacunas, fica implícito o apagamento e o recorte buscado pela Fundação Bienal. A maneira como se encontra a documentação histórica dessas Bienais Nacionais aponta para a questão do esquecimento. A documentação referente às Bienais Internacionais encontra-se identificada como Fundo da Documentação Histórica11, algumas edições já higienizadas, catalogadas e descritas enquanto a documentação das Bienais Nacionais permanecia guardada em outro local do Arquivo, sem identificação. Tivemos acesso a esses documentos após iniciar a organização da documentação da Bienal Internacional de 1971, onde encontramos uma série de ofícios com o indicativo “PB/1970” - Pré-Bienal 1970 (isso ocorreu pois os ofícios eram arquivados por datas). Como a Bienal de 1971 começou a ser organizada em 1970, algumas dessas cartas e ofícios permaneceram juntos, já que a representação brasileira da Bienal de 1971 foi selecionada a partir da Pré-Bienal 1970, dado que não havia sido explorado por nenhum outro pesquisador. A pesquisa foi pensada também a partir da ausência de registros destas mostras nacionais, principalmente iconográficos. A partir de então, levantou-se a ideia de um esquecimento proposital, ou apagaMostras exclusivamente nacionais realizadas durante a década de 1970. Ver ZAGO, Renata C O M. As Bienais Nacionais de São Paulo: 1970-76. Tese de doutorado em Artes Visuais / Unicamp, Campinas, 2013. 10 A guarda e a organização da documentação histórica da Fundação Bienal, bem como dos artigos de jornais presentes na hemeroteca do AHWS apontam para uma falta de preocupação com a conservação desse material. Apenas nos últimos anos é que começaram a escrever projetos para captação de recursos para tratar todo o acervo. Por longa data, o Arquivo Histórico permaneceu quase invisível para a instituição. Há pouco mais de uma década é que se iniciaram esforços para uma política adequada de guarda, catalogação e conservação. Não cabe aqui discutir a questão da conservação técnica desse patrimônio, apenas apontar que não houve grande preocupação com a sua preservação. Durante a 27a Bienal de São Paulo, em 2006, a artista Mabe Bethônico concebeu sua obra, ligada ao Museu, a partir da relação da Fundação Bienal com seu entorno, com sua história e com seu tempo. Elegeu o Arquivo Histórico Wanda Svevo como peça fundamental de sua ação artística, já que percebeu o desejo da própria instituição em torná-lo visível. A artista trabalha suscitando a memória como material da própria obra, traz o AHWS para o público, desenterra o esquecido e lhe dá novos significados. Essas revelações possibilitam reverter, pela arte, a condição de esquecimento do Arquivo. É claro que estamos falando de uma criação fictícia. No entanto, Mabe utiliza conceitos que também são empregados na pesquisa histórica: a verdade, a memória e a identidade. Cria um Arquivo fictício construído pela relação entre a história e o presente. Esse trabalho trouxe maior visibilidade para o Arquivo dentro da própria instituição. 11 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 456 mento desta parte da memória por parte da instituição ou simplesmente uma lacuna encontrada devido ao fato dessas edições das Bienais Nacionais configurarem-se como mostras “menos relevantes” para a instituição e para a história da arte nacional. Dessa maneira, a narrativa aqui construída durante a tese é baseada em um ato de seleção realizado anteriormente. Lidar com isso implica refletir, como já mencionado anteriormente, sobre o momento artístico-histórico em que ocorreram estas exposições: o contexto da ditadura civil-militar brasileira. Além disso, pensar na fundação do próprio AHWS ajuda-nos a entender seu papel para a Bienal. Breve Histórico do Arquivo Histórico Wanda Svevo (AHWS) Foi à época da celebração do IV Centenário da cidade de São Paulo, em 1954, que, por iniciativa de Wanda Svevo – então secretária do presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Francisco Matarazzo Sobrinho – fundaram-se os Arquivos Históricos de Arte Contemporânea da Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Nos moldes do Arquivo Histórico das Artes Contemporâneas da Bienal de Veneza, seu primeiro objetivo foi o de organizar a documentação gerada pelos eventos bienais, que incluía: correspondência com artistas e críticos de arte, fotografias, material de pesquisa na concepção dos eventos, entre outros. Além disso, pensou-se para o Arquivo a função de se constituir um centro de documentação de referência para a pesquisa acerca da produção artística contemporânea. Segundo a proposta original, redigida por Wanda Svevo: (...) inserem-se os Arquivos Históricos de Arte Contemporânea da Bienal de São Paulo na função de estabilizar, em uma coleta contínua de dados, todo o conhecimento vivo da atualidade artística, não só em relação direta e imediata com a realização das Bienais, mas ainda um corolário à margem desses certames artísticos, na ordem de uma ligação com os acontecimentos paralelos, os museus, as exposições, as iniciativas que ocorreram no mundo das artes, no país e no exterior, e que possam interessar à nossa organização.12 Carta-padrão redigida por Wanda Svevo em 1955, destinada à captação de informações para o Arquivo de Arte, traduzida para o inglês, o alemão, o italiano e o francês. Arquivo Histórico Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo. 12 Renata Cristina de Oliveira Maia Zago 457 O acervo, que nasceu a partir da iniciativa de Wanda Svevo, começou a funcionar em 1954, no ano da comemoração do IV Centenário da cidade de São Paulo. Os Arquivos Históricos foram oficializados em 1955 e tinham, como principal objetivo prático, de acordo com o historiador e antigo coordenador do AHWS, Dalton Sala: ...custodiar a documentação produzida no trâmite de realização dos eventos Bienais: o registro burocrático das atividades institucionais, inclusive, e, principalmente, a documentação resultante do contato com os artistas expositores, acrescida das informações que fosse possível reunir sobre esses e outros artistas: assim teve início uma experiência pioneira na América-Latina.13 Ainda no ano de 1955, Wanda Svevo redige uma carta padrão, destinada à captação de informações para o Arquivo de Arte, enviada com variações, de acordo com as circunstâncias. Na carta, a secretária de Ciccillo Matarazzo escreve: ...a Bienal de São Paulo iniciou, já no ano passado, a organização dos Arquivos Históricos de Arte Contemporânea, que deverão constituir a documentação mais completa e atualizada neste Continente, sobre a atividade dos artistas de todos os países, oferecendo ao mesmo tempo amplo material ilustrativo para consulta aos jovens, à critica, e a todos os Interessados. O esquema da organização compreende uma parte informativa, outra bibliográfica e de documentação e outra ainda ilustrativa.14 No ano de 1962, quando a Bienal separou-se do MAM, os Arquivos permaneceram ligados à recém-criada Fundação Bienal. E nesse mesmo ano, com a morte de sua fundadora, passaram a ser chamados de Arquivos Históricos Wanda Svevo. O reconhecimento do AHWS como o mais importante acervo documental referente à arte moderna e contemporânea da América Latina levou o CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) a tombar o Arquivo e seu acervo, através de Resolução da Secretaria de Cultura do Es13 Revista USP, São Paulo, n.52, dez/fev, 2001-2002, p. 131. 14 Idem, p. 130 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 458 tado de São Paulo, SC-16, de 13 de outubro de 1993. Em 1996, o Arquivo foi reinstalado no lugar que atualmente ocupa, no primeiro andar do Pavilhão da Bienal, em um espaço de 184 m², planejado para abrigar seu acervo de documentos, com parte de suas instalações financiadas pela FAPESP. Atualmente, o denominado Arquivo Histórico Wanda Svevo (AHWS), abriga em seu acervo, como no ideário original proposto por Wanda Svevo, tanto documentos textuais e iconográficos resultantes da preparação e organização das mostras realizadas pela Fundação Bienal, quanto aqueles gerados por estes mesmos eventos. Cartazes, fotografias, correspondências, publicações – livros, revistas, periódicos, catálogos – constituem esta documentação que, após o término de cada evento, segue para o AHWS, tornando-se útil àqueles que dela necessitem. Há ainda, no Arquivo Histórico da Fundação Bienal, uma hemeroteca com recortes de jornais de todas as edições das Bienais Internacionais de São Paulo e pastas de artistas participantes dos eventos Bienais. Neste fundo, encontram-se recortes de jornais, pequenos catálogos e folders, fotografias e projetos de obras, fichas de inscrições e currículos de artistas. É relevante mencionar que no Arquivo Histórico também há uma biblioteca especialmente criada para a organização, pesquisa e preparação das mostras realizadas pela Fundação Bienal. Este acervo é único, pois é fruto de pesquisas curatoriais efetuadas desde os primeiros eventos executados pelo MAM, do final da década de 1940, até os dias atuais. Há, ainda, alguns volumes que foram adquiridos a partir de doações de artistas que participaram das Bienais. Podemos identificar pelo menos três conjuntos importantes na biblioteca: as publicações da Fundação Bienal de São Paulo (catálogos de todos os eventos bienais e outras mostras organizadas pela instituição, das quais podemos citar a representação brasileira na Bienal de Veneza, a exposição Tradição e Ruptura, a Mostra do Redescobrimento, entre outros); periódicos especializados na crítica de arte e arquitetura; e livros e catálogos de referência sobre artistas e temas tratados nos eventos Bienais de São Paulo. Além disso, há o Fundo Histórico Ciccillo Matarazzo, onde é guardada a documentação pessoal (documentos textuais e iconográficos) do fundador da instituição. Um arquivo enquanto instituição foi definido por Antonia Heredia Herrera (2007) como uma unidade de gestão de um conjunto de documen- Renata Cristina de Oliveira Maia Zago 459 tos, responsável por seu armazenamento e sua preservação. De acordo com a autora, é inquestionável a interdependência entre arquivo e documento. Sem o segundo, o primeiro não pode ser constituído, pois, ainda que um “Archivo como institución se reconoce por su fundación/creación, por su titularidad, por su tipologia, por su contenido documental, por sus instalaciones, por sus recursos, por sus servicios”15, é o conteúdo armazenado que acaba por defini-lo. A explicação acima guia muitas das visões clássicas do significado da categoria arquivo e do campo semântico que a rodeia, abreviando-a, por vezes, a uma forma vista, a uma espacialização, à metáfora ou à representação, em detrimento de uma reflexão sobre a sua estrutura. Para refletir sobre essa questão, será retomada a noção de arquivo colocada por Michel Foucault em Arqueologia do Saber (2008), texto no qual o filósofo pauta o fundamento do arquivo para além do status de documento, na existência do que ele denomina de enunciado. O arquivo, em Foucault, “é o conjunto de discursos efetivamente pronunciados”16. Esses discursos, por sua vez, são formados a partir de grupos de enunciados, que não se restringem ao documento ou ao objeto, mas estão imbricados neles (nas falas que produzem, na simbologia que carregam). Um enunciado é então um átomo de discursos possíveis. Seu aparecimento ou permanência como elemento de um discurso (e também o próprio discurso), só é determinado pelo arquivo. A este não cabe a preservação, mas uma permissão à formação de existências discursivas, mesmo aquelas outrora suspensas “nos limbos ou no purgatório da história”17. Trata-se do espaço (não necessariamente físico) onde os discursos são efetivamente criados. Em outros termos, é ele que mantém as coisas ditas num campo enunciativo. Nas palavras de Foucault, O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas 15 HEREDIA HERRERA, Antonia. ¿Qué es un achivo? Exposición y Conferencias Internacional de Archivos (Excol’07). Bogotá, 23 al 27 de Mayo, 2007, pp. 03. CHAGAS, Pedro Dolabela; PEREIRA, Ingridd M. L. Arquivo e Memória: uma análise dos conceitos de arquivo segundo Michel Foucault e Roberto Gonzalez Echevarría. Vitória da Conquista: Fólio – Revista de Letras, v. 3, n. 2, jan./jun. 2011, pp. 323. 16 17 Ibidem. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 460 com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas; ele é o que faz com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando outras contemporâneas já estão extremamente pálidas.18 De acordo com Foucault, o arquivo mantém sua íntima relação com o passado, mas não se limita ao lugar reservado à guarda dos documentos pertencentes à memória coletiva. O arquivo, nesta perspectiva, é antes um espaço de conhecimento, de visibilidade de um determinado saber junto ao qual são desenvolvidos discursos, práticas e mecanismos de organização, de disposição e de autorização desse mesmo saber.19 Porém, como já destacamos, sabe-se que o AHWS é formado por fontes históricas que, por serem oficiais, podem ter sido previamente selecionadas para serem guardadas. A relação entre arte e política é sempre um jogo que requer atenção especial. A trama das ações só é percebida pela análise de um conjunto de documentos formado por declarações oficiais, correspondência institucional e privada, fotografias, artigos publicados na imprensa e estudo das obras. Nesse caso, os documentos guardados no AHWS possibilitam diversos discursos que podem fabricar diferentes histórias. De acordo com Dalton Sala, historiador e antigo coordenador do Arquivo, o conteúdo do arquivo: ...permite traçar a história da instituição, e, constantemente, esclarecer o desenvolvimento da arte do século XX, inclusive porque a Fundação Bienal de São Paulo, nascida de um ímpeto pessoal de Ciccillo Matarazzo que era também plena expressão das necessidades ideológicas de seu tempo, é uma das mais importantes instituições internacionais no terreno das artes plásticas.20 Por outro lado, ao situar sociologicamente a história da instituição, tornou-se necessário refletir sobre as escolhas dessa Fundação, que desde a sua criação participou da disputa entre as formas totalitárias e democráticas da cultura, e não apenas no campo da cultura, mas também no político. FOUCAULT, Michel (2008). Psychiatric power : lectures at the Collège de France, 19731974. New York: Picador.p.147. 18 FOUCAULT, M.(2002). A arqueologia do saber. trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 6ª ed. 19 20 SALA, Dalton. Revista USP, São Paulo, n.52, dez/fev, 2001-2002, p. 132. Renata Cristina de Oliveira Maia Zago 461 Referências Bibliográficas CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp ,2ª ed.,1998. CHAGAS, Pedro Dolabela; PEREIRA, Ingridd M. L. Arquivo e Memória: uma análise dos conceitos de arquivo segundo Michel Foucault e Roberto Gonzalez Echevarría. Vitória da Conquista: Fólio – Revista de Letras, v. 3, n. 2, jan./jun. 2011. FOUCAULT, MICHEL. A arqueologia do saber. trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 6ª ed., 2002. FOUCAULT, Michel. Psychiatric power : lectures at the Collège de France, 1973-1974. New York: Picador, 2008. HEREDIA HERRERA, Antonia. ¿Qué es un achivo? Exposición y Conferencias Internacional de Archivos (Excol’07). Bogotá, 23 al 27 de Mayo, 2007. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28. Revista USP, São Paulo, n.52, dez/fev, 2001-2002. ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no Século XX. v. 2: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós Asterisco*, 2000(a). ZAGO, Renata C O M. As Bienais Nacionais de São Paulo: 1970-76. Tese de doutorado em Artes Visuais / Unicamp, Campinas, 2013. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 462 arte sacra: narrativas e coleções El Mecenazgo de Monseñor Eyzaguirre y la reforma del Arte Sagrado en Chile Fernando Guzmán Doctor en Historia del Arte, académico de la Universidad Adolfo Ibáñez. Valentina Ripamonti Magíster en Historia del Arte, investigadora independiente. El arte y la arquitectura religiosa de Santiago sufrieron una profunda transformación durante el siglo XIX. Se construyeron numerosos templos nuevos y se renovaron los existentes, hasta tal punto que, al finalizar la centuria, se observaban sólo retazos del barroco hispanoamericano en la ciudad1. Una de las personas que habría impulsado este proceso fue Monseñor José Ignacio Víctor Eyzaguirre, quién, en sintonía con los criterios artísticos del papa Pio IX, e influido por los intelectuales católicos europeos del período, como Montalambert o el Cardenal Wiseman, promovió formas que expresaran -según su sentir- el carácter de la fe y la dignidad de la liturgia. Eyzaguirre nació en el año 1817, siendo ordenado sacerdote el año 1840. A partir del año 1852 realizará extensos viajes por América, Europa, Asia y África, interrumpidos por estadías prolongadas en algunas ciudades, particularmente Roma, París y Santiago. Sin haberlo planificado se transformará en un puente entre el Arzobispado de Santiago y la Iglesia Universal; su conocimiento del estado de los asuntos eclesiásticos en todo el mundo era profundo y fruto de una experiencia directa, hablaba de lo que había visto. Estos recorridos reforzaron ciertas ideas que se transformarían en sus banderas de lucha: la conveniencia de liberar a la Iglesia -particularmente en América- de la injerencia de los gobiernos locales, la necesidad de purificar la devoción popular de prácticas inadecuadas y las ventajas de promover nuevas formas artísticas y arquitectónicas -más cercanas a la tradición clásica- a la hora de concebir nuevas iglesias o renovar las antiguas, son algunas de las concepciones que parecen guiar su actuar en los años posteriores. Una buena parte de este viaje quedó recogido en su libro El catolicismo en presencia de sus disidentes, publicado en París. 1 Cfr. Guzmán, Representaciones del Paraíso. Retablos en Chile, siglos XVIII-XIX, pp. 121-127. 463 El año 1855, estando en Roma, Eyzaguirre le propuso a Pio IX fundar un seminario para sacerdotes latinoamericanos en Roma, con el fin obtener un clero con formación homogénea y en sintonía con el Sumo Pontífice. Revisada la propuesta se acordó la conveniencia de realizar un diagnóstico más preciso de la situación eclesial en cada país, entablar relaciones con los obispos correspondientes, recolectar fondos para el futuro establecimiento y reclutar estudiantes para el futuro seminario romano. Inicia así su viaje de reclutamiento y diagnóstico en 1856, recorriendo Brasil, Uruguay, Argentina, Paraguay, Bolivia, Perú, Ecuador, Colombia, Venezuela, México y Cuba, finalizando en 1858. Luego, al retornar a Roma, entrega un informe de lo realizado, el que debió ser evaluado positivamente, pues, en septiembre de 1858 se creaba oficialmente el Colegio Pío Latinoamericano. Las apreciaciones recogidas en este viaje por Latinoamérica fueron publicadas en su obra Los intereses católicos en América, editado en París el año 1859. En este libro es quizá donde mejor se perciben sus ideas sobre la necesidad de purificar las formas de devoción, manifestando su reprobación al describir el sincretismo de ciertas prácticas heredadas del período colonial. También se comienza a mostrar de manera más evidente su visión sobre el arte, refiriéndose concretamente a la función que debía cumplir en la promoción de una piedad más ilustrada, alejada de la piedad sensible que facilitan las obras barrocas. Un primer aspecto que permite comprender, al menos en parte, las perspectivas artísticas de Eyzaguirre, son sus opiniones respecto de las devociones populares y de ciertas costumbres habituales en la fiestas religiosas del período colonial y que aún estaban vivas en muchas regiones de América. Es interesante en este sentido recoger las consideraciones que dejó escritas respecto de una procesión que pudo observar en el puerto de Iquique: “Una piedad más ilustrada trabajaría por desterrar de tales ceremonias todo lo que les acompaña de profano y repugna a la fe que las inspira y las dirige”2. No es posible, en este caso, conocer con exactitud las expresiones de religiosidad popular que ofenden a Eyzaguirre; sin embargo, es posible suponer que diversos aspectos de las prácticas devocionales coloniales -bailes, máscaras y otras manifestaciones- le parecerían del todo inadecuadas3. 2 Eyzaguirre, El catolicismo en presencia de sus disidentes, tomo I, p. 4. El espíritu modernizador o reformista de Eyzaguirre tiene muchas aristas - no desarrolladas en este trabajo- que deben ser entendidas en el contexto de las políticas impulsada por Pio IX, entre las que se pueden mencionar su amplia política de obras públicas y la reforma a los regulares. Cfr. Spagnesi, Edilizia romana nella seconda metà del XIX secolo (1848-1905), pp. 3 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 464 Su extenso viaje por América, realizado entre 1856 y 1858, parece ir acrecentando su aversión por estas manifestaciones de religiosidad popular tan alejadas de lo que él denomina una piedad ilustrada, escandalizándose especialmente de la desidia de los sacerdotes que no ponen remedio a estos abusos. En el registro de su paso por Brasil recoge varias observaciones en este sentido y se demuestra sinceramente preocupado:“Yo he visto la del Espíritu Santo en Río de Janeiro, en Santos y en otras ciudades más o menos importantes del Imperio, y en todas no encontré otra cosa que una mezcla de religión y de superstición”4. Vuelve sobre lo mismo al recordar la fiesta del Nazareno en Salvador de Bahía: “confieso que no me ha dejado recuerdos de edificación…Todos los alrededores de aquella iglesia retumbaban con repetidos truenos de pólvora y de tamboriles”5. En su informe de Ecuador vuelve a aparecer el tema de las fiestas populares al describir las peculiaridades de la solemnidad de Corpus Christi en Tancunga: “Con este motivo muchos de los indígenas se disfrazaban, quien de ángel, quien de demonio y quien de gigante o de turco, y de este modo saltan y danzan por las calles y los caminos, y especialmente en los atrios de los templos y delante de las procesiones. Los indígenas conservan a este respecto algunas supersticiones groseras… Deber es de los párrocos a cuyo cuidado están confiados esos individuos ilustrar y ennoblecer sus sentimientos religiosos con los medios que presenta la religión misma”6. Es tal la impresión que debieron causar en Eyzaguirre estos resabios de las fiestas barrocas y su sincretismo religioso que, muchos años después, al redactar sus Instrucciones para los sacerdotes, parece recordar lo que pudo ver en Bahía o Tacunga “que nada intervenga ni en el templo, ni en las procesiones que se celebran fuera de este, que pueda aparecer ridículo, ni menos digno de la grandeza del objeto al que se refieren. En otros tiempos, en que la sencillez de las costumbres y una piedad más fervorosa solía explicar su fe y su devoción de un modo sensible y material, podían muy bien intervenir en las solemnidades de la Iglesia ciertos aparatos que hoy son chocantes y repugnan con las costumbres de estos tiempos. Tales son, 15-32. En lo relativo a los efectos en Chile de la intervención en los institutos de regulares cfr. Marcial Sánchez, “Órdenes religiosas y congregaciones”, en Marcial Sánchez, Historia de la Iglesia en Chile, los nuevos caminos : la Iglesia y el Estado, Santiago, Tomo III, pp. 57-85. 4 Eyzaguirre, Los intereses católicos en América, vol II, p. 74. 5 Ibid, p. 71. 6 Ibid, p. 11. Fernando Guzmán y Valentina Ripamonti 465 por ejemplo, las danzas delante del Santísimo Sacramento, las máscaras con que vestidos hombres, mujeres y muchachos de ángeles o demonios iban acá y allá en el Corpus Domini; y otras tales como éstas, que por cierto repugnan a la verdadera devoción, y sirven de cobertor en no pocas ocasiones a los más detestables abusos”7. Es interesante observar el contraste que Eyzaguirre traza entre la devoción sensible propia de otros tiempos y la piedad ilustrada que ahora debe primar. Se trata de hacer entender a los futuros sacerdotes la necesidad de promover las formas modernas de religiosidad, para las que, podemos suponer, se requiere un nuevo arte y una arquitectura renovada. En el registro escrito de su viaje por América demuestra cierto interés por la arquitectura colonial americana, sin embargo, en varias ocasiones hace referencia a la imperfección académica de estas construcciones; al referirse al templo de Santo Domingo en Popayán, por ejemplo, señala que este edificio del siglo XVIII, como muchos otros del continente, “sin seguir estrictamente las reglas del arte ni someterse a sus prescripciones, produce sin embargo un conjunto que inspira en el alma recogimiento y devoción”8. Por el contrario, al comentar la Catedral de Bogotá, edificio de clara inclinación clasicista diseñado por Domingo de Petrés y construido entre 1807 y 1823, manifiesta una admiración sin reservas: “una de las más espléndidas de la América española”9. Especialmente significativos son sus comentarios referentes al templo de la Recoleta Dominica de Santiago, en ese momento en construcción; luego de alabar diversos aspectos de la vida conventual se detiene a señalar: “Embellecen la capital de la República con el templo más suntuoso que hasta hoy se ha construido en el continente americano”10. La iglesia diseñada por el italiano Eusebio Chelli, inspirada en el proyecto historicista de reconstrucción de la Basílica de San Pablo Extramuros, corresponde plenamente a las reglas y prescripciones del arte que Eyzaguirre echa de menos en el templo de Popayán. Su predilección por el clasicismo purista11 de la Recoleta Domínica lo 7 Eyzaguirre, Instrucciones para los sacerdotes, p. 252-253. 8 Eyzaguirre, El catolicismo en presencia de sus disidentes, tomo II, p.88. 9 Ibid, p. 218. 10 Ibid, p. 416. El purismo es un movimiento que reúne a arquitectos y artistas germanos e italianos en la búsqueda de un arte cristiano purificado de las influencias del tardo renacimiento y el 11 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 466 pone en perfecta sintonía con las formas que promueve en Roma el papa Pio IX, principal impulsor de la restauración de la Basílica Ostiense12. Las obras que Eyzaguirre envío desde Roma y que han podido ser identificadas fueron concebidas bajo unos principios comunes: respeto por la tradición clásica, predilección por las formas artísticas del primer renacimiento, interés por el arte paleocristiano, utilización selectiva del lenguaje pictórico del barroco. Los altares, pinturas y esculturas que Eyzaguirre adquiere son el fruto del trabajo de artistas que se vinculan, directa o indirectamente, con las premisas artísticas del pontífice. Estando en Roma, en el año 1855, Eyzaguirre encargó varias obras artísticas, entre ellas cinco altares para diferentes iglesias de Santiago. La información documental permite saber que uno iba destinado a la Catedral y otro a la iglesia de Santo Domingo, desconociéndose, por ahora, el lugar al que llegaron los otros tres. El de Santo Domingo debió dañarse de manera irreversible en el incendio que afectó a ese templo el año 1963. El altar de la Catedral, por el contrario, se encuentra actualmente en el primer arco de la nave lateral norte. El Arzobispo Valdivieso escribe una carta agradeciendo al benefactor la generosa donación, texto en el que destaca el hecho de que será “el primer altar de mármol que va a poseer esta Iglesia”13. El contraste entre los retablos barrocos de influencia bávara que aún ornamentaban el templo metropolitano y la simpleza académica del nuevo altar debieron saltar a la vista. Las complicadas coronaciones con ángeles en vuelo y rompimiento de gloria fueron reemplazados por un discreto frontón interrumpido. Las columnas ornamentadas y con capiteles en diagonal se podían comparar con los fustes lisos del nuevo altar; en definitiva, la mesura clásica sustituía el dinamismo general que gobernaba barroco. El texto fundacional de este fenómeno es: Bianchini, Dell purismo nelle arti. Se trata de un manifiesto suscrito por artistas del círculo más próximo a Pio IX como el pintor Minardi y el escultor Tenerani. Es interesante reconocer que no se trata de una preferencia estética demasiado original, otros chilenos como Benjamín Vicuña Mackenna, quien, respecto del edificio de san Pablo extra muros afirma “es una espléndida iglesia de estilo moderno como la Magdalena de París”. Vicuña Mackenna, Páginas de mi diario durante tres años de viaje, p. 244. 12 Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XXVI, carta del Arzobispo Valdivieso a Monseñor Eyzaguirre, f. 105. El altar debió llegar estropeado a Santiago, pues se conserva un contrato de 1870 entre Eyzaguirre y el señor Blanchetau para arreglar y arma un altar en la Catedral; sería el dedicado actualmente a San Francisco de Sales, el primero de la nave lateral norte. Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XXVI, f. 145, Contrato. 13 Fernando Guzmán y Valentina Ripamonti 467 la concepción de los antiguos retablos14. No menor sería el impacto que produciría la comparación entre las antiguas imitaciones de mármol pintadas sobre madera y la suntuosidad y brillo de la estructura de piedra que llegaba desde Roma. No se trataba de una novedad absoluta; el altar de mármol diseñado por Eusebio Chelli para la Recoleta Domínica había desatado tres años antes numerosas muestras de admiración, muchas de ellas recogidas en la prensa. Pero, el regalo de Eyzaguirre venía a extender a la Catedral la modernidad que lucían los dominicos15. Los cinco altares y otras numerosas obras que Eyzaguirre envío desde Roma y otras ciudades europeas, se pueden interpretar como verdaderas semillas sembradas en Santiago, una ciudad en la que los templos aún conservaban su ornamentación barroca. El envío de obras fue para Eyzaguirre una actividad constante a lo largo de sus viajes, como se puede comprobar a través de la revisión de su epistolario. Se puede apreciar que él mismo se hizo cargo de las contrataciones de artistas, pagos y traslados de los cajones con las obras hacia nuestro país, e incluso, en algunas ocasiones, se preocupó personalmente de la instalación de la pieza en su lugar definitivo. Como un interesante ejemplo de estos contratos llevados a cabo por Eyzaguirre para asegurar la realización de las obras encomendadas, se pueden citar los documentos que firmó con los artistas Isidoro y Francisco Blancheteau para la instalación y reparación de los altares destinados a la Iglesia de Santo Domingo y a la Catedral de Santiago16. En el ámbito de la pintura se puede mencionar otro obsequio de Eyzaguirre a la Catedral, cuyas características se pueden conocer por medio de la documentación. Se trata de un lienzo a que hace referencia una carta de Monseñor Valdivieso, fechada el 31 de diciembre de 1858: “el hermoso cuadro de la cena de N.I.J que ha hecho ud trabajar a un artista acreditado, para colocar en el altar de mármol que ud obsequió a nuestra iglesia catedral”17. La pintura fue encargada por Eyzaguirre a Ignazio Tirinelli, artista que ejecutó varias pinturas para la iglesia de Santa María Asunta 14 Cfr. Guzmán, op. cit: pp. 47-67. 15 Cfr. Guzmán, “L’Arte di Roma nel Cile del XIX secolo. Un elemento delle strategie di rappresentazione dell’identita nazionale. Il caso degli altari”. Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XXVI, contrato firmado en Santiago el 11 de noviembre de 1847, f. 147. 16 Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XII, carta de Monseñor Valdivieso a Eyzaguire del 31 de diciembre de 1858, f. 552. 17 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 468 en Segni18 y del que se conserva un obra en el Museo Nacional de Bellas Artes19. El contrato entre Eyzaguirre y Tirinelli fija con mucha precisión la característica de la obra: “Il sig. Ignazio Tirinelli si obliga a dipingare su di una tela alta metre tre meno due centimetri, e largo metri due e 14 centimetri, la cena di nostro Signori cogli apostoli, do presto un cartone dal artista elegitto, e dal comittente aprovatto, meno alcuna variazione nell espretione delle teste e dell’ architettura del fondo”20. No ha sido posible encontrar esta obra, sin embargo, a la luz de las obras de Tirinelli que se conservan en Segni y en el Museo Nacional de Bellas Artes se puede afirmar que el artista presenta el sello purista de Tomasso Minardi, quien fuera su maestro en la Academia de San Lucas en Roma21. Debe señalarse que Minardi era consejero de Pio IX en asuntos artísticos y que su influencia en la Roma de mediados de siglo era muy amplia22. Eyzaguirre, por tanto, está eligiendo a un pintor que está en perfecta sintonía con los lineamientos artísticos de un cercano colaborador del pontífice. Otra obra relevante encargada por el sacerdote chileno es la escultura de su tío Monseñor José Alejo Eyzaguirre que se encuentra en la nave lateral sur de la Catedral de Santiago. Se trata de una representación en postura de orante de tamaño natural realizada por el escultor milanés Giovanni Strazza23. El contrato firmado con el artista precisa algunas de las característica que la obra debe tener: “Il signor Strazza dovra esquire in marmo di Carrara de la qualita della seconda clase, una statua inginocchiatta di grandeza poco prise de livero, pappresca tante S.E. Revma. Monsignor D. J. de Eyzaguirre, que fu eletto Archivescovo di Santiago del Chili, il cui modelo in creta e stato gia presso que abbozzato, ed aprovato dal comitente, a la qual statua dovra essere sottoposta una conveniente base con análoga iscrizione… in quanto alla somiglianza del ritrato non dovra 18 Valenzi, Monseñor Lorenzo Valenzi e la cappella di San Giovanne nella chiesa di Santa María Assunta a Segni. 19 La obra se titula Soldado de la Guardia Nacional Romana de 1847 y tiene el número de inventario E-427. 20 Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XXVI, contrato firmado en Roma el año 1855, f. 97. Tirinelli fue premiado en el concurso académico de 1840. Betti, “Discorso sugli atti del gran concorso Balestra de Belle Arti”. 21 22 Capitelli, Mecenatismo pontificio e borbónico alla vigilia dell’Unita, pp. 36-39. 23 Ibid, pp. 178-179. Fernando Guzmán y Valentina Ripamonti 469 l’artista allontanarsi da un daguerrotipo che gli a stato remesso”24. La obra presenta un grado de verismo que sorprende, particularmente al observar la morbidez del cojín, el carácter del rostro y los pliegues del hábito. Strazza había recibido la formación naturalista propia de la escuela de Milán; sin embargo, su paso por la Academia de San Lucas y su trabajo con el escultor Tenerani lo pusieron en la órbita del purismo y de aquellos creadores cercanos a la orientación pontificia25. Es importante destacar que no se trata solamente del envío de algunas piezas significativas, como lo son los altares de mármol, la escultura de Strazza o la pintura de Tirinelli; se podría afirmar que la voluntad del sacerdote es sembrar Santiago con obras europeas, principalmente romanas, asegurando así el arraigo de las nuevas formas26. A su muerte, el año 1875, decenas de obras romanas comenzaban a modificar el aspecto de las iglesias de Santiago, el barroco local perdía terreno frente al nuevo modelo artístico que proyectaba eficazmente la política de Pío IX en la periferia del mundo católico. A la luz de los antecedentes disponibles se puede afirmar que para Eyzaguirre el encargar, supervisar y despachar obras artísticas romanas, o de otros orígenes, para Chile fue una actividad permanente; se trata de un intenso flujo de objetos que comienza el año 1855 y se sostiene en forma estable por lo menos hasta 1870. Al analizar las características estéticas de algunas de las obras enviadas, se puede concluir que ellas corresponden al tipo de arte y arquitectura que Pio IX promueve. No se trata del envío de obras europeas por el sólo prestigio que su origen les puede dar, sino que existiría una inclinación estética precisa, una preferencia por una producción clasicista que a mediados del siglo XIX resulta ser, al menos en Europa, totalmente anti moderna. Toda esta preocupación por encargar y enviar obras, con los gastos económicos que esto implica, obedecen a un propósito bien definido: Fondo Jaime Eyzaguirre, Volumen XXVI, contrato firmado en Roma el 14 de enero de 1856, f. 96.. 24 Mazzocca, “Da Oriente a Occidente: nuovi protagonista sulla scena romama”, en Maestà di Roma da Napoleone all’Unità d’Italia. Universale ed Eterna. Capitale delle Arti, p. 373. 25 La revisión del fondo Jaime Eyzaguirre ha sido selectiva, un rastreo completo de la documentación permitiría, probablemente, formarse una idea aún más precisa del volumen y la naturaleza de los envíos. Otra vía de indagación interesante se podría realizar en los archivos de las instituciones religiosas que aparecen recibiendo obras por intermedio de Eyzaguirre, como las Monjas Claras, los agustinos y los dominicos. 26 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 470 promover una reforma del arte sagrado que permita reemplazar las soluciones del barroco hispanoamericano por obras academicistas que se ajusten a las verdaderas reglas del arte. Para Eyzaguirre el arte colonial promovería una devoción sincrética y emotiva y sus formas muchas veces serían contrarias al decoro que debe imperar en la casa de Dios. El arte producido en Roma sería apropiado para impulsar una piedad ilustrada y poseería la solemnidad adecuada para servir de marco a la liturgia católica. La renovación del arte sagrado y la búsqueda de un auténtico arte cristiano, purificado de elementos espurios, no es una idea original de Eyzaguirre. Se trata de un movimiento europeo que tiene diversas manifestaciones durante el siglo XIX. Los ensayos del Cardenal Wiseman, los escritos de Montalembert y la política artística de Pío IX apuntan en esta dirección. La búsqueda de unas formas artísticas que sirvan verdaderamente a la piedad y a la liturgia es un propósito en el que Eyzaguirre no está sólo, lo peculiar es que la mayoría de las obras resultantes de este proceso son juzgadas en Europa como tradicionalistas, mientras en Chile, como en el resto de Latinoamérica, serán la imagen de una iglesia moderna que se sacude las rémoras de la tradición colonial. 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São muitos os motivos para tamanha popularidade da figura de São Francisco. Um deles, pode ser atribuído à repercussão do interesse pelo mundo e pela individualidade em voga na época, interesse este que se afinava perfeitamente ao sentimento renovado dos franciscanos pela natureza e pelo homem2. Outro motivo, é o fato destas imagens, assim como outros meios que propagavam a santidade de Francisco, serem usadas como instrumento que fortalecia a política reformista do papado nas regiões da Itália, onde o Império era hegemônico na primeira metade do século XIII. Isto foi muito bem analisado por André Miatello3 no que se refere aos textos relacionados com a memória e o culto dos santos produzidos na época. Segundo o autor, esta retórica religiosa se prestava em muito à pacificação das cidade beligerantes nas revoluções comunais. Tal BRANDÃO, Angela. A Imagem de São Francisco na Arte. Projeto para Recuperação da História da Imagem de São Francisco encontrada no Rio Iguaçu. Curitiba: Petrobrás, 20002002. 1 2 Ibid. MIATELLO, André Luis P. Santos e pregadores nas cidades medievais italianas: retórica cívica e hagiográfica. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. 3 473 pacificação era um dos atributos do legado papal de Gregório IX4. Embora a pesquisa do autor esteja centrada no relato da vida dos santos, isto é, na hagiografia, vemos que ela se adéqua perfeitamente à produção de imagens como as de São Francisco de Assis. Não se trata, naturalmente, de uma conformação casual entre texto e imagem, pois ambos eram usados em função dos interesses eclesiásticos que relutavam em absorver a proposta inovadora e revolucionária de Francisco para a Igreja. Assim como Miatello, a autora Chiara Frugoni utiliza a hagiografia como fonte nos estudos desse momento histórico, contudo ela não deixa de se ocupar também com a iconografia acerca do assunto, o que contribui para o surgimento de uma leitura inédita sobre a vida do santo. Interceptando texto e imagem, a autora, em seu livro Francesco e l’ l’invenzione delle stimmate: una storia per parole e immagini fino a Bonaventura e Giotto5, evidencia o processo de construção do personagem Francisco pela Igreja, transformando-o num “alter Christus” através da “invenção” dos estigmas, com o objetivo de reorientar a ordem dos frades menores. Estes eram de suma importância para o meio eclesiástico no momento, pois através da ordem a imagem da igreja, há muito corrompida, dignificava-se. Outra curiosa relação entre texto e imagem podemos encontrar em A arte da memória de Francis Yates6. Nesse estudo, a autora discorre sobre a técnica, utilizada desde os oradores gregos, para memorizar informações através de imagens mentais. Para melhor se fixarem na memória, as imagens escolhidas deveriam ser incomuns e impressionantes. Na Idade Média, esta técnica sofreu algumas transformações e foi concebida, pela escolástica, segundo intenções morais e piedosas. Neste caso, as imagens mentais eram ainda aquelas, incomuns e impressionantes, porém, de acordo com os preceitos de Tomás de Aquino, seriam melhor lembradas pela alma quando assumissem uma forma corporal – “similitudes corporais”. Naturalmente, a oratória na Idade Média ressurgiu na forma de sermão e, assim sendo, a memória artificial foi utilizada, especialmente, para a rememoração destes. Contudo, ela passou a ser exercitada também 4 Ibid.,p.66. FRUGONI, Chiara. Francesco e l’invenzione delle stimmate: una storia per parole e immagini fino a Bonaventura e Giotto. Torino: Giulio Einaudi, 2010. 5 YATES, Francis. A arte da memória. Trad. de Flavia Bancher. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. 6 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 474 por leigos, já que frades promoviam e recomendavam a todos a técnica. À vista disso, Francis Yates sugere que o sistema de imagens, criado pelo exercício da memória artificial, possa ter motivado representações visuais. Algumas obras de arte, sobretudo as de Giotto, são analisadas por Yates do ponto de vista da memória. Este, certamente, é um assunto amplo, mas muito útil à pesquisa quando consideramos a reciprocidade e interdepedência entre texto e imagens. Em tal caso, não só as imagens visuais como também as mentais. Um exemplo claro do diálogo existente entre diversas fontes, hagiográficas e iconográficas, pode ser constatado naquela que é considerada a primeira imagem de Francisco [FIG.1], ainda em vida, realizada em 1223, segundo alguns historiadores7. Pelo fato desta imagem ser anterior à canonização, que se deu em 1228, Francisco aparece sem a auréola, própria dos santos, e sem os estigmas que lhe foram atribuídos após a beatificação. Ele leva em sua mão esquerda um cartel com a inscrição “Pax hic domui”, enquanto o gesto da mão direita, na altura do peito, indica a importância da mensagem que, como observa Miatello, demonstra a missão pacificadora de Francisco. Tal missão se torna ainda mais evidente por se tratar de seu primeiro “retrato”8. No entanto, considerando as observações de Francis Yates, surge-nos a questão: seria possível vermos esta imagem como a exteriorização de um “signo mnemônico”? Capaz de imprimir na memória “imagens de virtudes ou de vícios”9? Como dito anteriormente, a arte da memória na Idade Média foi concebida segundo intenções morais e piedosas. Isto implica no fato da técnica, neste período, estar “relacionada à rememoração do Paraíso e do Inferno, e às virtudes e vícios como “signos mnemônicos”. Tais signos, que guiam as trilhas da lembrança, deveriam ser escolhidos e acomodados em locais conforme algumas regras que garantissem sua eficácia. São elas: quanto à iluminação, o lugar deveria ser nem muito escuro nem muito iluminado, para que as figuras não fossem obscurecidas ou ofuscadas; o 7 THODE, Henry apud BRANDÃO, Angela. op. cit., p.1. A santidade de São Frâncico de Assis foi reconhecida em vida e sua canonização realizada logo após a sua morte. Desta forma, suas primeiras imagens foram feitas ou descritas por quem o conheceu pessoalmente, o que aproxima estas representações da concepção de retrato que temos no sentido moderno: como registro das feições particulares de uma pessoa que se colocada diante do pintor, que está na memória deste ou que são descritas por alguém que a conheceu pessoalmente. 8 9 YATES, op. cit., p. 84 - 85. Sintia Cristina da Cunha 475 sentido de espaço e profundidade deveria ser preservado, para que a imagem se destacasse em seu loci; as figuras deveriam sensibilizar, estimular a imaginação e as emoções através das metaphoricas10; e, enfim, deveriam tomar a forma de um corpo. Considerando as possíveis aproximações entre essas instruções e a representação de Francisco, vemos que o pintor esmerou-se para destacar a imagem em seu loci. Ele o fez por meio da iluminação, do sentido de espaço e profundidade – ainda que a perspectiva na pintura estivesse por ser aprimorada. Além disso, tanto o cartel com a inscrição “Pax hic domui” como o próprio Francisco, já conhecido como um pacificador, podem ser tomados como metáforas que “sensibilizam mais a alma e, por isso, auxiliam melhor a memória”11. Neste caso, a imagem visual de Francisco teria brotado de uma imagem mental de virtude, impressa na memória como “signo mnemônico” para ajudar as pessoas a alcançar o Céu. Além das possíveis relações entre texto e imagem, vemos que nesta representação estão presentes algumas das premissas formais da arte bizantina e, mais especificamente, do ícone bizantino (embora não tenha a auréola e o fundo dourado que caracteriza o ícone). Este, que surge com o propósito de mediação entre o mundo divino e espiritual, é reconhecido pela sua imobilidade e frontalidade. A falta de movimento é um dos fatores que, autores como Père Paul Florenski12, entendem lhe proporcionar um caráter eterno, pois o movimento estaria mais associado à vida que é finita. Já a posição frontal, hierática e a forma como o ícone nos olha, atestam a presença de um corpo divino entre os homens. Embora, a imagem de São Francisco contenha elementos plásticos que revelem um vislumbre de dramaticidade e movimento - gesto das mãos e pregueado da túnica -, os aspectos formais mencionados da imagem icônica se sobressaem. Francisco está representado de frente e tem algo imobilista de quem se faz retratar. Outro detalhe que confirma a analogia é a proporção alongada do corpo do santo, acentuada pelo capuz alto, o que usualmente tenciona a relação céu e terra nos ícones sagrados. O ritmo mais linear que volumétrico da figura intensifica esta tensão. Temos nesta breve aproximação feita entre a imagem de São Francisco e a arte bizantina um dos principais componentes responsáveis pela 10 11 Ibid.,p.91. Ibid., p.90. FLORENSKY, P.P. La Perspective Inversée suivi de L’Iconostase. Suisse: L’Age d’Homme, 1992. 12 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 476 dinâmica cultural que gerou o Renascimento em meados do século XIII. Estes componentes foram muito bem detectados por Luiz Marques no ensaio As Origens Mediterrâneas do Renascimento13, no qual é demonstrado o descompasso existente na época entre a escultura, assentada no mundo antigo, e a pintura, guiada pela imaginária bizantina. Segundo o autor, este descompasso subsistia em função de duas forças: a do Império e a da Igreja. A primeira era exercida por Frederico II que na Itália meridional promovia um revival da arte antiga, a segunda por Francisco De Assis (curiosamente, não o papa) que na Itália central era retratado por artistas toscanos que ainda repetiam modelos da arte bizantina. Vale ressaltar, que a região da Toscana recebeu forte influência de Bizâncio a partir de 1204, quando “o selvagem saque de Constantinopla pelos Cruzados da Quarta Cruzada levara a uma diáspora de artistas constantinopolitanos pela Europa centro-oriental e pelos Bálcãs, mas também para a península itálica e inclusive para as cidades-porto do mar Tirreno, como Pisa”14. Desta maneira, se a escultura era certamente a arte que propagava a imagem de Frederico II, já que este era um grande admirador do mundo antigo, não seria o bronze e a pedra os elementos da arte que divulgava a santidade de Francisco, mas sim a pintura. Nela, a tradicional associação entre a luz do mundo e a luz divina, cara à arte bizantina, era mais facilmente assimilada15. No entanto, a arte bizantina entra em declínio na Europa e, em especial, na região da Toscana em meados do século XIII. Os fatores, comentados por Luis Marques, que favoreceram este esvaecimento estão relacionados a um certo dinamismo que tomava a situação política e cultural européia. Segundo o autor, este novo cenário era favorecido por três forças diversas. Uma delas, como já visto, era o fato do imperador promover a sua imagem através da arte antiga, isto é, a arte dos Césares romanos. A força com que arquitetura gótica, de origem francesa, expandia-se pela Europa, também favorecia o declínio da arte bizantina, pois novas imagens e formas escultóricas se proliferavam à medida que se fortalecia a realeza capetina. A última, diz respeito ao próprio São Francisco de Assis, já que as ordens mendicantes tinham favorecido a intervenção da Igreja nas cidades 13 MARQUES, Luiz. “As origens Mediterrâneas do Renascimento”. In Renascimento Italiano: Ensaios e Traduções. Maria Berbara (org). Rio de Janeiro: Nau Editora, 2010. pp. 215-250. 14 Ibid., p.228. 15 Ibid., p.227. Sintia Cristina da Cunha 477 italianas, “promovendo uma nova espiritualidade e uma nova agenda de representação das vidas dos santos, com decisivas implicações artísticas”16. As primeiras imagens de São Fransisco de Assis encontravam-se, desta forma, num momento crucial da História da Arte. Nelas estão expressas um período de procura pela arte nacional italiana que as colocam na origem do que, mais tarde, seria intitulado como Renascimento italiano. Autores como Henry Thode vão além nesta relevância, pois vêem em Francisco, na sua empatia com a natureza e com o homem, a origem própria deste Renascimento. Entretanto, é notável a importância da referência à arte antiga no império de Frederico II, pois foi na escultura, máxima expressão da cultura visual antiga, que a referida arte nacional italiana teve suas bases assentadas. Não que a arte bizantina e gótica foram categoricamente rejeitadas em nome desta arte nacional, mas que o revival desta arte antiga impôs os limites de introdução daquelas, ao mesmo tempo que permitiu a assimilação de ambas. Nesta fase de afirmação da arte italiana, faltava à pintura da época o atributo da narrativa, própria da civilização romana. Isto foi alcançado num momento de fusão entre a pintura e a escultura ou, como nas palavras de Marques, num momento de “fecundação, na Toscana, da pintura pela escultura”17. Neste processo, a pintura de Cimabue assimila os atributos expressivos da escultura, porém, este notável acontecimento para a história da arte atinge maiores proporções em Giotto, nos afrescos da Basílica Superior de Assis. No transepto direito da Basílica inferior de Assis temos a representação de Nossa Senhora com o Menino Jesus, quatro anjos e São Francisco (12781280). Nesta obra de Cimabue [FIG.2], elementos próprios dos hieráticos ícones tais como, a ausência de pathos, a imobilidade e a frontalidade, são substituídos, não pelo seu total oposto – o que nos conduziria novamente a uma analogia com a arte bizantina em seu momento de máxima expressão -, mas por um sutil desejo de revelar os sentimentos humanos. Isto é bem visto na forma como o menino Jesus toca com a mão direita o manto de sua mãe e demonstra certa intimidade com ela, algo dificilmente visto nas imagens icônicas. Porém, como próprio da estatuária antiga, trata-se aqui não da demonstração exasperada de sentimentos, mas do controle sobre estes. A virgem entronada na diagonal também diverge da “maniera greca” 16 17 Ibid., p. 228. MARQUES, op. cit., p.231. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 478 (bizantina). A frontalidade e estaticidade das virgens icônicas que atestam uma presença que transcende a realidade, é substituída pela lateralidade do corpo, pelo seu movimento e volume, o que torna mais humana suas representações. Embora a digressão para outra imagem, que não a de Francisco, seja útil para melhor compreeder a apropriação da escultura antiga pela pintura, voltemos para a dele. À direita da composição, o “Pobre de Cristo”, foi retratado segundo à descrição deixada pelo seu primeiro biógrafo, Tomás de Celano. Apesar da imagem de São Francisco de Assis ainda se parecer muito com a de um ícone bizantino, seja pela frontalidade e imobilidade seja pela forma como ele fita o espectador, as linhas da face e do corpo são menos lineares, delgadas e mais volumétricas. Como podemos perceber, ele aqui já possui a auréola e os estigmas do santo, contudo aparece menos como figura hierática e mais como figura humana, o que bem demonstra a forma como o sagrado, aos poucos, passava a ser pensado também no mundo material. Com os estigmas à mostra nos pés descalços e nas mãos que seguram um livro, Francisco não apenas aparece como um homem humilde nesta imagem, como também é humildemente representado – pequeno ao lado da celébre Maestà e dos anjos, está meio deslocado da composição por não ocupar o mesmo degrau no trono, no qual estão assentadas as demais figuras. Nesta imagem, São Francisco de Assis é ainda um simples monge, embora santo, que ainda não ocupa a posição notória que lhe conferiram, mais adiante, outros artistas e escritores. Na Basílica superior de Assis, a iconografia de Francisco, elaborada desde o século XIII, ganha de fato, com Giotto, valores artísticos da Antiguidade greco-romana. Porém, para este, “o antigo não é sobrevivência, evocação, nem modelo, mas experiência histórica para investir no presente”18. Desta forma, Giotto, além de acrescentar à imagem de São Francisco novos modelos de representação, inspirados na escultura clássica, também resgata e reelabora, para o seu tempo, o sentido histórico destas esculturas. Sobre esta mutação na representação de São Francisco, Giulio C. Argan comenta: ARGAN, Giulio Carlo Argan. História da Arte italiana. V. II : De Giotto a Leonardo. São Paulo. Cosac & Naify, 2003. p.22 18 Sintia Cristina da Cunha 479 (...) o objetivo é delinear em sentido histórico, e não lendário ou poético, a figura do santo “moderno”, criador de um movimento em triunfal expansão, cuja força é impulso à renovação da Igreja. A figura que se destaca nos afrescos de Giotto não é certamente a do “pobrezinho” descrito por Tomás de Celano ou do asceta sofredor retratado por Cimabue na Basílica inferior, é uma pessoa cheia de dignidade e autoridade moral, cujos atos, antes de milagres, são feitos memoráveis, históricos.”19 O afresco O sonho de Papa Inocêncio III de Giotto mostra com clareza as diferenças entre as representações deste e de Cimabue [FIG.3]. Francisco, que ocupa praticamente uma posição central na composição, é retratado, bem à maneira de Giotto, como uma massa fechada, na qual o gesto não excede à função da ação humana. A atitude, de ordem metafórica, de se colocar como um dos pilares de sustentação da igreja, demonstra a importância de Francisco na política reformista do papado, para quem o santo deixa de ser o “Pobre de Cristo” para ser um homem da história. Em paralelo a isto, as obras biográficas e hagiográficas em torno da vida de São Francisco de Assis também se modificam conforme sua imagem se torna notória. Tomás de Celano em Vida I, faz uso da força que o reconhecimento papal atribui à pregação minorítica. Celano descreve, assim como acabamos de constatar nos afrescos de Assis, a emancipação do santo de apenas um pregador popular ambulante a um pregador “investido de autoridade apostólica”20. Deste modo, é importante observarmos como estes escritos, juntamente com as imagens, contribuíram para o destaque da figura de São Francisco de Assis. Eles nos ajudam a entender a maneira como o Francisco icônico, que ultrapassa o visível, vai se mostrando na visibilidade de sua imagem humana e, por conseguinte, histórica. 19 Ibid., p. 23. CELANO, Tomás de . “Primeira vida de São Francisco”. In São Francisco de Assis: Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 6. Ed. Petrópolis: Editora Vozes. P. 210. 20 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 480 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERZONI, Maria Pia. Francesco d’Assisi e Il primo secolo di storia francescana. Torino: Ed. Einaudi,1997. ALLODI, L. “Il retrato di San Francesco nel monastero di Subiaco”. In: Miscellanea francesa. XIII (1911).pp.26-36. ARGAN, Giulio C. História da Arte italiana. V. II : De Giotto a Leonardo. São Paulo. Cosac & Naify, 2003. . História da Arte italiana. V. I : Da Antiguidade a Duccio. São Paulo. Cosac & Naify, 2003. BASCHET, Jérôme. Inventivité et serialité des images médiévales: pour une approche iconographique élargie. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 51e Annés, No 1 (jan.-Feb., 1996), pp. 93-133. ___________________. Baschet, Jérôme. L’image-objet. In; Baschet, Jérôme. L’iconographie medieval. Paris: Gallimard, 2008, pp. 26-64. ___________________. Baschet, Jérôme. “Le boustrophédon de San Giminiano: noeuds d’images et spatialization du temps:. 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Investigador del Centro de Estudios Patrimoniales de la Facultad de Artes Liberales de la Universidad Adolfo Ibáñez de Santiago de Chile. INTRODUCCIÓN La iglesia católica presente en la historia de Chile desde la llegada de los españoles ha tenido y tiene una importancia en el quehacer nacional, hecho que la ha convertido en una institución generadora de intereses particulares y sociales, siendo muchas veces portadora de verdades que han repercutido y traspasado las distintas épocas de nuestra historia. Uno de los vehículos más utilizados para el traspaso de la información, como también para dar cuenta de la posición de la Iglesia es la Parroquia, primeramente, en la figura del párroco, además de las manifestaciones artísticas que se han ido incorporando paulatinamente no solo como un al ajamiento, sino que también como una forma de evangelización. El estudio pretende acercarnos a esta institución, buscando a través de las reciprocidades culturales y sociales demostrar el grado de importancia que tuvo como centro cívico, como guardadora de las estadísticas poblacionales de la época y de un acervo artístico que se fue nutriendo de elementos y estilos en distintas épocas. LA PARROQUIA Cuando nos enfrentamos al término parroquia, la mayoría de las personas lo asimilan a un templo, o a un orden con relación a la religión Católica que registra inscripciones de nacimientos, matrimonios, defunciones, primeras comuniones o confirmaciones. El término parroquia proviene del latín paroecia cuyo origen es del griego napolkia, cuyo significado se relaciona a casa o conjunto de las mismas con sus habitantes. En latín también 489 se le conoce como parochia, como un derivado de parochus, cuyo significado guarda relación con proveer o suministrar algo, como derivado del griego nápoxoc. Sin embargo, la definición que mejor podemos utilizar hoy responde a un “distrito o territorio designado por el obispo, con límites fijos, donde existe un rector permanente con facultad de rejir al pueblo comprendido en él, i de administrarle los sacramentos i otros auxilios espirituales”. Para el siglo IV d.c., no se conocía la parroquia como hoy, solo existía una edificación de templo en la capital de ciudad, en la cual el obispo del lugar realizaba los servicios religiosos a las personas que vivían en las áreas más rurales para la vivencia del culto divino. Eduardo Regatillo, nos cuenta que en Oriente se puede acceder a documentación que establece la existencia de comunidades con sacerdotes a su cargo, en Palestina y Alejandría previo al siglo V. Sin embargo, para Occidente, se va a situar un siglo más tarde, periodo en el cual ya había terminado la persecución intensa en contra de los cristianos, época de Constantino que contaba con pocos templos que no daban abasto para la cantidad de feligreses que llegaban y se ubicaban en las comarcas, por ello, se decidió crear una figura de sacerdote asistente enviando a los corepsicopos, que eran como una especie de obispos auxiliares que acudían desde la ciudad a los campos. En el Concilio de Laodicea en 364 d.c., aparecen los periodeutas o sacerdotes circulantes o visitadores quienes serán los que reemplazarán a los obispos auxiliares y serán enviados por los obispos desde la capital para que en los pueblos y lugares más alejados enseñasen las verdades de la fe, la moral cristiana y suministrasen los sacramentos. Dentro de las particularidades de este método, era que no siempre el mismo sacerdote acudiría a una comunidad en particular con frecuencia, sino que rotaría por otras a voluntad del obispo, evitando con esto caer en excesos de confianza o relajo en la encomienda, ya que una vez terminado el trabajo evangelizador volvían al templo Catedral para la asignación de una nueva tarea. Con el pasar de los años, la población a servir comenzó a ser más numerosa, creando la necesidad de nuevos asentamientos de curas en los distintos pueblos y campos. En la medida que se iban formando las nacientes comunidades, se construían también templos y se creaba la obligación de un religioso permanente en ellos. Y como una forma de asegurar el sustento, que también no entorpeciera su labor evangélica, nació el primer paso para el beneficio que corresponde al “derecho a percibir los frutos de los História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 490 bienes que están perpetuamente ajenos a cada título y ministerio, el cual por autoridad eclesiástica, se asigna por el oficio a los clérigos para que vivan de él”. Si bien en los primeros tiempos estos beneficios eran desconocidos desde este punto de vista, se sabe que los clérigos siempre han tenido derecho a vivir de las dádivas del altar, pero por muchos siglos lograron alimentarse del erario común, naciendo estos beneficios de la porción de bienes de la masa común, que al morir el sacerdote volvían al acerbo diocesano, sin embargo, no contamos con una fecha clara para poder establecer esta responsabilidad de la comunidad, solo sabemos que en la medida que existía necesidad se fue remediando en el camino. El nacimiento de lo que hoy conocemos como parroquia no es una creación meditada para los fines que fueron fundadas, sino más bien, consecuencia del desarrollo natural del cristianismo, lo que sí se puede establecer es que surgieron primero las rurales antes que las urbanas, ya que estas últimas contaban con asiento episcopal. Su origen se remonta desde fines del siglo IV e inicios del V, sin embargo, su instalación en las ciudades no se vio hasta avanzado el siglo X, con dos únicas excepciones: Alejandría y Roma ya que eran cabecera cardenalicia. En numerosos textos se establece que a partir del siglo XI se fueron introduciendo en todas las ciudades episcopales. Para el año 1234, aún no aparecen como obligatorias en las Decretales de Gregorio XI. Con el avanzar de los años, se establecieron en los pueblos numerosos oratorios y capillas en distintas partes como palacios, monasterios u otros lugares que tenían un sacerdote para celebrar la santa misa, pero uno de los motivos principales por el cual acudían los feligreses a estos lugares era para la recepción del bautismo, por ello se les conocía como las bautismales, ya que era el único lugar físico en el cual se podía recibir este sacramento. El sacerdote que estaba a cargo de estas, se le llamaba acripreste o primer presbítero del distrito. También se les conocía con el nombre de plebano, ya que tenía a su cuidado la población campesina, su plebe. Estas nuevas iglesias, se comenzaron a emancipar de las bautismales y adquirieron el nombre de parroquias menores, naciendo de esta forma la distinción entre las iglesias matrices y las filiales. El Concilio de Trento fue el que entregó la primera disposición o ley sobre la parroquia y sus asuntos. En la sesión 24, capítulo 13 de reforma se establece: “El Santo Concilio ordena que para mejor asegurar la salvación de las almas a ellos confiadas, asignen a cada grupo de fieles un párroco pro- María José Castillo Navasal 491 pio y perpetuo… o provean a esta necesidad de otro modo más provechoso, según las conveniencias locales… Que los obispos se apliquen a fundar parroquias en las ciudades u otros sitios que aún no las tienen”. De la misma manera, ordena este Concilio los límites territoriales que tendrán que tener y establece el modo de evitar el servicio de otros párrocos fuera de su jurisdicción. Hace una distinción en cuanto una parroquia estuviera adscrita a algún cabildo o monasterio, estableciendo la cura de almas a un vicario y no párroco. Se hace importante destacar que la parroquia no es una institución divina, sino meramente eclesiástica, esto se refiere a que es instituida por los hombres para un mejor ordenamiento del trabajo evangelizador. La Iglesia parroquial Se le denomina bajo este nombre a la sede de la parroquia que cuenta con templo propio o con solo ser persona jurídica (1918) y será el lugar donde el cura de almas ejercerá su ministerio. La edificación de templo será de uso exclusivo de la parroquia para evitar conflictos con otras entidades como por ejemplo órdenes religiosas o instituciones vinculadas a ellos. La propiedad de la iglesia parroquial podrá ser variada, desde la fábrica de la misma, pudiendo pertenecer a “otra persona moral eclesiástica” o a un particular, ya sea de un cabildo, orden tercera, cofradía, mitra, orden religiosa o de un particular. Esto significa que todos los bienes que se encuentran en el interior puede que sea de tercero y que en conjunto conforman los elementos para el servicio de la misma parroquia, esto significa que si el ordinario (obispo) denomina a un templo como parroquial que no sea diocesano no lo hace poseedor de sus bienes tanto muebles como inmuebles, sino sólo del uso como parroquia. Lo único que será de propiedad exclusiva de la diócesis, son los libros sacramentales, guardadores del cumplimiento de los sacramentos adquiridos por la feligresía.Cuando nos referimos al término fábrica del templo, esto implica no solo su erección canónica como tal y la asignación de un sacerdote para brindar los servicios religiosos en ella, sino que también a la construcción y al ajamiento de templo. En todo el período virreinal los medios económicos para hacerlo eran compartidos tanto por la corona como por su feligresía como una forma de asegurar la instalación de la parroquia y de un sacerdote estable, feligreses que siempre se encontraban preocupados del bienestar de su cura y que no le faltara a lo menos lo más elemental. Con el pasar de los años y lo turbulento que es nuestro territorio colmado de desastres naturales y otros de origen antrópicos, la costumbre mandó la conformación de una junta de fábrica, la História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 492 que se encargaba de realizar todas las gestiones, tanto políticas, técnicas, económicas para conseguir los medios necesarios para la adquisición de los materiales, autorizaciones, planos y mano de obra para levantar el edificio, costumbre muy desarrollada y exitosa en nuestro territorio. NUESTRO SEÑOR CRUCIFICADO DE TINGUIRIRICA La parroquia de Nuestro Señor Crucificado de Tinguiririca, ubicada en la Región del Libertador Bernardo O’Higgins en Chile, nace como una pequeña capilla que colaboraba al servicio de las personas que vivían en esa zona. Para 1860 se obtenía la autorización de oratorio privado, entregándole la comisión “necesaria, i de cuya visita se pondrá fé en esta licencia, pueda celebrar o hacer celebración diariamente, i sin excepción de los días mas solemnes, el Santo Sacrificio de la Misa”. Con esta disposición, la vida de la comunidad se fue incrementando, solicitando en 1871 se realizara un informe para confirmar que atendía primeramente que atendía una cantidad no inferior a seis mil almas y que además contaban con un lugar, templo adecuado para los usos que se requerían, Así, en el informe emitido por el párroco de San José de Toro, localidad que se ubicaba a más de ocho leguas de distancia, nos cuenta: “La capilla es nueva i está por consiguiente en buen estado, su tamaño es de cuarenta i seis varas incluso los corredores de que está rodeada tiene adparte una piesa de sies varas cuadradas para sacristía”. En cuanto a los paramentos: “Dos ornamentos blancos, uno colorado i uno morado, tres alvas…un sagrario, un santo cristo de regular tamaño, envuelto, un cuadro de la misma imagen en regular estado, pintura antigua… el calis i 4 imajenes son nuevas i me parece que son de plata: están doradas por dentro i el dorado parece fino… la capilla esta edificada en un terreno comprado con el objeto de trabajar una iglesia i consta de una cuadra… La capilla está blanqueada, el pavimento enladrillado, las puertas tienen cerradura, las ventanas están con vidrieras”. Información más que suficiente, para otorgar el grado de Viceparroquia, Según el auto de erección se sabe que la iglesia se encontraba en una propiedad “de varias cuadras” donada por los vecinos, con templo, casas parroquiales y cementerio, además de otros recursos para la congrua sustentación del Párroco”. María José Castillo Navasal 493 Para el terremoto ocurrido en la zona central de Chile el 27 de febrero del año 2010, el daño provocado a los edificios de estas características en la Diócesis de la Santa Cruz de Rancagua, a la cual pertenece esta parroquia en particular, fue de gran magnitud, el 85% de los templos se encontraba con algún tipo de daño tanto estructural o total, dentro de estos últimos se ubicaba esta edificación. Si bien la respuesta fue rápida dentro de lo que ocurre generalmente en estas circunstancias, muchas personas dedicadas al patrimonio y rescate artístico concurrieron a las horas siguientes para constatar el estado general de lo ocurrido, la desolación fue la que cubrió toda la zona. El templo de Tinguiririca tuvo un daño estructural de grandes proporciones, no permitiendo su utilización, decretando su demolición. En una de esas inspecciones, fue encontrado un óleo cuyas dimensiones corresponden a 216 x 128 cms. que representa a un Cristo crucificado en primer plano, el cual se encontraba en el retablo del altar mayor, retablo que se desfragmentó por la magnitud del telúrico 8,2 en la zona, rasgando el óleo en varias fracciones. El sacerdote, luego de rescatarlo porque era la imagen que representaba la advocación del templo y en el fondo representaba una cierta identidad para los fieles, lo ubicó en el suelo embaldosado esperando tomar una resolución de qué hacer con él. Cuando llegó el equipo patrimonial del Obispado le realizamos las consultas de la obra y su procedencia, según sus comentarios nos indicó que le habían contado que era una pintura que había realizado un antiguo sacerdotes que permaneció por 65 años como párroco, hasta más o menos los años 70 y que era una copia de uno similar que se encontraba en una localidad cercana, no entregándole ningún valor, más aún que por el estado de deterioro en el cual se encontraba él creía que sería desechado. A simple vista, el relato no se ajustaba a la obra, por ello, se le propuso retirarlo y cotizar su restauración, ya que el entelado, bastidor y otras características no indicaban precisamente que fuera del siglo XX, sino que de una mayor antigüedad. Con la obra ya resguardada, se inició la investigación del caso, encontrando en el archivo de la Diócesis, en el primer inventario de bienes registrado al pasar a ser Viceparroquia, la mención de un cuadro de un Cristo crucificado “un cuadro de la misma imagen en regular estado, pintura antigua…”(1871). Los primeros análisis de la obra, realizados por una restauradora profesional, arrojaron que efectivamente contaba con una tela con características História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 494 del siglo XIX, confirmando con esto, en forma preliminar, una data mayor a la conocida por el sacerdote, información que sumada a la obtenida en el inventario podría acercarnos a pensar o proponer que el cuadro nombrado en dicho inventario podría corresponder a la pintura que tuvo inicialmente la capilla, teoría apoyada por el colectivo recuerdo de la comunidad quienes aseguraron que por generaciones esa pintura siempre había estado en ese lugar. 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Universidad de los Andes, Santiago de Chile Introducción En el Museo de Artes Universidad de los Andes, en Santiago de Chile, se exhibe una imagen tallada y policromada de “san José con el Niño” que ha sido fechada como factura del siglo XVIII. Se trata de una escultura de bulto redondo de 104cm de alto, con una clara tendencia naturalista y postura dinamizada por medio de un contrapposto. Sus ojos de cristal, así como la carnación, embolado, estofado y policromía para imitar las telas de las vestimentas, poseen las características habituales en la escultura iberoamericana del período. El santo porta el Niño con su brazo izquierdo, mientras que con la mano derecha sostiene un lirio, atributo que corresponde al milagro del florecimiento de la vara. Luce sandalias de caminante, en tanto el Niño lleva en su mano izquierda un orbe La calidad de la pieza, así como sus dimensiones, permiten postular que fue realizada para una capilla doméstica. El propósito del presente estudio es intentar identificar la filiación artística de una pieza escultórica que, de acuerdo a la historiografía, sería una de las mejoras tallas realizadas en Chile durante el período colonial. Los resultados obtenidos dejarían en evidencia un problema de atribución que podría extenderse a otras piezas del acervo colonial chileno. Se trata de la tendencia a vincular las piezas de cierta calidad al círculo de los artistas jesuitas alemanes activos en Chile durante el siglo XVIII, omitiendo indagar otros posibles orígenes. La huella del barroco y rococó alemán, que caracterizó la producción de los artistas jesuitas de la provincia de Chile, sería la fuente de atribuciones erróneas, pues, los especialistas no habrían 497 tenido en cuenta que en otras regiones del continente, particularmente en Brasil, se produjeron esculturas, pinturas y retablos con rasgos similares. La historiografía chilena y la escultura de san José La escultura en estudio, como la mayoría de las que se produjeron durante la época colonial, no contiene inscripción alguna que permita conocer a su autor o su lugar de origen. Sin embargo, en este caso se cuenta con antecedentes acerca de su ubicación original, a partir de los cuáles se podrían inferir otros datos relativos a la historia de la pieza, tales como la identidad de los comitentes o el lugar en el que fue producida. Antes de que la donante, Sra. María Loreto Marín, adquiriera el san José, la escultura estuvo en manos de Juan Benavides Courtois, arquitecto, quien a su vez la recibió de su padre, el también arquitecto, Alfredo Benavides Rodríguez; este último la habría adquirido a mediados del siglo XX1. Benavides Rodríguez (1894-1959) incluyó en su libro “La Arquitectura en el Virreinato del Perú y en la Capitanía General de Chile”2, específicamente en un apartado dedicado a la arquitectura rural del siglo XVIII, una mención al san José en el contexto del análisis de las casas y capilla de la hacienda La Punta, edificaciones que él habría visitado el año 1927. De este modo, al publicarse la primera edición de su libro en el año 1941, la escultura quedó instalada en la historiografía local como una pieza relevante La descripción de Benavides da cuenta del precario estado en que se encontraba el edificio y la impresión que debió causarle el san José: “En la capilla transformada en bodega cuando la visitamos (1927), se conservaba aún en el altar mayor de un barroco sencillo una imagen vestida de la Virgen llamada de la Candelaria. En esta misma capilla se encontraba el San José de bulto, todo tallado en madera que reproduce la fig. 188 (…)”3. 1 Información entregada por el anticuario Sr. Francisco Monge en enero 2013. 2 Se han realizados tres ediciones de este libro: 1941, 1961 y 1988. 3 Benavides: 1988, págs. 275-276 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 498 La fotografía incluida en el libro permite corroborar que la escultura de la que habla Benavides es el san José del Museo4. El arquitecto amplía el análisis de la pieza en el apartado dedicado a las tallas en madera durante el siglo XVIII, donde se puede leer el siguiente comentario: “(…) tallada en un solo trozo de madera, el que proviene de la capilla de la Hacienda La Punta y fue de los jesuitas La factura de esta escultura estructurada para ser vista de abajo arriba, es verdaderamente admirable, siendo digno de señalar el cuerpo del niño, el detalle de la mano que lo sostiene y la cabellera del santo”5. El juicio de Benavides es categórico: “Es una de las obras más hermosas que se conservan del arte chileno del siglo XVIII”6. La falta de antecedentes documentales adicionales explica que las menciones posteriores a la escultura reiteren lo señalado por Benavides. Es el caso de los trabajos del sacerdote Jesuita Walter Hanisch y del historiador Eugenio Pereira Salas7. Este último autor expresa que toda la información que entrega sobre esta escultura proviene de Benavides, quien, según Pereira, “alcanzó a ver también el altar de San Joseph”. A continuación agrega: “La factura de esta escultura estructurada para ser vista de abajo arriba, es verdaderamente admirable, dice, siendo digno de señalarse el cuerpo del Niño, el detalle de la mano que lo sostiene y la cabellera del santo”8. A pesar de la brevedad y de la falta de originalidad de la referencia de Pereira acerca de la escultura de san José, se pueden obtener algunas conclusiones significativas. En primer término, el texto deja en evidencia que Pereira nunca vio la escultura, pues, explícitamente transcribe la descripción contenida en “Arquitectura en el Virreinato del Perú y la Capitanía General La escultura posee un anillo metálico en su espalda, con el que debió ser anclada a un pequeño retablo o la pared. 4 5 Benavides: 1941, pág. 306 6 bid: pág. 306 7 Hanisch: 1974, pág.121 y Pereira: 1965, pág. 99 8 Pereira, Op Cit: pág. 99 Fernando Guzmán Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch 499 de Chile”. En segundo lugar, la ubica en el “altar de San Joseph”9, precisión que Benavides no aporta. Pero, sin duda, la diferencia más relevante entre los dos autores es que Pereira Salas menciona el san José en el capítulo titulado “La preponderancia artística de los Jesuitas”10, atribuyéndolo de este modo, aunque sea indirectamente, al trabajo o al influjo de los jesuitas germanos; aunque aclare en el texto que pertenece a un conjunto de piezas cuyos autores no se conocen11. Benavides dedicó un espacio al aporte de los jesuitas germanos en Chile, pero, el san José no es mencionado en ese contexto12. Autores posteriores no aportan información ni análisis a la pieza en estudio Víctor Carvacho, en 1983, al referirse a la escultura colonial en Chile, repite lo señalado por Benavides y expresa que en el altar de la hacienda La Punta se ubicaba un bulto de la Candelaria13, sin mencionar la de “san José con el Niño”. En tanto Enrique Melcherts e Isabel Cruz14 se refieren a la huella dejada por los escultores jesuitas en Chile, pero sin hacer referencia a la escultura que aquí interesa Tampoco se encuentran menciones en los textos de Briceño y de Roa15. En tanto las alusiones generales al hecho de que en las casas jesuitas existían talleres para la producción de objetos artísticos, no sería un antecedente suficiente para atribuir el San José a los hermanos jesuitas16. De modo que, lo único que se puede afirmar taxativamente es que el san José que Benavides vio el año 1927 en la capilla de la hacienda La Punta es la misma pieza que actualmente se custodia en el Museo de Arte Universidad de los Andes. El hecho de que La Punta haya sido una hacienda jesuita hasta 1767 obliga a indagar acerca de la posibilidad de que 9 Benavides 1941, Op Cit: pág. 273 10 Pereira, Op. Cit: págs. 80-117 11 Benavides 1988, Op. Cit: pág. 179 Benavides ofrece su apreciación respecto a la presencia de talladores y escultores chilenos: “[…] habría que convenir que en nuestro país floreció en el siglo XVIII una escuela de escultores capaces de competir con los mejores, no sólo de Quito, sino también de España.” Benavides, 1941, Op. Cit: págs. 306-307 12 13 Carvacho: 1983, pág. 162 14 Melcherts: 1966, págs. 44-45; Melcherts: 1982, págs. 20-27; Cruz: 1984, págs. 85-92 15 Cfr. Briceño: 1889; Roa: 1929 16 Cruz, Op. Cit: pág. 87 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 500 se trata de un trabajo de los coadjutores, sin embargo, no es posible, a partir de ese único antecedente, adelantarse a sacar conclusiones. Los antecedentes documentales Como es bien sabido la expulsión de los jesuitas y posterior incautación de sus bienes generó una vasta documentación a partir de la cual es posible reconstruir de manera más o menos precisa lo que había en las distintas casas jesuitas el año 1767. En el registro de los bienes de la hacienda se puede leer la siguiente nómina de objetos individualizados para la capilla: “1 lienzo grande del patriarca San Ignacio 7 lienzos de varias advocaciones 1 campana pequeña 4 blandones de plata 2 auxiliares de plata 1 cáliz de plata con su patena unas vinajeras de plata cajas para pedir limosnas 1 santo Cristo en su cruz 1 imagen para sacar (?) rosario 1 atril para contar los apóstoles del evangelio 3 campanillas de bronce 1 bulto de San Joseph y el Niño de una cuarta de alto con su diadema de plata, su manto azul y de oro viejo y el Niño con su túnica y potencias de plata” 17. El inventario da cuenta de la existencia –como en muchas otras casas jesuitas18- de un san José con el Niño, sin embargo, sus características no coinciden con la escultura que se conserva en el Museo. La diferencia más evidente corresponde a las dimensiones, la pieza que estaba en la hacienda jesuita el año 1767 medía una cuarta, un poco más de veinte centímetros, Inventario capilla con su sacristía, septiembre 1767, ANC, Fondo Jesuitas Chile Vol . 2 f. 145. DOC. NO PUBLICADO 17 Se establece inventario de las haciendas, 1767, ANC, Fondo Jesuitas Chile Vol. 7 f.107 y siguientes. DOC. NO PUBLICADO 18 Fernando Guzmán Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch 501 mientras el San José del Museo mide 104 centímetros de alto, diferencia suficientemente amplia como para concluir que son dos esculturas distintas. Por otra parte, el inventario del momento de la expulsión habla de una imagen de vestir con elementos de platería que la imagen del Museo no posee. Es cierto que a muchas piezas de talla completa se les agregaban igualmente vestimentas de tela, por lo que la diferencia no sería del todo concluyente, sin embargo, resulta difícil pensar que la figura del Niño de la escultura del Museo hubiese llevado potencias en algún momento, puesto que su cabeza no presenta las intervenciones habituales para sostener dichas elementos19. Es interesante observar, además, que los inventarios no se refieren a la Virgen de la Candelaria que Benavides habría visto en la hornacina del retablo principal. Por el contrario, los documentos de 1767 individualizan un Santo Cristo y una Virgen del Rosario de carácter procesional que el arquitecto-historiador no advirtió o no mencionó en su descripción de la capilla. Todo parece indicar que las imágenes originales, tanto escultóricas como pictóricas, no estaban en el edificio al comenzar el siglo XX. Es bien probable, como ocurrió en muchos casos con los objetos de culto de los jesuitas expulsos, que los bienes señalados en el inventario fuesen aplicados a alguna parroquia o iglesia conventual que los necesitara 20. Lo cierto es que la escultura que Benavides vio en la capilla de la hacienda La Punta -hoy en exhibición en el Museo- no se encontraba en el lugar al momento de la expulsión. Es necesario considerar que las propiedades jesuitas fueron vendidas y rematadas a lo largo de los años siguientes21; la hacienda La Punta fue adquirida en 1771 por Lorenzo Gutiérrez de Mier en 14.622 pesos y 4 La conservadora Ana María Lucchini intervino esta pieza el año 2010, explica que la madera se encontraba en buenas condiciones y presentaba varias capas de policromía, con la excepción del rostro de san José. Los tratamientos incluyeron limpieza general, remover un barniz extendido sobre toda la superficie, adhesión de una zona del manto y retiro de parte frontal de la base (no original) para rectificar su posición. Además se tomó la decisión de proceder a reintegrar pictóricamente algunos puntos faltantes y aplicar una capa de barniz de protección. 19 Al momento de inventariar los bienes de las capillas jesuitas expulsos y siguiendo el protocolo establecido por la Pragmática Sanción y las Providencias, era necesario distinguir los objetos de culto de otros elementos. Los primeros debían ser reasignados y mantener su uso litúrgico, los segundos podían ser vendidos junto con las tierras. Cortés: 2011, págs. 81-117 20 21 Un amplio estudio sobre este tema en: Bravo: 2004 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 502 reales22. Gutiérrez también compró ese mismo año la hacienda Pudahuel, igualmente cercana a la ciudad de Santiago, que también perteneció a la Compañía23. De modo que una posibilidad a tener en cuenta es que esta escultura hubiese sido llevada, por algún motivo, desde Pudahuel a La Punta por los nuevos propietarios. Sin embargo, en el inventario de la hacienda Pudahuel no se describe una escultura con las características que se estudia24. Todo parece indicar que los objetos de culto de La Punta fueron trasladados a la iglesia del Colegio Máximo de San Miguel25, su paradero posterior se desconoce; de modo que la capilla quedó desprovista de imágenes poco después del año 1767. Todo esto llevaría a concluir que el san José con el Niño que se encuentra en el Museo habría llegado a la capilla de la hacienda La Punta después de la expulsión de los jesuitas, por iniciativa de alguno de los propietarios posteriores. El año 1927, cuando Benavides visitó los edificios, la escultura se encontraba en la capilla; su ubicación y características han sido el fundamento para postular que se trata de una pieza realizada en Chile por los coadjutores germanos. Análisis formal La calidad del tallado obliga a pensar en alguno de los talleres de mayor prestigio del período colonial. Debe descartarse la posibilidad de que la obra fuese ejecutada en Lima, pues la escultura de esa ciudad mantuvo durante los siglos XVII y XVIII una forma de trabajar los volúmenes que no es comparable con el dinamismo y proyección espacial del san José santiaguino, como puede verse al comparar la pieza en estudio con el san José de origen limeño que se conserva en la Catedral de Melipilla26. 22 Bravo, Op. Cit: pág. 11 23 Ibid: pág. 17 Inventario hacienda Pudahuel 1770, ANC, Fondo Jesuitas Chile, Vol .15 f.37 y siguientes. DOC. NO PUBLICADO 24 Inventario haciendas Las Tablas, Peñuelas, La Punta, San Pablo, 1767, ANC, Fondo Jesuitas Chile, Vol.2 25 Una rendición de cuentas relativa a la fundación de Melipilla señala lo siguiente: “[...] me pongo en data tres pesos que pague por la conducción del cajón en que vino el bulto del Patriarca San José que remitió el señor Virrey de Lima para esta iglesia y aunque no consta de documento juro ser cierta la partida ”Ordenación de la cuenta de la villa de San José de Logroño, alias Melipilla, desde el año de 1746 hasta el de 1763, Archivo General de Indias, Catálogo Chile, Vol. 227. DOC. NO PUBLICADO 26 Fernando Guzmán Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch 503 Tampoco corresponde a la tipología característica de las tallas de Quito, desde cuyos talleres salieron numerosas obras con destino a Chile, particularmente durante el siglo XVIII. El rostro del san José que se encuentra en el Museo posee una personalidad propia, con rasgos bien definidos, muy alejado de las soluciones estereotipadas de las piezas quiteñas27. También se puede observar que los pliegues de las telas se representan con una voluntad naturalista que no es habitual en las tallas americanas. En este sentido, cabría la posibilidad de que fuese una pieza ejecutada por alguno de los escultores jesuitas germanos que vivieron en Chile entre 1718 y 1767. Sin embargo, no es posible vincular la factura del san José del Museo con ninguna de las esculturas atribuidas a factura jesuitas28. No posee el dinamismo, ni la corrección anatómica que presenta el San Sebastián que se conserva en la Parroquia de Santa Rosa de Los Andes, tampoco guarda relación con las complejas posturas que tienen los evangelistas del púlpito de la Merced, ni con la expresividad del San Francisco Javier yacente de la Catedral de Santiago, así como tampoco se puede comparar con los gestos específicos de los bultos de santa Ana y san Joaquín, en el Museo de Maipú y en la Catedral respectivamente. No habiendo pieza con la cual establecer un punto de contacto resulta difícil, por la vía del análisis formal, establecer que se trata de una pieza tallada en Chile por alguno de los escultores jesuitas activos durante el siglo XVIII: Bitterich, Engelhardt, Kellner o Lanz29. Las esculturas realizadas por los jesuitas germanos que llegaron a Chile durante el siglo XVIII son el fruto de las grandes transformaciones del arte religioso que se van a comenzar a producir después de la Guerra de los Treinta Años, 1618-164830. La carga dramática y atormentada que caracterizó al arte del norte durante el Renacimiento y el Manierismo es anulada, dejando su lugar a formas más acordes con el impulso triunfante de la Reforma Católica; los edificios, los altares, las pinturas y las esculturas manifiestan una aguda necesidad de confesar la propia fe y las ganas de vivir31. Algunos de los rasgos más característicos del barroco germano del sur son el despliegue de figuras en el espacio, su sensual teatralidad y una 27 Kennedy: 2002, págs. 185-204 28 Bailey; Guzmán: 2011, pág. 721-726 29 Sierra Pastor: 1944, págs. 184-186, 385 30 Lill: 1925, pág. 191 31 Schindler: 1997, pág. 209 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 504 nueva relación con la luz; todo puesto al servicio de una impresión general de júbilo y victoria32. La búsqueda de juegos volumétricos y el sentido escénico que se pretendía imprimir a los nuevos decorados encontró en la escultura un medio especialmente apto. Esto explica, al menos en parte, la predilección por las obras talladas en desmedro de la pintura, fenómeno que se puede observar en muchos sitios de Europa. El tallado de la madera era un oficio muy extendido entre los germanos, hecho que permite entender mejor la rápida recuperación de la actividad después de la Guerra de los Treinta Años. Al mismo tiempo, el arraigo popular del trabajo de escultura en madera es una buena explicación de la persistencia de las soluciones locales, a pesar de la fuerte influencia del arte italiano33. La escultura de san José pareciera contener ciertos rasgos formales que la entroncan con la tradición germana de la segunda mitad del siglo XVII y de las primeras décadas del XVIII. Esto, a pesar de la imposibilidad, como se ha señalado, de vincular la pieza con las esculturas atribuidas a los jesuitas germanos activos en Chile. Si la escultura muestra rasgos germanos y no pertenece a lo que se ha denominado el “barroco bávaro” chileno, resulta necesario plantear la posibilidad de que la pieza sea de origen brasilero, en cuya producción artística se observa, de distintas maneras, la huella de la arquitectura, la pintura, la escultura y las artes decorativas germanas. Análisis iconográfico La escultura de san José que se analiza corresponde, claramente, al resultado de la renovación de su iconografía, proceso que comenzó tras el Concilio de Trento. En Europa a san José se lo muestra, hasta la Edad Media, como una figura secundaria, con rasgos de anciano de barbas blancas y afín a los episodios de la infancia de Cristo. Es a partir del siglo XVI que la Iglesia potencia su culto y figura como padre de Jesús en la tierra, promoviendo una vida centrada en Dios con sencillez y pobreza. La Compañía de Jesús cumplió un papel significativo en la configuración moderna de la representación iconográfico del santo34. Gracias a este 32 Lill, Op. Cit: pág. 192 33 Schindler, Op. Cit: pág. 214 34 Reau: 2001, pág. 164 Fernando Guzmán Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch 505 impulso san José será representado como un varón adulto en plena posesión de sus fuerzas físicas; de este modo se puede dedicar al cuidado de Jesús Niño, tanto en la atención por alimentos y vestimenta, como en el privilegio de conducir su formación35. Ha gozado de gran predilección en el arte sacro también en América durante el periodo colonial Muchas veces llamado el Señor San José, especialmente a partir de 1678, fecha en que Carlos II lo instituye como patrono de todos sus dominios36. Los rasgos iconográficos del san José del Museo son los habituales para el siglo XVIII en América y España. El único rasgo peculiar es la túnica corta que viste el santo, quedando un cuarto de la pierna a la vista. La pintura y escultura hispanoamericana muestra siempre a san José con una vestimenta que le cubre completamente las piernas. La solución de la pieza en estudio parece más cercana a las representaciones del arte italiano que luego se replican en la escultura y pintura germana. Es interesante observar que en la escultura brasileña del siglo XVIII se pueden apreciar ejemplos de figuras de san José con túnica corta, evidenciando el traspaso de modelos italianos o germanos, como el san José de las botas de la colección Antonio Carlos y Adele Curiati37. Análisis material: comprensión científica de la madera de esta escultura Para completar la información sobre la pieza en estudio y conocer su posible origen, se solicitó un análisis de laboratorio para la identificación de la madera constitutiva38. El examen de la muestra fue descrito microscópicamente de acuerdo a lo establecido en la Lista Estándar de Identificación de Maderas de Latifoliadas (IAWA 1989)39, lo que llevó a establecer que el trozo estudiado corresponde a la especie Swietenia 35 Schenone: 1991, pág. 491 – Sebastián: 2007, págs.187-189 36 Barros Arana: 2000, pág. 239 37 Varios Autores: 2001, pág. 71 Este análisis se realizó gracias a la colaboración de la Universidad Adolfo Ibáñez, Santiago de Chile y encargado a Carolina Araya/Conservador científico. 38 El análisis presentó el siguiente resultado: Perforaciones de los vasos simples Puntuaciones intervasculares circulares alternas - Depósitos de goma en los vasos - Fibras leñosas - Radios leñosos heterogéneos, de 2 a 4 células de grosor. 39 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 506 macrophylla King, perteneciente a la familia Meliaceae. En distintas partes de América es conocida con los nombres comunes de caoba, aguano, orura, zopilote, acajou d’Amérique y american mahogani, la que se distribuye en zonas de selva tropical en México, Centroamérica y Sudamérica tropical. Se trata de una madera con albura de color amarillo rojizo y duramen castaño rojizo, brillante, sin olor, de textura media y grano recto a entrecruzado. Es muy durable, de densidad promedio de 540 Kg/m3, por lo que permite utilizarse tanto en estructuras de barcos como para el tallado de esculturas. Este resultado permite saber que se trata de una madera que no crece en territorio chileno debido a las condiciones ambientales que ésta requiere para su crecimiento y desarrollo, y por tanto difícil de conseguir para los artistas locales del siglo XVIII. Conclusiones Tanto el análisis iconográfico como el formal permiten, hasta cierto punto, afirmar que la escultura podría ser obra de alguno de los talladores jesuitas germanos que estuvieron activos en Chile durante el siglo XVIII. Sin embargo, no se puede descartar la posibilidad de que se trate de una pieza portuguesa o brasileña del mismo período, pues, en ambos sitios se produjeron obras que, por tener influencia germana, se pueden emparentar o confundir con los trabajos de los artistas jesuitas. Estas peculiaridades formales e iconográficas hablan de una pieza que no corresponde a los patrones habituales en Hispanoamérica, razón que, junto a su ubicación en la capilla de la antigua hacienda jesuitas de La Punta, permitieron postular a Benavides y con mayor claridad a Pereira Salas, que la pieza había sido realizada por artistas jesuitas germanos. No obstante, el hecho de que el san José no hubiese estado originalmente en dicha capilla, como parecen indicar los inventarios realizados en el momento de la expulsión, abre las puertas a la hipótesis de que la escultura corresponda al contexto luso americano. Se trataría de una imagen adquirida por los propietarios posteriores de la hacienda con el fin satisfacer sus particulares inclinaciones devocionales. La identificación de la madera de un árbol que no se desarrolla en territorio chileno haría más plausible pensar que la pieza fue tallada en otro Fernando Guzmán Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch 507 lugar, posiblemente en Brasil. Sin embargo, la alternativa de que haya llegado un trozo de caoba americana a Chile con las dimensiones adecuadas para ejecutar una escultura de más de un metro no se debe descartar totalmente Lo cierto es que la escultura de “san José con el Niño” habría llegado a la capilla de La Punta con posterioridad a la expulsión de los jesuitas, que sus rasgos formales e iconográficos evidencian un influjo germano, que fue tallada en la madera de un árbol inexistente en los bosques chilenos y que no se la puede vincular con ninguna de las esculturas realizadas por los artistas jesuitas germanos activos en Chile durante el siglo XVIII. Bibliografía Bailey, G.; Guzmán, F.: “The Saint Sebastian of Los Andes: A Chilean Cultural Treasure Reexamined”. Burlington Magazine, Vol. 155, Núm. 1329, 2011. Pp. 721-726 Barros Arana, D.: “Historia General de Chile”, Tomo 5. Editorial Universitaria, Santiago. 2000 Benavides, A.: “La arquitectura en el Virreinato del Perú y la Capitanía General de Chile”. 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ES_004) História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 510 arte sacra: narrativas e coleções Artefatos religiosos setecentistas: Reflexões a partir de acervos paulistas Silveli Maria de Toledo Russo Professora (arquiteta) e Pesquisadora. Museu de Arte Sacra de Sacra de São Paulo INTRODUÇÃO Diante de exemplares que incorporam museus e coleções particulares paulistas é possível inferir o tipo de discurso adotado sobre as gramáticas decorativas, cujo teor permite identificar um panorama de manufatura caracterizado pela conjugação de contributos plásticos com importante intenção à representação da temática cristã, atento às observâncias religiosas da época, quer no que concerne aos atributos que as figurações ostentam quer nos ornatos a que se associam, corroborando a dinâmica de análise do universo iconográfico da religião católica. Os documentos da Igreja, orientados por um conjunto de conhecimentos relativos a mais de dois mil anos, direcionam suas recomendações e conceitos ao fazer artístico no âmbito do serviço litúrgico e da espiritualidade católica. Neste contexto, entende‐se que, além da documentação tridimensional, as fontes textuais ‐ dos documentos eclesiásticos ‐, fortalecem os desafios colocados para a abordagem das formas materiais do passado, atualmente musealizadas, surpreendendo os estudiosos com informações inesperadas da história de nossa arte religiosa. Desde o início do século XX, sobretudo, com a existência de órgãos oficiais determinados ao estudo e programas de preservação dos bens culturais no Brasil, vislumbra‐se efetivamente o início de uma produção historiográfica da cultura material brasileira. Com metodologias diversas, procurou‐se estudar seus artefatos, considerando, além da morfologia e da cronologia, a mão de obra e os materiais neles empregados. E ainda, sem ignorá‐los no conjunto de discursos e práticas próprios da sociedade que os produziu, buscou‐se compreendê‐los em sua relação com o funcionamento da vida cotidiana. 511 Quase que simultaneamente, esses estudos iniciais provocaram o interesse de museus e colecionadores, dando prosseguimento ao processo de constituição do saber histórico, que desde a centúria anterior já chamava a atenção para o passado como um objeto do conhecimento que marca as sociedades. Dentre os diversos escritos sobre o mobiliário brasileiro em geral, surgiram cronologias, designações estilísticas, nomenclaturas e tipologias tendo em vista o resgate da memória dessa produção no Brasil, em perspectiva comparativa com as influências do mobiliário de Portugal e de suas matrizes culturais de influências externas: orientais, médio‐orientais e europeias. Esse critério parece ter sido adotado no vocabulário de vários estudos que se seguiram no século XX sobre o mobiliário brasileiro. Ao estudo cronológico‐estilístico se acresce uma divisão dos móveis com vistas às suas funções, tais como: móveis de trabalho, de refeição e decoração, de higiene, de transporte, de utilidade, de guarda, de descanso e de práticas religosas. Acerca desta última função, comenta‐se aqui sobre aquela que se destinava às práticas religiosas vinculadas ao contexto das moradias coloniais. FUNÇÕES E SIGNIFICADOS Ao analisar tais artefatos cuja função principal é acolher imagens veneradas no recesso do lar, observasse que os mesmos contemplam dois universos funcionais (que por vezes se sobrepõem): em um domínio, tem‐ se o gênero dos objetos devocionais, destinado ao retiro, ao recolhimento e à oração; em outro domínio, tem‐se a produção em que eles aparecem especialmente dispostos para a orientação das celebrações oficiais da Igreja católica, tais como o ofício da missa, do batismo, do matrimônio e da extrema‐unção. A metodologia seguida para a abordagem do tema cerca informações adquiridas em documentos conservados nos arquivos religiosos das paróquias e das dioceses, a exemplo do arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, que disponibiliza aos pesquisadores interessados um vasto legado documental em torno das disposições do Vaticano face à condição americana dos séculos coloniais, em que vigorava o regime do padroado. Adequadas às condições locais, observa‐se que as providências e determinações advindas das autoridades eclesiásticas tiveram reflexos diretos nos agenciamentos História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 512 dos espaços domésticos destinados ao exercício religioso bem como nas formas materiais que o assistiam. Contudo, importa salientar o seguinte: mesmo que a análise se desenvolva no âmbito da museologia religiosa, o processo de transformação dos objetos litúrgicos e devocionais em documento histórico ‐ eixo da musealização ‐ sugere uma problemática que diga respeito a problemas que se relacionem à dinâmica da vida religiosa das sociedades, na compreensão das motivações inerentes à experiência religiosa doméstica, devocional e litúrgica, ao longo dos séculos XVIII e XIX. Ideia que corrobora o entendimento dos artefatos, tal como refere o historiador Ulpiano Meneses, enquanto produto e vetor das relações que seus usuários estabelecem em sociedade.1 Ocorre citar que a investigação da natureza das relações individuais e familiares desenvolvidas no interior das habitações perante os oratórios e suas imagens, a veneração e o culto que se dispensavam, por exemplo, é imprescindível tanto para a análise dos usos precedentes dessa tipologia de artefatos, agora musealizados, como para o estudo do contexto histórico de origem dos mesmos, com suas constantes e variações no tocante à presença de aspectos arquitetônicos e plásticos recorrentes. Ademais, as informações relativas aos atributos físicos, às funções utilitárias, aos usos religiosos dos artefatos e seu papel mediador na sociedade e no contexto da moradia conferem inteligibilidade aos exemplares guardados nos museus. Este tipo de contextualização sobre objetos religiosos dispostos em exposições museológicas tem sido bem discutido entre historiadores estrangeiros. Em artigo dedicado ao estudo da exposição do sagrado em Portugal, Maria Isabel Roque reclama sobre a descontextualização do objeto religioso na história da museologia até a última década do século XX. Sobre isso, a autora menciona o seguinte: “ainda que tenham evoluído os conceitos museológicos e os métodos e as técnicas de exposição do patrimônio histórico e artístico, o objecto religioso continua a ser apresentado como objeto de arte”.2 Os questionamentos levantados pela autora podem ser considerados como um sinal de alerta para a importância de se investigar os usos precedentes dos artefatos que compõem os acervos museológicos e, ainda, 1 Cfr. MENESES, 1998. ROQUE, M. I. “A exposição do sagrado no museu”. Comunicação & Cultura. Lisboa, N. 11, 2011. Pp. 137. 2 Silveli Maria de Toledo Russo 513 analisar os contextos sociais de origem, a fim de conferir inteligibilidade às peças distribuídas na reserva técnica e na área expositiva da instituição museológica e quiçá da coleção particular. A partir de suas análises, Maria Roque comenta ainda que tais direcionamentos acabaram por iluminar as primeiras iniciativas em que a apresentação museológica além de evidenciar o valor patrimonial e artístico do objeto, passa a usá-lo como código na explicação do ritual católico: numa intenção simultaneamente informativa e catequética, definida a partir do seu significado e da sua funcionalidade litúrgica.3 E assim, oportunamente a esses comentários, soma‐se agora um olhar para a riqueza e capacidade simbólica das variedades pictóricas subjacentes ao desenvolvimento da produção dos oratórios domésticos no Brasil, que denotam terem sido elaborados ora por artistas com formação específica ora por artífices com formação autodidata, mas nem por isso menos sensíveis visto o peculiar respeito dado ao ritual que lhes está associado. SOBRE A GRAMÁTICA ORNAMENTAL Diante de alguns dos exemplares em estudo (no âmbito de pósdoutorado), a incorporar museus e coleções particulares paulistas, infere-se o tipo de discurso adotado sobre as gramáticas decorativas que permitem identificar um panorama de manufatura caracterizado pela conjugação de contributos plásticos de importante intenção à representação temática crist. E, além disso, atento às observâncias religiosas da época, quer no que concerne aos atributos que as figurações ostentam quer nos ornatos a que se associam, corroborando a dinâmica de análise do universo iconográfico da religião católica. E assim contempla‐se uma conformação especial das temáticas introduzidas, com destaque aos santos patronos e aos símbolos religiosos mais populares, representando relatos históricos ou de tradições religiosas associadas aos santos, como a constituição de cenas da vida de Cristo, da Virgem Maria e dos Santos do hagiológico cristão que exemplificam, entre outros, a caridade, a piedade, o sacrifício, a fé inabalável e a missão evangelizadora. 3 Cfr. ROQUE, Op.Cit: pág.138. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 514 Tem-se assim todo esse repertório composto com enquadramentos de diferentes características, designadamente, estruturas de índole arquitetônica e paisagística. No exemplar a seguir (FIG. 1), originário do Estado de Pernambuco, visualiza‐se singular composição com colunas de fuste torso, espiralado, “pseudo‐salomônicas”, e capitéis com referência à ordem clássica coríntia. O arremate superior em arco concêntrico é trabalhado de forma a acompanhar o entalhe do fuste das colunas; desenvolvimento este tem raízes muito antigas na cultura portuguesa. Na modelagem da base, das colunas e dos arcos aparecem concheados, folhas de parreira e mísulas em volutas de acanto, indicando um clima emocional que extravasa por toda a peça. Já as pinturas se apresentam com surpreendentes manifestações: no camarim ‐ cena citadina de Jerusalém e na face interna das portas: de um lado o símbolo do sol a enaltecer a “presença da luz divina”, e do outro a lua, a simbolizar quiçá o “feminino da Virgem”, envoltos por ornatos que refletem uma ideia a primeira fase da pintura colonial no Brasil, os grotteschi, ou brutescos - como eram denominados pelos portugueses. Sob o resguardo do mesmo acervo particular, há outro oratório de grande singeleza (FIG. 2) onde vemos o sacrário incorporado à peça e a indiscutível evocação do Rococó nos painéis inseridos na folha interna das portas, com pintura em cartelas assimétricas de bordos recortados, cada painel recebendo uma cartela com desenho dos atributos da crucificação. Interessa notar também a pintura do camarim que procura criar um habilíssimo efeito celestial organizado pelos dezoito anjos que circundam o resplendor. Nessa pintura de colorido escuro há uma particularidade: o dourado figurando como cor e parece convidar o observador ao recolhimento e à meditação. Do mencionado acervo, outro artefato contribui agora para relevar o proeminente trabalho indo português, sobretudo no que refere ao tratamento dos ornatos utilizados. É o caso da representação alcançada pelo próximo oratório (FIG. 3), do século XVIII. O exemplar resulta na conjugação de elementos arquitetônicos de destacada complexidade escultórica (entalhe, douração e policromia), fechando‐se por meio de portas, cujas folhas internas acolhem um nicho com dossel, de madeira entalhada e concepção indianizada, conduzindo o olhar a uma pintura de imitação de tecido, com destaque às borlas que pendem da parte superior da composição, oferecendo um inusitado efeito Silveli Maria de Toledo Russo 515 cenográfico. Já na tábua de fundo do camarim, o forro de desenho arqueado apresenta pinturas florais rompendo a limitação visual do teto. Nota‐se no tratamento dado à abertura do camarim, um rendilhado que envolve o aro fazendo moldura para o trono que centraliza a composição. Observa‐se ainda que os traços fisionômicos da imagem da Nossa Senhora nele inserida mostram o trabalho de um artista indiano. Foi nos anos finais do século XVI e no início do seguinte que o tipo iconográfico da Imaculada Conceição, assim como se pode reconhecê-la na colonização da América portuguesa, alcança seu formato baseado na descrição escatológica da mulher do Apocalipse e da Virgem das Litanias. Deste modo, encontra‐se a ‘Puríssima’, na pose de oração sobre o crescente da lua. Seguindo as conceituações do historiador português Rafael Moreira (1998‐2000, p. 539), ocorre lembrar que a cidade de Goa foi um dos maiores centros de produção da arte indo‐portuguesa, pelo fato de abrigar importantes institutos religiosos, onde os oratórios entalhados encontram‐ se entre as criações mais notáveis da fusão artística operada na Índia pelos artistas locais, inspirados, por certo, em modelos portugueses continentais e na solicitação corrente do culto católico. Outra diferenciação no tratamento espacial são as formas curvas com diferentes soluções: ornatos que se reportam à talha, sanefas acompanhadas por ricas ornamentações, resultando desta disposição um entalhamento curvo e movimentado mais adequado a composições cenográficas que arquitetônicas. De derivação rococó, vislumbra‐se neste próximo exemplar como em outros analisados a adoção dos elementos rocailles, predominância de volutas, curvas e contracurvas, bem como remates que se mostram em diversos formatos de estilização fitomorfa, e ainda o gosto pela policromia em revestimentos que imitavam tecidos suntuosos. Em outros oratórios, entre formas diversificadas no vocabulário das pinturas, ressalta‐se o encadeamento de festões que se completa com o trabalho da marchetaria em fitas, a pintura imitando tecido e, de outra forma, a pintura de imitação de mármores – a “pedra fingida”, de particular incidência; recurso este, visto na base do oratório, a seguir, em que nas pinturas, destacam‐se também o dispositivo cênico de montes e rochedos (FIG. 5), a representar quiçá o monte Tabor, o Sinai, o altar do sacrifício de Isaac, o Horeb, o monte das Oliveiras, a gruta da Natividade, o calvário ou o sepulcro – traço compositivo que influenciou toda a Europa Central e a América com várias gravuras. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 516 Ainda sobre este último exemplar, infere‐se que o mesmo em suas representações direcionadas a membros de ordens religiosas parece ter sido um dos meios mais eficazes na formação da memória da própria Igreja militante, visto o propósito de reabilitar em pleno século XVIII a memória de Doutores da Igreja Latina, tais como o papa São Gregório Magno, os bispos Santo Ambrósio e Santo Agostinho de Hipona, São Jerônimo, e os franciscanos São Boaventura e São Bernardo, cujas referências ornamentais e de vestimentas utilizadas relacionam‐se com as distintas funções ordenadas pela Igreja, correspondendo aos testemunhos coevos que chegavam à América entre os séculos XVII e XVIII, entre retratos literários e estampas de gravuras. Cabe destacar que, para a compreensão do mobiliário no Brasil, de suas funções, ornamentações e qualidades ergométricas, esta análise percorre diversos acervos cujas composições apresentam inestimáveis conjuntos remanescentes do mobiliário colonial, possibilitando, inclusive, ao pesquisador interessado, apreender o cotidiano vivenciado pelas sociedades daqueles tempos, não somente no interior das moradias como também no interior dos espaços religiosos. Fácil notar que o desafio teórico metodológico que se aplica a essa dinâmica ‐ importante momento de inflexão nos estudos sobre cultura material ‐, tem em vista engrandecer o sentimento de brasilidade que permanece vivo entre museus e colecionadores, os responsáveis por sua continuidade. BIBLIOGRAFIA RESUMIDA BRANDÃO, A. Espaço Sagrado: Após Concílio Vaticano II. Uberlândia: Partilha, 2011. BECKHÄUSER, A. Símbolos Litúrgicos. Petrópolis: Petrópolis, 2003. CANTI, T. O móvel no Brasil. Rio de Janeiro: Agir, 1980. ______ . 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Senhora e São João Evangelista. Ouro e Prata. Portugal. Século XVIII. Acervo particular ACF, São Paulo. Fonte: Acervo. Silveli Maria de Toledo Russo 521 Figura 3 Oratório. Século XVIII. 155x73x44 cm. Imagem N. Senhora da Conceição, indo‐portuguesa. Século XVIII. 40 cm. Acervo particular, ACF. São Paulo. Fonte: Acervo. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 522 Figura 4a Oratório aberto Madeira entalhada, dourada e policromada. Século XVIII. 180,0 cm alt. Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo, São Paulo. Fonte: Acervo. Silveli Maria de Toledo Russo 523 Figura 4b Oratório fechado. Madeira entalhada, dourada e policromada. Século XVIII. 180,0 cm alt. Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo, São Paulo. Fonte: Acervo. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 524 narrativas, historiografia e memória Construções baléticas: Historiografia do balé no Brasil e percepções contemporâneas Rousejanny da Silva Ferreira Professora do curso de Licenciatura em dança do Instituto Federal de Goiás – Campus Aparecida de Goiânia. Pesquisadora do grupo INTERARTES INTERMÍDIAS – UFG. Orientadora acadêmica do curso de Licenciatura EAD em Artes Cênicas-UFG. Mestranda em Performances Culturais-UFG Nas últimas décadas as pesquisas em dança têm delineado diversos entendimentos e leituras a fim de problematizar os traços filosóficos, sociais, artísticos, entre outros aspectos que a constituem. A preocupação com os caminhos determinados pela sistematização artística da dança, no caso o balé, a dança moderna e contemporânea, comumente chamadas de “dança acadêmica”, instigou a reflexão de conceitos e estruturas sistematizadas, como o balé clássico. Originalmente o termo “dança acadêmica” era um termo vulgar para tratar do balé clássico, como aponta o Oxford dictionary of dance 2º edition (2010), sendo hoje um termo genérico e apenas classificatório utilizado para tratar das formas de dança que não as danças de salão, populares, folclóricas etc. Por isso, a dança tem buscado remexer o seu passado e refletir suas questões do presente investigando quem, por que e como formularam-se determinadas interpretações, imposições e poderes delineadores de um viés histórico e suas respectivas verdades. Voltando-se para a produção bibliográfica iniciada em solo brasileiro, temos a partir da segunda metade do século XX, um pequeno conjunto de autores (geralmente vindos da formação como bailarino, coreógrafo e pouquíssimos críticos de dança) que assumiram a função de pesquisadores e escritores na tentativa de documentar, popularizar e sistematizar conhecimentos sobre a dança acadêmica, ainda tão incipiente em nosso país nesta época. Isso, de fato, é louvável pelo desejo de organizar registros em uma área de conhecimento que no Brasil, até a década de 1980, possuía uma tímida bibliografia, escassas traduções, apenas um curso superior de dança 1 e pouco chamava atenção de campos como a teoria da arte ou as ciências humanas. A Universidade Federal da Bahia foi a primeira a oferecer o curso superior em dança no Brasil, no ano de 1956. O segundo curso só surgiu em 1984 na Faculdade de Artes do 1 525 De acordo com crítico e historiador da dança, Roberto Pereira (19652007, Rio de Janeiro) os primeiros registros de dança no Brasil surgiram com a proposta de formação de uma tradição, no intuito de fomentar um público que acompanhasse e pensasse as feituras artísticas da dança que começava a se formular nacionalmente. Tanto a crítica jornalística 2, quanto o registro histórico feito por bailarinos e professores foram importantes no estabelecimento do projeto cultural e educativo, que norteava o que poderia ser uma dança de/para teatros, que atendesse principalmente as elites das capitais do Rio de Janeiro e São Paulo. No entanto, (PEREIRA, 2007, pg. 45) ressalta que tais publicações apresentavam diversas fragilidades referentes aos preceitos e preconceitos que norteiam a dança, já que apontavam muito mais uma afinidade e gosto pessoal do autor, que uma reflexão ou investigação dos traços que a constituíam. Porém, a fragilidade da construção escrita da dança não se restringiu às terras brasileiras. Ainda no ano de 1953, nos Estados Unidos, Susanne Langer aponta em seu livro Feeling and Form: A Theory of Art (Sentimento e Forma [1953] 1980) a limitação da bibliografia norte-americana da dança apontando-a com os mesmos sintomas encontrados na literatura brasileira de dança: “acrítica, pseudo-etnológica e pseudo-estética”, e que “conduzia o observador à mecânica e acrobacia, ou a encantos pessoais e desejos eróticos” (LANGER, 1980, p. 177). Langer é uma das primeiras teóricas da modernidade a provocar a escrita sobre a dança produzida até aquele momento, convocando os historiadores e críticos da dança - como área de conhecimento com suas próprias especificidades 3 - a assumir e discutir seu lugar enquanto arte. Na proposição de destrinchar de que maneira isso delineou alguns entendimentos sobre o balé, investigo uma possível leitura do balé que escape ao reforço de dogmas e preconceitos que ainda dominam sua historiografia, a fim de mantê-lo como uma prática da obediência, do celestial e mantenedor de tradições e concordâncias inalteráveis. Observa-se em grande parte Paraná num convênio entre a Fundação Teatro Guaíra e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 2 Ver CERBINO, Beatriz. Jaques Corseuil e a crítica de dança no Brasil, 2011. Disponível em: http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/viewFile/1792/1455. Como descreve (Cfr.TAMBUTTI, 2008) a dança, nos séculos XVII ao XIX era considerada como uma atividade de ilustração da palavra, e secundária, dependente das áreas dos encaminhamentos da orquestra e da ópera. a partir do século XX, com a dança moderna, a dança começa a ser reconhecida como área de fato, com suas próprias especificidades onde se procura discutir e sistematizar os pontos cruciais de suas práticas. 3 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 526 da produção bibliográfica a respeito da história da dança e história do balé o reforço de apenas um recorte histórico delineado entre o período romântico (século XVII) e os balés de repertório do início do século XX e que, mesmo valorado, traz poucas aberturas para discussões políticas, estéticas e seus desdobramentos no fazer atual. Tal leitura encobriu outros acontecimentos, principalmente modernos e contemporâneos que agregaram ou distanciaram-se de sua proposição tida culturalmente como “clássica”. No Brasil, isto é tão marcado na compreensão do que imagina como balé, que, mesmo atualmente, a percepção, formação, difusão de obras, assim como companhias de balé ainda têm grande como grande propulsor o ideal imagético do clássico, mesmo sua estética e discussão extrapolem tal recorte histórico. 1.1 Como delineou-se a escrita histórica do balé Os primeiros registros4 sobre o balé no Brasil surgem na primeira metade do século XX impulsionados pela inauguração da Escola de Danças Clássicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (1927). Com a abertura desta escola, vários coreógrafos europeus como as russas Maria Olenewa (1896-1965) 5 e Tatiana Leskova (1922) 6 fixaram-se no Brasil para trabalharem em escolas de dança, academias, clubes femininos e de etiqueta tornando-se prática popular entre a elite e a classe média das grandes capitais que viam no balé um modelo de formação artística e cultural. A história social do balé foi e permanece imbuída de negociações e tramas feitas a fim de definir o que seria um modo elegante e politicamente correto de se portar socialmente. O caráter disciplinador, ereto e direcionado principalmente para a formação educativa do corpo da mulher direNo Brasil, já havia iniciado a pesquisa e publicação de danças sociais com o livro: PATRICIO, A. D.: “Novíssimo e completo manual de dança, tratado theorico e pratico das danças de sociedade”. B. L. Garnier, Livreiro – Editor, Rio de Janeiro. 1890; e os estudos de ANDRADE, M. “Danças dramáticas, Introdução e Primeira Versão”. Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP, 1934 4 Iniciou seus estudos em dança em Moscou em 1916. Em 1926 mudou-se para o Brasil e no ano seguinte fundou, juntamente com o crítico teatral Mário Nunes, a primeira escola profissionalizante de balé no país, a Escola de Danças Clássicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (atual EEDMO). Em 1943 assumiu a direção da Escola de Bailados da cidade de São Paulo. 5 Chegou ao Brasil em 1944, na cidade do Rio de Janeiro, onde vive até hoje. Assumiu a direção do corpo de baile do Theatro Municipal, pela primeira vez, em 1950, aos 28 anos. 6 Rousejanny da Silva Ferreira 527 cionou seu ensino para fins eugênicos e políticos não só no Brasil, mas em diversos países em que esta se desenvolveu como a França e a Rússia. E é no contexto da formação/educação que surge a primeira publicação de história do balé no Brasil: “A dança e a escola de ballet” (1956) escrito pelo professor Pierre Michailowsky (1888-1970, Rússia) formado pela tradicional Escola Imperial de Artes. Ele mudou-se para o Brasil em 1926 e direcionou seu trabalho de balé para clubes frequentados por jovens que não tinham o anseio de serem bailarinas e tinham o balé como uma prática corporal importante para o que era considerada uma formação social feminina. O referido autor apresenta seu livro como um material fundamental para a formação da juventude brasileira que estuda dança, e se define como um pioneiro no Brasil no estudo teórico e técnico do balé, com seu enfoque artístico-pedagógico fundamentado na história, teoria e técnica desta dança. Segundo ele, o livro partiu da necessidade de teorizar e sistematizar o pensamento de balé no país, já que seu aprendizado ainda se dava predominantemente via conhecimento oral e corporal de professores e coreógrafos aqui residentes. Michailowsky vê a transformação histórica da dança no ocidente como um processo evolucionista que atingido pela eugenia e a razão, partiu de danças menos desenvolvidas (tidas como primitivas) para atingir formas organizadas e artísticas que desencadearam no produto artístico chamado balé. Ele formalizou em seu texto o trato universal e norteador do balé, colocando-o à frente de outras categorizações da dança servindo inclusive, como moralização e modelo de arte. Como o autor afirma: Sendo a essência poética da imaginação abstrata, a dança clássica é universal, é a “linguagem da divindade perdida entre os mortais”. Ela não conhece os limites dos grupos éticos nem as fronteiras político-nacionais. A arte da dança clássica não tem pátria, sendo patrimônio universal de toda a humanidade (MICHAILOWSKY, 1956, p. 135). Não há registros de outra produção bibliográfica no Brasil a respeito da história da dança até a década de 1980, momento em que esta alavancou com livros de artistas e críticos de dança, que mesmo sem o apuro de leituras sobre a arte, história, cultura, dispuseram-se a escrever e construir a História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 528 quase inexistente historiografia da dança. Tendo como referências o livro de Michailowsky, algumas bibliografias em língua estrangeira e traduções de livros como Danser sa vie (Dançar a Vida [1973] 1983) do filósofo Roger Garaudy (1913-2012) e Histoire de la danse en Occident (História da Dança no Ocidente [1978] 1987) do francês Paul Bourcier (s/d), a pesquisa histórica da dança no Brasil deu seus primeiros passos. Os livros que teço uma breve análise neste trabalho7 foram publicados por pesquisadores brasileiros que enfatizaram uma leitura do cenário artístico da dança e dedicaram-se a pensar o balé. São estes: “Ballet: uma arte” (1980) da maître Dalal Achcar; “Pequena História da Dança” (1986) do crítico e professor Antônio José Faro; “História da Dança” (1989) da jornalista Maribel Portinari; e “História da Dança: Evolução Cultural” (1999) da professora Eliana Caminada. Tais materiais são, até hoje, importantes referências da história artística da dança no Brasil e no mundo ocidental, apesar de algumas frágeis reflexões sobre os sentidos e contextos que norteiam seus aspectos sociais e artísticos. No entanto, vejo a necessidade de reconhecer nestas publicações um ato corajoso de iniciar uma política da escrita e pesquisa em dança no Brasil que, até a década de 1980, não acontecia em uma adequada medida. Sobre isso, o pesquisador Roberto Pereira em seu artigo “Livros de história da dança no Brasil: porque eles merecem ser lidos”, publicado na coleção Húmus - RS (2007), atenta para o esforço destes autores para a coleta de dados e construção textual, que mesmo entre informações tendenciosas ou contraditórias foi por muito tempo foi nossa principal – pra não dizer única – fonte de acesso à história da dança. Segundo o autor: Mas hoje, o pesquisador, o teórico da dança que pode constatar isso deve, antes de tudo e generosamente: primeiro, entender de que lugar essa fala foi produzida, qual era a sua origem e qual era o seu intento, mesmo que ingênuo; segundo, mapear como e porquê existia a falta desse tipo de informação no país naquele momento em que essa fala foi produzida; terceiro: indagar se já existiam profissionais capacitados a produzir/disseminar essa informação e porque isso não foi feito; e quarto, respeitosamente (para não dizer, argutamente também) tomar essas falas como documentos, como registros, como Além dos livros aqui discutidos, foram publicados outros livros que abordam a história da dança como: ELLMERICH, L.: “História da Dança”. São Paulo: Ricordi, 1964; MENDES, M.: “A Dança”. São Paulo, ática. 1985; e SUCENA, E.: “A dança teatral no Brasil”. Fundação Nacional de Artes Cênicas, Ministério da Cultura. 1988 7 Rousejanny da Silva Ferreira 529 fonte de uma história que se fazia contaminada por aquele que misturava diferentes ofícios (PEREIRA, 2007, p. 52). O que o autor nos grifa é a necessidade de compreender, ou melhor, localizar de onde partem as falas e em que conjuntura elas aconteceram. Dessa forma, podemos, atualmente, construir e problematizar as lacunas e fissuras deixadas por estes e outros autores, que muitas vezes, com recursos limitados, colocaram-se como os “autores pioneiros da história da dança”. Detenho-me à bibliografia brasileira sobre história da dança produção produzida entre as décadas de 1980 e 1990, momento em que foram lançados quatro importantes livros de história da dança: “Ballet: uma arte” (ACHCAR, 1980); “Pequena História da Dança” (FARO, 1986); “História da Dança” (PORTINARI, 1989); “História da Dança: Evolução Cultural” (CAMINADA, 1999), a fim de identificar os discursos concebidos ao balé e como isso repercutiu no entendimento atual desta forma de dança. Inicio com a análise do livro “Ballet: uma arte” (1980) 8 da coreógrafa e maître de balé Dalal Achcar (1956, Rio de Janeiro). Achar formou-se como bailarina no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e logo depois assumiu o cargo de presidente da Fundação deste teatro, trazendo para o Brasil em 1970, professores da renomada instituição Royal Ballet de Londres (Inglaterra) para aprimorar e disseminar o ensino do balé em vários estados do Brasil. A autora aborda em oito capítulos, as estruturas que considera principais no balé: a coreografia, a música, o vestuário e as aulas de dança, usando a história da dança como roteiro para explicar tais elementos. Ao longo da escrita, segundo seu ponto de vista, aponta os princípios de educação, formação e estética que gerem a dança como arte. Para Achcar, “o balé é a dança imortal, sem fronteiras, feita por países civilizados” (ACHCAR, 1980, p. 15) e numa visão evolucionista e simplória defende que a dança progrediu até chegar ao balé, marco na competência e organização da arte da dança. De acordo com a autora, para adentrar este universo artístico o bailarino deve ser altamente disciplinado e atender às exigências que a complexidade que essa dança “civilizada” tomou. Achcar afirma ainda que, “sendo o corpo humano o instrumento da arte da dança é necessário discipliná-lo e desenvolvê-lo a fim de que atinja, por meio de movimentos harmônicos 8 A segunda edição do livro foi lançada em 1998. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 530 e coordenados, toda a plasticidade, pureza de linhas e expressão possíveis” (ACHCAR, 1980, p. 15). Tal polidez e o desejo de progresso permeiam o entendimento do balé como instrumento de dominação cultural, determinando historicamente normas sobre como, onde, e quem pode dançar artisticamente, detendo-se principalmente às valorações culturais e características de cada dança. Sobre isso, Susana Tambutti (2008) afirma que a beleza produzida pelas formas e narrativas do balé trouxe consigo uma concepção idealista, espiritual e moralista, que devem ser atentamente observadas. As proporções e harmonias do balé podem muitas vezes determinar - por sutilezas e belezas - valores coercitivos de corpo, dança e cultura consensualmente imbricados em sua formação artística. No mesmo viés de Achcar, o crítico e professor de história da dança Antônio José Faro (1933-1991, Rio de Janeiro) publica “Pequena história da dança” (1986) divido em cinco capítulos. No primeiro capítulo (origem e divisões da dança) explana sobre uma possível origem da dança e como esta se dividiu culturalmente em étnica, folclórica e teatral 9. Apesar disto, nos capítulos seguintes dedica quase todo o livro aos acontecimentos relacionados ao balé, abortando a dança étnica, folclórica, inclusive a teatral, mesmo que a ideia inicial descrita pelo autor seja a abordagem de todo o contexto artístico da história da dança. Faro trata a história do balé de modo descritivo trazendo predominantemente datas e histórico das principais companhias e coreógrafos, sem entrar em maiores detalhes ou problematizações. Ao discorrer sobre as transformações da dança nos últimos séculos, atribui ao balé os grandes feitos e evoluções, considerando a dança moderna e principalmente dança contemporânea como “processo de decadência”, denominado pelo autor como “retrocesso da dança e apelação” (FARO, 1986 p.127). Ao tratar da dança contemporânea, movimento que começava a ganhar espaço no Brasil na década de 1980, traz poucas informações, porém, aponta a seguinte questão: É mais uma tentativa de se criarem novos espaços, novas formas de expressão, mas o resultado desta mistura não parece muito enriquecedor para a dança como tal, já que tais espetáculos atraem o público mais como curiosidade do que propriamente como arte. Um bom balé, tal como um bom conto, uma boa música ou uma boa peça, 9 Definição do autor. No livro não aparecem autores ou conceitos que referenciem tal divisão. Rousejanny da Silva Ferreira 531 deve aguçar nossa vontade de voltar a vê-lo outras vezes. E cada vez que o virmos haverá sempre uma renovação das emoções que devem ser despertadas. A arte imediatista é como um panfleto político: a gente lê, amassa e joga fora (FARO, 1998, p. 126). Faro, preconceituosamente defende a autoridade do balé como direcionador dos tratos dados a dança como produto da cena artística. Sua posição desemboca num olhar minimizado e equivocado para outras danças que não compartilharam dos mesmos preceitos técnicos e estéticos do balé. Contrário a este tipo de pensamento, a historiadora da dança Laurance Louppe (1938-2012, França) sinaliza em seu livro Poétique de la danse contemporaine (Poética da dança contemporânea [1997] 2012) a necessidade da “ruptura com a visão linear, e muitas vezes ingenuamente progressista da história da dança” (LOUPPE, 2012, p. 43) e aponta que é preciso explorar novos modos de percepção e vias de análise, para que “os conhecimentos teóricos e práticos da dança sejam identificados e compreendidos” (LOUPPE, 2012, p. 48). A crítica e criticidade da dança foram lugares muito frágeis e ao mesmo tempo determinadores do quê deveria legitimar-se, portanto, analisar as transformações da dança a partir de uma possível evolução ou involução, torna-se no mínimo perigoso e taxativo. O terceiro livro analisado aqui é “História da dança” (1989) dividido em oito capítulos, da jornalista e historiadora Maribel Portinari (s/d, Rio de Janeiro). A autora busca, ao mesmo modo que José Faro, fazer um panorama geral da história da dança desde suas formas primeiras (tidas como primitivas) até a dança contemporânea. A autora, como era de se esperar, dedica grande parte do livro a história do balé, principalmente em seu período romântico e clássico, ocorrido entre os séculos XVIII e XIX e defende a superioridade do balé frente a outras danças, como por exemplo, a necessidade do domínio técnico do balé para a aprendizagem de outras ramificações da dança acadêmica. De acordo com Portinari (1989): Quem domina a técnica do ballet pode se quiser interpretar uma coreografia moderna (...). Mas aqui a recíproca não é verdadeira. Um profissional formado exclusivamente na técnica da dança moderna não faz 32 fouettés nem entrechats, nem cabrioles, não sabe dançar sobre as pontas (PORTINARI, 1989, p.134). História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 532 As discussões teóricas e as práticas relacionadas à cena artística da dança há tempos necessitam de um debate aprofundado para reconhecimento das peculiaridades dos movimentos artísticos e a superação de um ideal técnico supremo que reja as demais construções da dança. Submeter a dança moderna ou qualquer outra natureza de dança ao estudo comparativo com a construção técnica “especializada” do balé significa continuar replicando hierarquias e velar o entendimento das particularidades corporais, culturais e estéticas desenvolvidas no último século e que inclusive, reagiram ao modelo de balé instaurado. Apesar de tudo, ao contrário dos outros autores apresentados aqui, Portinari apresenta maior trato com a escrita da história da dança, trazendo dados e reflexões importantes sobre o desencadeamento do balé, da dança moderna, do jazz e da dança contemporânea no Brasil, América do Norte e Europa. No entanto, a autora preserva o balé como um modelo superior, uma dança consoante à hierarquia construída em torno de si e acrítica às transformações artísticas das últimas décadas, traço este que custou muito para a compreensão mais ampliada de suas transformações e problemáticas. Longe de ser congelado no tempo, o balé também construiu e discutiu suas fissuras, costurando histórias não tão lineares e passivas como aquelas descritas nos livros aqui apresentados. Fora das elaborações das companhias legitimadas, o balé estabeleceu frutíferos diálogos que questionaram inclusive, algumas concepções hierárquicas, estéticas e metodológicas defendidas pelos autores aqui citados, como a publicação das “Cartas sobre a dança” de Jean Georges Noverre (1727-1810, França) em 1760 que toma como base algumas reflexões sobre a dramaturgia e a liberdade criativa do balé; o empreendimento da companhia Ballets Russes (1909-1929, Paris) com coreógrafos e bailarinos que deram o tom para discussões modernas sobre o balé; e mais recentemente (década de 1990), as problematizações metodológicas e conceituais do coreógrafo norte americano William Forsythe (1949), assim como outras ações que borbulham por artistas e pesquisadores atuais. Para finalizar, trago o livro “História da dança: evolução cultural” (1999) da pesquisadora de balé e professora Eliana Caminada (s/d, Rio de Janeiro). Caminada, já no pôr do sol do século XXI, se propõe a abordar o percurso da dança em uma forma mais detalhada, desde sua organização nas antigas civilizações até a formação da dança contemporânea. Sendo o livro mais extenso (486 páginas) de todas as obras relatadas até aqui, a autora constrói Rousejanny da Silva Ferreira 533 a escrita da história utilizando fotografias pessoais e breves relatos de sua carreira como bailarina profissional, usando diversas imagens e referências do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, local de sua formação. É notável o apreço e dedicação da autora aos estudos históricos do balé, já que quase toda a escrita é dedicada aos acontecimentos deste na Europa, Estados Unidos e Brasil. Entretanto, mesmo sendo a publicação mais recente dos livros aqui pesquisados, a autora pouco aprofunda na escrita da dança moderna, contemporânea, ou mesmo, em abordagens mais atuais e ousadas do balé ao longo do século XX, adotando o mesmo ponto de vista de Portinari (1989) de que as construções da dança seguem uma linha temporal/substituível, e vinculadas estritamente a períodos específicos da história da arte e da dança. Assim como Dalal Achcar, Eliana Caminada apresenta sua visão afirmativa e soberana sobre o balé. Caminada afirma: “o ballet se tornou uma arte imortal” (CAMINADA, 1999, p.87) pela sua complexidade e imponência conquistada ao longo da historia da dança no Ocidente. Na mesma linha de pensamento, reafirma o tom de civilidade e progresso que os autores anteriores já trouxeram, ao afirmar que: “sabe-se que nem todos os povos possuem talento na mesma proporção, contudo, seria um tanto leviano falar que existem povos que não dancem” (CAMINADA, 1999, p. 01). Os discursos formalizados socialmente sobre o balé e, neste contexto, as pessoas que escreveram sobre ele fixaram pressupostos colonizadores que demarcam o balé como dança modelar e utopicamente perfeita para sofrer discordâncias que alterem seus status. Estas escolhas, de fato, representam lugares políticos da dança que tentam preservar hierarquias estilísticas e endossar o controle dos discursos/ações formulados sobre esta no presente. Atualmente, passamos por um momento de grandes transformações na pesquisa histórica em dança, tanto no Brasil quanto no cenário internacional. No Brasil, pesquisadores como Helena Katz, Roberto Pereira (in memorian), Fabiana Britto e Mariana Monteiro foram impulsionadores de leituras históricas da dança que traçaram importantes reflexões políticas, filosóficas e sociais 10 que possibilitaram visualizar o imenso chão de lacunas ainda não investigadas na dança cênica e principalmente, no terreno do balé. Ver MONTEIRO, M.: “Cartas sobre a dança”. 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Acesso em ago. de 2014 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 536 narrativas, historiografia e memória O arquivo Marta Rossetti Batista: Indícios de um fazer historiográfico Roberta Paredes Valin Mestre pelo Instituto de Estudos Brasileiros/USP Marina Mazze Cerchiaro Mestranda pelo Instituto de Estudos Brasileiros/USP, bolsista FAPESP Morgana Souza Viana Graduanda em Ciências Sociais pela FFLCH/USP, bolsista de iniciação científica SANTANDER Introdução Marta Rossetti Batista, paulista nascida em 1942, formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo em 1964. Na mesma instituição, tornou-se mestre em Artes, com a dissertação Anita Malfatti e o Início da Arte Moderna no Brasil, em 1980, e obteve o título de doutora, com a tese Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris – Anos 20, em 1987. Foi também na Universidade de São Paulo, mais especificamente no Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, que iniciou sua carreira docente, em 1969, vindo a ocupar, no mesmo instituto, os cargos de vice-diretora, entre 1990 e 1994, e de diretora, entre 1994 e 1998. Em 30 de maio de 2007, faleceu, deixando legado importante para a história da arte e da cultura brasileira, tanto como pesquisadora e docente como por sua atuação à frente da diretoria do IEB. Após sua morte, em 15 de fevereiro de 2008, seu acervo pessoal, constituído ao longo desses mais de 40 anos dedicados à vida acadêmica, foi doado ao IEB por Luiz Olavo Batista (viúvo da titular) e passou a integrar os três setores do instituto: Arquivo, Biblioteca e Coleção de Artes Visuais. O acervo é extenso e contém documentação de natureza variada. Na Biblioteca, encontram-se livros, catálogos, revistas e jornais sobre temas afinados com suas pesquisas, perfazendo um total aproximado de 2 mil volumes; e, na Coleção de Artes Visuais, consta um conjunto com aproximadamente 180 peças de objetos populares. 537 Com o objetivo de realizar um trabalho inicial de extroversão do Fundo, em junho de 2013 surgiu o projeto De Anita ao IEB – Mapeamento e descrição parcial do Fundo Marta Rossetti Batista do IEB/USP, contemplado pelo Edital 2012-2013 do Programa de Pesquisa nos Acervos da USP, subsidiado pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo, sob a coordenação da professora Ana Paula Cavalcanti Simioni. O projeto deveria ser realizado em cinco meses e visava: 1) diagnosticar o estado de conservação do Fundo; 2) elaborar um inventário temático referente à documentação; e 3) catalogar documentos referentes à formação de Anita Malfatti na França. Ao longo do processo de inventário, o projeto tornou-se mais abrangente e algumas modificações foram necessárias, o que resultou na ampliação do recorte do projeto para Artistas Brasileiros na França, beneficiando a extroversão do Fundo e o acesso do consulente interessado. Essa mudança de recorte levou à continuação do projeto até o presente momento, de maneira voluntária, incluindo mudanças na equipe de pesquisadores. O desenvolvimento do plano de trabalho envolveu três etapas, as duas primeiras já concluídas e a terceira ainda em execução: 1) diagnóstico do estado de conservação do Fundo e elaboração de inventário temático referente à documentação; 2) higienização e acondicionamento adequado do acervo; 3) triagem e indexação ao SGA dos documentos referentes aos Artistas Brasileiros na França. Primeiramente, investigou-se o conteúdo de todo o Fundo, o que implicou a leitura completa da documentação. A partir daí, foi possível realizar o diagnóstico do Fundo. Ao mesmo tempo, ia se estabelecendo o inventário temático. Ao todo, foram inventariadas 247 caixas, que apresentavam: documentos pessoais; documentos resultantes de pesquisas e outras atividades acadêmicas; documentos institucionais; livros e revistas; fotografias; correspondências; negativos, slides, plantas arquitetônicas, microfilmes e objetos tridimensionais. Realizada a triagem e estabelecido o inventário temático, elaborou-se um quadro de arranjo inicial, ainda passível de alterações. Sua estrutura segue elencada em categorias e subcategorias, cuja hierarquia vai das generalidades às especificidades. As categorias adotadas seguiram critério funcional, refletindo o conjunto de atividades do organismo produtor de arquivo, no caso a pesquisadora Marta Rossetti Batista, representadas em Grupos, Subgrupos e Temas. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 538 Neste artigo trataremos da documentação referente aos Artistas Brasileiros na França, recorte do projeto, que faz parte do Grupo Atuação como Pesquisadora do quadro de arranjo. Ela nos permite fazer alguns apontamentos sobre a metodologia de pesquisa de Marta Rossetti Batista, bem como reflexões sobre as narrativas de história da arte construídas pela historiadora. O arquivo como indício de uma história: a construção de uma narrativa do modernismo A categoria denominada Atuação como Pesquisadora traz materiais que foram divididos em dois subgrupos: Estudos para Obras e Obras. No primeiro, foram definidas outras 11 categorias representativas dos temas de pesquisa de Batista: Anita Malfatti; Mário de Andrade; Adriana Janacópulos; Victor Brecheret; Tarsila do Amaral; Antônio Gomide; Celso Antônio; Toledo Piza; Arte Popular e Religiosa; Arquitetura; Revistas e Catálogos Franceses. Essas categorias refletem uma organização já estabelecida pela historiadora ao compor dossiês, pastas de artistas e cadernos de anotação que ordenavam os documentos. Entre os materiais relacionados nesse subgrupo estão cadernetas e cadernos, blocos, folhas avulsas com anotações manuscritas, inúmeras fotocópias de artigos de jornais, revistas – francesas e brasileiras –, alguns catálogos dos Salões franceses na década de 1920 e de capítulos de livros de interesse; entrevistas; correspondências relacionadas às pesquisas de Batista; e até mesmo fotocópias de documentos de arquivos de artistas. A maioria dos documentos é de gênero textual, sendo alguns iconográficos. São muitas as técnicas de registro utilizadas – manuscritos, datilografados, digitalizados e impressos gráficos, em papéis diversos, apresentando em grande parte anotações, correções, grifos e rasuras – e é grande a quantidade de fotocópias em preto e branco, muitas vezes de um mesmo documento, o que garante ao Fundo características peculiares. A condição financeira privilegiada da historiadora lhe permitiu usar um instrumental que seguia o compasso das mudanças tecnológicas. Os documentos mais antigos do Fundo foram produzidos de próprio punho ou datilografados; os mais recentes, já em computadores, como alguns textos e e-mails trocados com a Editora 34 sobre a vida e obra de Anita Malfatti. Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana 539 O subgrupo Estudos para Obras nos revela a investigadora meticulosa, incansável, paciente e sistemática que era Batista e nos aponta a metodologia de pesquisa desenvolvida pela historiadora. Suas fontes, de modo geral, constituíam-se de documentos escritos, principalmente artigos de jornais e revistas, relatos orais e documentos de arquivo de artistas. Batista valiase ainda, como instrumento de pesquisa, de fotografias com reproduções de obras. Seus fichamentos demonstram grande preocupação em recuperar dados biográficos dos artistas analisados e em construir cronologias da vida deles e de suas produções, em uma tentativa de compor fases e períodos. O segundo subgrupo – Obras – é composto de livros e textos escritos pela pesquisadora, que foram subdivididos nas seguintes categorias: Brasil: 1º Tempo Modernista; Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris; Anita Malfatti no Tempo e no Espaço; Bandeiras de Brecheret; Cartas de Mário de Andrade a Anita Malfatti; Catálogos do IEB; Livros e Textos Não Publicados. Nesta última categoria, estão textos e provas dos livros, por vezes inéditos, de autoria ou coautoria de Batista, que não se enquadram nos itens anteriores. Nesse subgrupo, a documentação inclui esboços iniciais dos livros, versões, provas tipográficas e documentos resultantes de conversas estabelecidas entre Batista e as editoras. Por meio desse material, é possível acompanhar o progresso do texto, bem como as anotações indicando alterações, correções, ampliações e exclusões feitas pela própria autora. Um olhar atento aos documentos presentes nesses dois subgrupos permite captar alguns eixos norteadores dos modos de fazer história da arte de Batista: 1) seu objeto de estudo são os artistas ligados ao modernismo brasileiro; 2) suas anotações demonstram preocupação em estabelecer cronologias; 3) grande parte do acervo é constituída de artigos publicados pela imprensa, sobretudo escritos por críticos, fonte importante para as reflexões de Batista. Esses eixos mostram que a pesquisadora seguia uma metodologia tradicional da história da arte. Desde Giorgio Vasari (1550), a história da arte buscou escrever biografias de artistas. Quando Marta opta por compreender o movimento modernista brasileiro, ela combina essa primeira metodologia com outras duas. De um lado, o entendimento de que a arte se dá por uma evolução de estilos e escolas e, de outro, que ela é fruto de um “espírito do tempo”. Essa articulação é bastante explícita na definição de modernismo de Batista: História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 540 O termo modernismo – que eles mesmos usavam para se classificar – não quis e não quer dizer uma escola com regras rígidas, mas serve para designar aqueles que, negando os padrões ultrapassados da arte brasileira do início do século, procuram desenvolver uma linguagem nova para expressar seu tempo e seu meio. Engloba escritores como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, músicos como VillaLobos e artistas plásticos – estes últimos serão examinados aqui. O movimento modernista é fruto da própria situação da cultura brasileira da época: tanto do cansaço e esgotamento das fórmulas de arte em uso – esgotamento que propicia o aparecimento do novo – como das transformações por que passa o país. O modernismo é fruto da época, século XX, e do meio brasileiro, que finalmente se interessa pela arte nova e procura a brasilidade. Esse trecho parece evocar o texto Conceitos Fundamentais da História da Arte, de Heirich Wölfflin, que figura na bibliografia da dissertação de Marta Rossetti Batista sobre Anita Malfatti, defendida em 1980. Para esse autor, a evolução da arte não é feita de uma série de pontos isolados, mas de indivíduos que se organizam em grupos. A história da arte para ele tem como problema de investigação as condições que determinam o estilo de um indivíduo, de um povo e de uma época. Caberia ao historiador compreender o estilo pessoal do artista, em seguida o de uma escola, para então entender o estilo de um país e de uma época. Essa ideia perpassa os trabalhos de Marta, uma vez que ela procura compreender o artista e o movimento modernista tendo como horizonte a reflexão da arte brasileira. Justifica-se assim sua preocupação em estabelecer cronologias de artistas e obras. Faz sentido também a pesquisa da historiadora com artigos de imprensa e principalmente a utilização de textos de escritores modernistas. É com base neles que ela consegue apreender os artistas plásticos como um grupo, já que eles não procuraram teorizar sobre suas obras. As relações entre o arquivo de Batista e a construção de uma narrativa de história da arte podem ser mais bem observadas com base em uma análise pontual dos documentos referentes às duas pesquisas de maior fôlego realizadas pela historiadora: sobre os artistas brasileiros em Paris e sobre Anita Malfatti. Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana 541 Mapeando o meio artístico parisiense: as revistas como fonte documental Quando começamos a inventariar o acervo Marta Rossetti Batista, interessadas nos documentos referentes às pesquisas da historiadora sobre a formação dos artistas brasileiros em Paris, nos surpreendemos com a gama de artigos fotocopiados das revistas francesas L’Amérique Latine, La Renaissance, L’Art Vivant e Le Crapouillot. Os artigos eram da década de 1920 e estavam organizados em dossiês de acordo com a revista e o ano, armazenados em quatro caixas. Com eles, havia dois cadernos dedicados exclusivamente ao levantamento de dados referentes às revistas. Esses materiais estão atualmente em fase de catalogação. Despertam grande interesse, não apenas pela dificuldade de encontrar essas revistas no Brasil, e até mesmo na França, mas também porque dizem respeito à forma de pesquisar de Batista. São raros números inteiros de revistas fotocopiadas; o mais comum é nos depararmos com dois ou três artigos de cada edição. Em geral, eles contêm grifos a lápis ou marca-texto. São sobre eventos artísticos ocorridos no período, principalmente salões; críticas e também colunas que tratam de lançamento de livros e de inauguração de exposições em galerias e cafés parisienses. Os grifos ressaltam nomes de artistas brasileiros e franceses atuantes no período, de galerias e exposições, bem como reproduções de obras. Demonstram a vontade de Marta de mapear o ambiente artístico parisiense. A presença desses artigos no arquivo faz pleno sentido quando lemos sua tese Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris — Anos 20. Boa parte da pesquisa desse trabalho se assenta em jornais e revistas da Paris dos anos 1920, como nos lembram as notas de rodapé e os anexos finais, que trazem, de maneira cuidadosa e generosa, cada nome de artista brasileiro estudado com a referência aos artigos parisienses em que foi citado. Em uma época em que não havia documentos digitalizados disponíveis via internet, a pesquisa em revistas requeria longo tempo e empenho do pesquisador. O interesse de Marta por essa fonte e o modo como lidava com ela são fundamentais para a compreensão de sua metodologia. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 542 Arquivos cruzados: as pesquisas sobre Anita Malfatti no Fundo Marta Rossetti Batista Anita Malfatti no Tempo e no Espaço (2006) é uma das biografias mais completas sobre a artista, fruto de exaustivo levantamento de documentação. Cartas, entrevistas, artigos de periódicos, catálogos, fichamentos, cronologias, reprodução de obras, cadernos de anotações e de desenhos, muitos deles fotocopiados na tentativa de sistematizá-los, estão entre as fontes e métodos aos quais recorreu Batista. Ao observar a parte do acervo referente às pesquisas sobre Malfatti, percebe-se que Batista não só se esforçou para conhecer fatos sobre a vida da pintora mas também procurou esmiuçar seu trabalho artístico e o significado de sua vida e atuação para a arte brasileira. Com base nessas fontes variadas, muitas delas obtidas pela leitura e análise do acervo de Anita Malfatti que também se encontra no IEB, Marta Batista buscou apresentar a artista e sua obra com complexidade, para além dos estereótipos criados pelos modernistas e seus inúmeros interlocutores ao longo do tempo, que a projetaram como ícone de uma renovação que se fazia imediata no Brasil pela verve expressionista de suas obras expostas em 1917 e, anos depois, a criticaram pelos rumos intencionalmente tomados da sua produção pictórica. Batista reconstrói a trajetória de Anita Malfatti baseada em três momentos em que ela pôde reconhecer o que chamou de três Anitas: o primeiro vai de sua infância até a emblemática individual de 1917; o segundo aborda os contornos decorrentes após a exposição, sua ida a Paris pelo Pensionato Artístico de São Paulo e os anos que seguiram até o início da década de 1930, quando retorna ao Brasil; e, por fim, o terceiro momento – o mais extenso, até sua morte, em 1964 – contempla o período em que volta a dar aulas, destacando suas experiências exitosas com crianças em seu ateliê, suas exposições retrospectivas e, sobretudo, seu direcionamento para uma pintura de temáticas regionais e religiosas, com luz aos personagens, paisagens e festas do interior de São Paulo. Os dois últimos momentos demonstram os esforços de Marta em revelar uma Anita desconhecida, de temperamento forte e, ao mesmo tempo, sensível e reservada, características que lhe permitiram fazer Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana 543 escolhas motivadas por suas crenças e gostos apesar de sua modesta situação financeira. Ao debruçar-se sobre a fase francesa da artista, período em que suas obras foram incompreendidas pela crítica brasileira (por isso mesmo dos mais interessantes para a historiografia da arte brasileira), a pesquisadora retoma a tessitura de suas relações sociais e os níveis em que elas se deram, tanto no campo afetivo das amizades quanto no profissional e artístico; e suas vivências pelos espaços de formação e exposição franceses. Mas, sobretudo, nos revela outra faceta de Anita: a desenhista incessante, bolsista dedicada, que se mostrou virtuose e aclamada pela crítica na França quando lá esteve, entre 1923 e 1928. O arquivo mostra que, ao montar parte do complexo quebra-cabeça do percurso da artista em Paris, Batista manteve diálogo estreito com o acervo de Anita. Principalmente ao confrontar a correspondência entre Malfatti e Mário de Andrade e os cadernos de desenho da artista – documentos que se complementam, seja na reconstrução de sua trajetória em Paris, seja no entendimento dos liames de seu processo criativo. A maior parte dos cadernos foi feita em Paris e tinha como temática os nus femininos. Eles foram peças fundamentais para a pesquisadora compreender e revelar, ainda que de forma inicial, as variações de estilo pelas quais o desenho de Anita passou: dos nus americanos, sobretudo masculinos e com alta carga expressionista, entre 1915 e 1916, aos franceses, produzidos entre 1923 e 1928, lineares, sem rebuscamentos e deformações, sintéticos e precisos, cujo grande vigor clássico, de acordo com Tadeu Chiarelli (1995), são dignos de uma análise de Winckelmann. Em seu acervo, claramente se “desenha” a linha de investigação que adotara para os cadernos da artista. A metodologia de análise que Marta desenvolveu tinha como objetivo tentar estabelecer uma cronologia para os cadernos, uma vez que não foram datados (e por isso tornaram-se fontes bastante complexas), e compreender o estilo e as temáticas do seu repertório gráfico. Marta então reproduziu várias pequenas imagens dos desenhos e as colocou em sequência em grandes pranchas. Abaixo de cada imagem, veem-se muitas anotações manuscritas. Foram encontradas no acervo da pesquisadora sete pranchas, mas elas não contemplaram a totalidade dos desenhos presentes nos cadernos. Ao optar pela biografia como narrativa de história da arte, Marta procura quebrar os estereótipos que cercam Anita, abrindo novos caminhos de História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 544 percepção sobre sua vida e obra. Como estratégia metodológica, empenhase em compreender as obras e os movimentos artísticos que rodeavam Malfatti, não se restringindo aos momentos de sua atuação artística mais valorizados pela historiografia. Divide períodos da vida e produção da artista, buscando montar cronologias e detectar estilos. A principal fonte documental de Batista é o arquivo pessoal e familiar de Malfatti, o qual explora de modo exaustivo. Esses são alguns dos modos de fazer história da arte que permitem a Batista compor uma análise inovadora sobre a trajetória artística da pintora, que, até então, encontrava-se eclipsada pelas visões de Paulo Mendes de Almeida e Mário da Silva Brito. Conclusão Ana Paula Cavalcanti Simioni, em artigo intitulado Modernismo Brasileiro: entre a Consagração e a Contestação, demonstra que na história da arte brasileira o modernismo foi visto de três formas diferentes. Em um primeiro momento, de 1917 a 1940, houve sua glorificação, com os agentes que participaram do movimento procurando narrar sua história. O segundo período, de 1940 a 1970, é caracterizado pela sua institucionalização e legitimação no meio acadêmico. O fim da década de 1970 marca o terceiro período, no qual surgem trabalhos de contestação à visão instituída do modernismo, instaurando um período de revisionismo crítico. O Fundo Marta Rossetti Batista dispõe de documentos que nos permitem entender com mais clareza o primeiro momento, devido ao levantamento de relatos orais, bem como de textos de agentes ligados ao modernismo; e o segundo momento, pelo fato de a historiadora ter feito parte de uma geração de intelectuais que buscaram escrever e legitimar certa perspectiva sobre o modernismo brasileiro. Batista construiu uma narrativa sobre o modernismo não apenas no plano acadêmico mas também por meio de atividades de curadoria e gestão e difusão de acervos. Partiu dela a organização dos catálogos sobre a coleção Mário de Andrade: Catálogo Coleção Mário de Andrade – Artes Plásticas e Coleção Mário de Andrade – Religião e Magia/ Música e Dança/ Cotidiano; a publicação das cartas de Mário de Andrade para Anita Malfatti e do guia geral de acervos do IEB. Foi Marta também quem coordenou o processamento do Arquivo Anita Malfatti. Como diretora do Instituto Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana 545 de Estudos Brasileiros, reconhecido pela sua importância como guardião de acervos de artistas e intelectuais modernistas, a historiadora contribuiu ainda para modelar o perfil da instituição. Os documentos referentes a essas atribuições estão ainda por ser catalogados nas categorias Atuação como Curadora e Atuação como Diretora do IEB. São essenciais para compreender a história de arte feita por Marta Rossetti Batista. Como procuramos demonstrar, o arquivo de Marta é fundamental para o conhecimento sobre arte e arquitetura no Brasil, sobre o Instituto de Estudos Brasileiros e a Universidade de São Paulo, bem como para o entendimento da trajetória e obra dessa intelectual proeminente que atuou como pesquisadora, professora, diretora do IEB e curadora, impactando o cenário universitário e cultural brasileiro. Não é nosso intento fazer aqui uma análise detalhada sobre a história da arte escrita por Batista. Não somos pesquisadoras da obra de Marta. Mas foram nossas pesquisas e nossos questionamentos sobre o modernismo e as lacunas de documentação sobre o período que nos levaram ao encontro do arquivo da historiadora e nos motivaram a processá-lo. Com este artigo, buscamos demonstrar quanto esse arquivo é abrangente, fonte inesgotável de investigações. Fornece material para aqueles cujas pesquisas versam sobre o modernismo brasileiro dos anos e 1920 a 1940; para os que se interessam pelas instituições acadêmicas e artísticas dos anos de 1970 a 1990; e, sobretudo, para aqueles que têm como foco de estudo a história da arte brasileira, uma vez que o próprio arquivo se torna objeto de pesquisa, uma narrativa a ser investigada. Referências bibliográficas ALMEIDA, P. M. “De Anita ao Museu”. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976. BATISTA, M. R. “Anita Malfatti no tempo e no espaço: Biografia e estudo da obra”. São Paulo: Editora 43; Edusp, 2006. ____________. “Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris”. São Paulo: Editora 43, 2012. ______ e LIMA, A. P. C. “Marta Rossetti - Escritos sobre arte e modernismo brasileiro”. São Paulo: Editora 34, 2012. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 546 BAXANDALL, M. “Padrões de intenção. A explicação histórica dos quadros.” São Paulo: Companhia das Letras, 2006. BRITO, M. 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Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana 547 narrativas, historiografia e memória Narrativa, cine e historia Yanet Aguilera Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. Para Jacques Aumont y Michel Marie las primeras historias del cine son apenas “enumeración descriptiva de las invenciones y de los retratos, en la mayoría hagiográficos, de los pioneros de la industria” (2001:152). Las narrativas inaugurales de la historia del cine son consideradas, en general, superficiales, una especie de inicio incipiente de los estudios cinematográficos. Todavía, a estas apreciaciones les escapa la temporalidad de la enumeración y de la construcción de los retratos que producen un sentido histórico específico. Terry Ramsaye piensa, por ejemplo, la invención del quinescopio como un peldaño que llega al star system, visto como ápice y consolidación del cine como tecnología e industria (1986: 72-73). Este recorrido cronológico elabora una narrativa histórica que privilegia intelectualmente la cinematografía de los Estados Unidos, que se torna el lugar donde se inventó y se consolidó el cine, con el poder de formular su definición. Se releva el hecho de que el cinematógrafo es una invención francesa y se rebajan otros inventos, como el bioscopio de los Skladanowsky1, por ejemplo, a una mera curiosidad. No es un enredo rudimentario, es la reiteración del propio método histórico. Concebir tales narrativas como incipientes es reduplicar la perspectiva histórica sin ninguna interrogación. También la obra de Sadoul (1975) aparece como incipiente, apesar de que se la considera una precursora más digna del abordaje histórico2. Las suposiciones de Sadoul no son diferentes de aquellas de Ramsaye porque buscan establecer una sintaxis del lenguaje cinematográfico cronológicamente. El close-up, el movimiento de la cámara y el montaje, en germen en las primeras invenciones de las imágenes en movimiento y en las primeras Max y Emil Skladanowsky, en noviembre de 1895, dos meses antes de la primera exhibición del cinematógrafo de los Hermanos Lumière, mostraron imágenes proyectadas por el bioscopio. Ver. Die Grebrüder Skladanowsky, filme de Wim Wenders, de 1996. 1 Gian Piero Brunetta lo coloca como un proto-historiador del cine internacional (filmes que no son del circuito Europa y Hollywood) (2004:229). 2 549 películas del cinematógrafo, solamente alcanzarán el status de lenguaje con Méliès y tendrán pleno desarrollo con Griffith (Sadoul, 1975:III). El objetivo principal es formular, más una vez, un desarrollo progresivo de la técnica cinematográfica, aquí apoyada en el montaje, que será el elemento privilegiado en la formulación de la sintaxis (Sadoul, 1975:IV). El cine mudo soviético será el punto culminante de este transcurso (Sadoul, 1975:IV). El privilegio del montaje, además de afirmar el proceso evolutivo, concibe a las películas narrativas como el mismo cine. Las invenciones anteriores al cinematógrafo y las películas del inicio, como no construyen narrativas, son considerados una pre-historia, en la cual el cine aun no había aprendido a narrar, actividad que se torna su finalidad y “esencia”. En líneas generales se repiten las suposiciones de Ramsaye. La jerarquía que disminuye Ramsaye no es válida simplemente porque el trabajo de Sadoul es más complejo. La palabra de este estudioso no es la de un crítico o periodista que piensa improvisadamente, tiene el aval de instituciones importantes, en la cuales participó activamente – la Cinemateca Francesa y algunos cineclubs representativos (Vignaux, 2009:252). Fue también profesor de Historia del cine en el Institut des Hautes Études Cinématographiques y en Institut de Filmologie de la Sorbonne. La academia ayudó a consolidar su taxonomía como referencial para otras tentativas de historiar el cine3, para su difusión y para el análisis de las películas. Sadoul deja como herencia la concepción de una historia linear y teleológica, la consolidación del cine narrativo como paradigma, la elaboración de un modelo guía basado en las reflexiones teóricas y críticas de las obras cinematográficas europeas y de los Estados Unidos, y la investigación académica como argumento de autoridad. Es un legado importante para considerarlo ultrapasado. No basta decir que el concepto de historia de su obra es ya fue cuestionado, pues varios fundamentos aun permanecen activos y muchas directrices de su pensamiento se mantienen intocadas en el presente. Eso se ve, por ejemplo en la monumental Histoire du Cinema, de Jean Mitry y otras tentativas de historiar el cine hechas recientemente. Podemos encontrar cuatro tentativas de escribir una historia del cine. La de Georges Sadoul, la Jean Mitry, Histoire du Cinéma – Art et Industrie (Paris, Éditions Universitaires, 1967-1980), escrita em 5 tomos : Tomo I (1895-1914), Tomo II (1915-1925), Tomo III (1923-1930), Tomo IV (1930-1940), Tomo V (années 40) Fue publicado también Storia del Cinema Mondiale (Torino, Guilio Einaudi, 2001), de Gian Piero Brunetta, escrito en 5 tomos: Tomo I - L´Europa, Tomo II - Gli Stati Uniti, Tomo III - L´Europa, Tomo IV - , Americhe, Asia, Africa, Oceania, Tomo V - Teoria, Instrumenti, memorie. 3 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 550 Los fundamentos históricos de la teoría y crítica cinematográficas raramente fueron objetos de estudio, ni por los historiadores que se ocupan hoy del cine. El pionerismo afirma un proceso que coloca el presente como su auge y finalidad. Esa megalomanía crítica es injusta en la construcción del pasado porque lo deshecha con objeciones, en general, bastante superficiales. Podemos resumir la crítica a la obra de Sadoul a dos puntos cuestionables: lo acusaron de poco rigor con relación a las fechas de los acontecimientos relatados (Deslande, Richard, 1996)4 y de no conseguir especificar el objeto propio del cine (Casetti, 1995: 311). Sin embargo, colocar las fechas correctamente, a pesar de recomendable, no es un criterio serio para considerar el valor histórico de una obra. El historiador Pierre Sorlin afirma que: La historia de Gran Bretaña, desde el siglo XVIII era de un rigor sin falla, pero se mantenía en la idea de que el sistema político ingles era un modelo para el resto del mundo y que Inglaterra encarnaba el espíritu de las Islas Británicas, las seriedad metodológica no corregía el dirección tomada desde el comienzo por el anglo-centrismo (2009 s/n). Además, como el rigor cronológico exige un orden continuo, es una repetición de la tercer regla cartesiana del Discurso del Método. La exigencia de “nada omitir” es un recurso retórico para afirmar un pretenso rigor en los recortes escogidos, que envuelven “infinitos aspecto sobre cuya elección sólo decide la intención de aquel que conoce”, como afirma Adorno (2009:25). También la especificidad del medio cinematográfico no puede determinar el juicio histórico de una obra. en nombre de una práctica fílmica temporal y particular, concebida ilusoriamente como conocimiento del objeto cine, el historiador cataloga masas de signos precursores de esta práctica (…). Eso es apenas una legitimación de una experiencia particular. (Comolli, 1997:452). Así, la segunda objeción a Sadoul no se sostiene. 4 Esta crítica es de dos historiadores, hecha en 1966 (Deslande, 1996), y continua válida hasta hoy. Valérie Vignau (2009: 294-267) afirma también que la obra de Sadoul es apenas un pionerismo ultrapasado por la falta de rigor. Yanet Aguilera 551 Algunos historiadores, en los años 1960, reivindicaron una distancia de los estudios cinematográficos – considerados inadecuados para pensar la relación entre cine e historia – y de la investigación histórica, que aún no había admitido completamente el cine como fuente. Marc Ferro ve el cine, por ejemplo, como una posibilidad de interrogar la propia narrativa de la historia. Como fuente nueva, aún sospechosa, las películas se tornan instrumentos adecuados para cuestionar la historia de los historiadores y exhibir la función que estos desempeñan (Ferro, 1992). La falta de interés por el cine explicita el hecho del historiador casi siempre escoger el conjunto de fuentes y método utilizado por la función que ejerce y por los objetivos propuestos, que nunca son inocentes, ya que, según Lefevbre (1971), este personaje, en general, está a servicio del poder constituido. Específicamente, hay dos problemas con la narrativa de la historia. La verborragia de un método que promete un rigor sin conseguir cumplirlo: Aquí están mis referencias, aquí están mis pruebas (…) Mas nadie diría que la elección de esos documentos, la forma de reunirlos y el enfoque de sus argumentos son también un montaje, un ardid, un trucaje (Ferro,1992: 20). Y la jerarquización de las fuentes, pues torna la imagen como mera ilustración de los textos escritos. Para el historiador Eduardo Morettin la práctica analítica de Ferro transforma el cine en fuente complementar subordinándolo a los criterios postulados por el saber histórico, que tiene la fuente escrita como elemento principal para fornecer y abalizar informaciones. Como el hecho histórico es el referencial, el conocimiento histórico comanda el análisis fílmico (Morettin, 2003:11:42). A pesar del esfuerzo, Ferro no puede evitar el esquema jerárquico adoptado por Sadoul. El espanto no es tanto que este sistema histórico sea defectuoso, mas que se produjera y se ejecutara hasta ese grado de solidez que aun posee. La crítica de Morettin a Ferro supone que el cine tiene su propia historia: la de las formas cinematográficas. ... não se trata de fazer a obra confessar seu sentido “inconsciente”, que ela esconderia, não se trata de absorver o social ou o histórico pelo cinematográfico, ou vice versa (...). Trata-se de examinar sim- História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 552 plesmente como o sentido é produzido (...). Parte-se da hipótese de que, se a questão do cinema na história e na sociedade pertence de direito à história econômica ou institucional, aquela da História e da sociedade nos filmes não é dissociável da história do cinema entendida como histórias das formas cinematográficas... (1995:38). Antoine de Baecque es uno de los historiadores que llega a formular la génesis de esta historia. Para el estudioso fueron los críticos de los Cahiers du Cinema, los primeros a sostener que el fondo de una película reside enteramente en su forma, en su mise-en scène, en su estilo (Baecque, 2011). Entonces el “panteón de las películas escogidas encarnan una narrativa de las formas del cine” (Baecque, 2008:284). En esta versión de la historia de las formas se afirma que la crítica y la historia modernas del cine surgen en el momento en que se comienza a hacer una lectura formal de las películas. En general, se considera la forma cinematográfica como un virtuosismo de mise-en scène – una asociación entre imágenes, un movimiento de cámara, un encuadre etc. Alfred Hitchcock es considerado el maestro del estilo. Es el caso de la fusión entre el fragmento de agua escurriendo en el hueco del lavamanos o el detalle del ojo vidriado de Janet Leigt, de Psicose; la tasa en primer plano, en Notorious etc. La forma se torna una norma, a pesar de ser apenas un recorte impuesto a la enorme producción cinematográfica. La referencia más inmediata parece ser la teoría de la “pura visibilidad”, formulada por los historiadores del arte. Sin embargo, al proponerse unir el formalismo a la historia, Baecque parece querer ir más allá. Quiere rebatir las críticas que se hacían a la Escuela de Viena, que habría transmutado la realidad histórica en bloques sin admitir diversas temporalidades o ritmos de transformación simultáneos y no habría tratado aún del contexto social. La 2ª Guerra Mundial produjo un corte traumático en la historia cinematográfica, mudando la manera de ver y realizar las películas (Baecque, 2008:20-22). Se asume la cuestión formal como la “posibilidad de recrear el mundo y transfigurarlo en una forma específica por la escrita de la historia o por la elaboración artística de la película” (Baecque, 2008: 38). El análisis no es apenas la mera visibilidad, se trata de transferir a la forma cinematográfica el corte epistémico que la historia habría impreso a la historia del cine. De modo que la forma cinematográfica será “la insurgencia intempestiva que subvierte el material de la película” (Baecque, 2008:20). Yanet Aguilera 553 A pesar de ser un recorte interesante, el cine y la crítica europea son confirmadas como modelo, igual a Sadoul, pero ahora atribuyéndose una legitimidad mayor al inaugurar un nuevo inicio de la lectura y la práctica cinematográficas que pretende llevar el cine a superarse a si propio y a transformarlo en una verdadera arte al digerir los traumas de la historia por medio de un proceso formal. Otro problema de la teoría formalista es que el cine creador de formas parece haber desaparecido en el escenario contemporáneo. Según Alain Bergala, actualmente los realizadores contemporáneos retiran del pasado formal cinematográfico como se este fuese un self-service, ignorando que las formas tienen un “origen histórico” y una “relación con un cineasta singular”. El pasado fue transformado en un “simples reservatorio de motivos y de imágenes, de donde nasce una forma degradada y obtusa del manierismo amanerado. En esta perspectiva, el cine actual no crea, apenas recicla” (Oliveira, 2012: 5). Baecque afirma que “lo mimético, la reprise, la citación constituyen el modo teórico al mismo tiempo cognitivo, narrativo y fetichista de los tiempos presentes” (2008:392). Obras como Quem vai ficar com Mary (1998), de Peter y John Farrelly son de mal gusto y substituyeron “una consciencia autoral y cinéfila de prestigio por un uso iconoclasta” que corta con “el progresivo y constante ennoblecimiento cultural, que tuvo que se asociar con las pulsiones corporales primitivas; no negarlas, pues ellas eran la misma energía y el origen del cine, mas colocarla en un cuadro reconocible”. Esas películas que “se hacen con una mano son el fin de la miseen- scène, ya que desorganizan y revientan todo” (Baecque, 2008: 399). A pesar de la referencia al libro de Jean-Marie Goulemot (2001), Baecque no percibe que la crítica que la literatura pornográfica direcciona a la filosofía de las luces puede ser dirigida a las formas cinematográficas. Se invierte aquí el recorrido tradicional de la historia, en que el pasado era considerado como un eslabón del progreso histórico. El presente está comprometido por el desaparecimiento de las promesas que pautaban la lectura del pasado. Ese cuadro, producto de la rarefacción de las formas, conduce Baecque a pensar en un pós-cine (2008: 401). Pero la aparente proximidad con las reflexiones de los historiadores del arte, como Hans Belting o Arthur Danto sobre el fin de la historia de arte parece no tener ninguna resonancia. Por otro lado, Baecque liga los estudios formales a los escritos de Siegfried Kracauer, de modo que la teoría estética de Walter Benjamin y, prinHistória da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 554 cipalmente, la de la forma ensayo, de Theodor Adorno, son referencias. En esta dirección, una vertiente bastante fuerte que se desenvolvió en la teoría y crítica cinematográficas es el film ensayo, que se tornó uno de los cánones actuales. Arlindo Machado afirma que el ensayo es más operativo que las otras formas artísticas, ya que posibilita la inclusión de películas que no pueden ser catalogadas como documentales o ficción (Machado, p.65 y 72). Así, su suceso es comprensible por el esfuerzo de intentar ultrapasar clasificaciones dicotómicas que simplifican la manera de analizar las películas. Mas, es en el campo de la eficacia analítica que se puede cuestionar la relación entre cine y ensayo. Primero, la relación intrínseca entre ensayo y autor. Al final del siglo XX, la autoría se impuso en los estudios cinematográficos principalmente por medio de la política del autor de la Nouvelle Vague, pero luego fue contestadas por estudiosos que seguían las reflexiones de Foucault. Hasta en el ensayo literario o filosófico, la autoría es problemática, principalmente si pensamos la relación entre Adorno y Montaigne. Mismo que se suponga que el modelo de Adorno sean los Essais, de Montaigne, no se puede decir que la reflexión de este filósofo pueda ser pensada como una especie de prolegómenos de la teoría del ensayo adorniada – como en general es considerada por los estudiosos del ensayo, hasta en el abordaje de Jean Starobinski (1993). El discurso es para Montaigne el olvido del Ser y, por lo tanto, la moral del ensayo depende de una lógica y de una ontología. Montaigne parte del individuo Michel de Montaigne, el nombre particular que sostiene la teoría nominalista. Pero, como cada hombre conlleva la forma entera de la humana condición, como la forma se presenta en su relación con la materia e como la materia se configura como un particular mal formado, se concluye que la causa formal o el principio que estructura y que constituye cada cosa en su especie no es lo todo, mas justamente la nada. Así, considerar Michel de Montaigne como objeto del mismo saber no es apenas una marca de subjetividad del autor de la forma ensayo, mas el propio ensayo como tentativa fracasada de pensar la posibilidad de un universal en re y no apenas en voci. Michel de Montaigne, el nombre de esa realidad formal que es el libro, es pura formalidad, que jamás puede ser la marca del individuo como bien mostró el propio Montaigne en los Essais, cuando debatió la relación entre el autor, el nombre y la muerte (Montaigne, 2000 y Compagnon, 1980). Por lo tanto, la pretensión de introducir lo sensible en el concepto no es más que eso, pura pretensión. Por eso los Essais nunca pueden producir un canon. El problema es que La Yanet Aguilera 555 Forma ensayo, que fue pensado por Adorno como un anti-canon se tornó el canon moderno. Segundo punto, como el ensayo es un genero literario, el problema será la transposición de los postulados literarios para el cine, que trabaja con imágenes. “Toda reflexão sobre o ensaio, entretanto, sempre pensou essa ‘forma como essencialmente ‘verbal’, isto é, baseada no manejo da linguagem escritas, mesmo que a relação do ensaio com a literatura seja, como vimos, problemática. O objetivo deste ensaio é discutir a possibilidade de ensaios não escritos, em forma de enunciados audiovisuais (Machado, p. 65)”. Pero, la transposición no ser realiza sin una serie de problemas. Un de los más importantes es la transformación de imágenes en enunciados. Machado trata este tema como si ya estuviese resuelto y la problematización se limitase al ensayo como genero literario. Las dificultades que esta cuestión conlleva es evidente en el mismo texto del estudioso cuando coloca la figura de Vertov, como ejemplo del autor ensayista. A maioria das imagens de Tchelovek Kinoapparatom, é, na verdade, criação do fotógrafo Mikhail Kaufman. Vertov operou nesses filmes nos níveis da concepção, da roteirização e, depois, da montagem. Embora não fosse diretamente o montador (a montagem foi realizada por Elizaveta Svilova, que aparece nos créditos como “assistente de montagem”), ele dirigia o processo de montagem mais ou menos como um filósofo da Idade Média ditava seu texto para o escriba (Machado, p. 71,72). La simplificación de ver el trabajo del fotógrafo como materia prima bruta y de transformar a la mujer en una especie de máquina que ejecuta ideas ajenas se hace en nombre de la producción de una mitología: Vertov, el cineasta filósofo, que controla intelectualmente la película. Esta manera de criar mitos es bastante conocida, véase el proceso que sufrió Hitchcock5. Además hay una revalorización del texto escrito en detrimento de las imágenes, que no apenas retoma la jerarquía ideológica de la historiografía Según Oliveira “Khron conclui que o Alfred Hitchcock de quem sempre ouvira falar é um mito [o controlador obsessivo], promovido, primeiramente pelo próprio cineasta, mas propagado e aumentado pelas pessoas que escreveram sobre ele (2000:17). 5 História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 556 tradicional, como transforma las imágenes en enunciados. Machado cree que este asunto controvertido sea así fácilmente resuelto. Para Gilles Deleuze la relación entre imagen y lenguaje en el cine es un problema grave (1985: 37). Critica la asimilación de las imágenes a proposiciones o enunciados narrativos que Christian Metz6. El hecho de que el cine se haya desenvuelto históricamente como narrativa no “autoriza tal subordinación, pues “la narración nunca es un dato aparente de las imágenes o el efecto de una estructura que las sostiene, es consecuencia de las propias imágenes aparente, de las imágenes sensible, que se definen por si propias” (1985:38). Hans Belting sustenta que las imágenes no son signos y que la “convertibilidad de los signos visuales y lingüísticos no puede resolverse en el sentido de una ecuación simples”. Como en la idea de mimesis reside un cliché estético del siglo XIX (…) pensamos, con excesiva precipitación, en una praxis ingenua de la reproducción bien aclimatada en la pintura del pasado y nos olvidamos de las estrategias del cine y del video en que esta posición ingenua ya, hace mucho, fue superada, aún antes de haber comenzado la era digital (Belting, 2011: 143-144). Deleuze ya afirmara que la imagen-movimiento cinematográfica “no es analógica en el sentido de la semejanza” (1985:40). Parece que se sobre-valorizó la cuestión ontológica de la copia cinematográfica, principalmente por algunos estudiosos de las teorías del lenguaje y de la forma ensayo, que reducen a una dicotomía simplificadora – copia o discurso – la complejidad del cine. Así, se reverbera toda la tradición iconofóbica del pensamiento occidental en el propio terreno de la imagen. En el caso de su reducción al enunciado, se somete las imágenes a los imperativos del lenguaje y de la narración, transformándolas en un mero elemento subordinado a la cadena sintáctica, o a la simples ilustración de una historia, o como fuente suplementar de la Historia. El cine es imagen e narrativa. Luego, hay que tener cuidado en colocar esa ecuación de otra manera. Arlindo Machado se distancia de la narración e ve el cine conceptual como elaboración “de ideias complexas por meio apenas de imagens e sons, sem passar necessariamente pela narração” (p. 70). Pero, no hay como ignorar la relación entre un enunciado e una narrativa.. 6 Yanet Aguilera 557 hoy hay más sentido en estudiar las imágenes y los signos en su cruzamiento en formas híbridas, como lo hace W.J.T. Mitchell en sus trabajos, desenvolviendo para ambos una nueva conceptualización y abordando igualmente el lenguaje y el texto en la imagen”(Belting, 2011: 144). O sea, no la imagen en el lenguaje y el texto, al contrario, el lenguaje y el texto en la imagen, vale repetir. BIBLIOGRAFIA ADORNO, Theodor W., “El Ensayo como Forma”, In Notas sobre Literatura. Obras completas 11. Madrid Akal, 2009. AUMONT, Jacques y MARIE, Michel (Orgs.) Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas, Papirus, 2001. BAECQUE, Antoine. Cinefilia. São Paulo, Cosac & Naify, 2011. _________ Camera-Histoire. 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O elenco conta com o astro do cinema argentino Ricardo Darín, astro do cinema argentino que dispensa apresentações, e a belíssima Soledad Vilamil, que desempenha extraordinariamente o papel de jovem advogada e promotora da meia idade, transitando entre os vinte e cinco anos de diferença de sua personagem com pouquíssima maquiagem e grande investimento emocional. Brevemente descrito, a narrativa apresenta a história de Benjamin Espósito (Ricardo Darín), oficial de justiça em Buenos Aires que, nos anos 90, resolve escrever um romance sobre fatos passados nos anos 70 que marcaram sua vida. Basicamente, estes fatos são dois: sua paixão, não concretizada, por sua colega de trabalho Irene Menéndez Hastings (Soledad Vilamil) e a investigação do “Caso Morales” – estupro e assassinato da jovem professora Liliana Coloto. Irene é superior hierarquicamente a Benjamin, além de filha de uma família rica e influente na Argentina. Benjamin não é ninguém. Quando procura Irene para apresentar-lhe sua ideia de romance, a narrativa pula para os anos 70, apresentando o surgimento e crescimento da paixão platônica entre Benjamin e Irene e a investigação policial do estupro e assassinato na qual os dois estão envolvidos. O marido da moça assassinada, Ricardo Morales, está obssecado em achar o criminoso e vêlo punido. O principal suspeito, Isidoro Gomes, ex-colega de bairro de Liliana, sabe que está sendo procurado e some do mapa. O Caso Morales parece que resultará não resolvido quando Pablo Sandoval, colega de Benjamin e alcoólatra, percebe, pelas cartas do suspeito a sua mãe, que ele 561 é fanático pelo time do Racing. Segundo filosofa Sandoval, a pessoa pode mudar de tudo na vida, mas não pode mudar sua paixão. Efetivamente, Isidoro Gomes é encontrado em um jogo do Racing, é preso e confessa. Pouco tempo depois, no entanto, ele é visto solto na televisão, trabalhando como guarda-costas da presidenta Maria Estela Martínez de Perón. Irene e Benjamin descobrem que ele foi solto por colaborar com o governo, passando a compor as milícias que perseguiam elementos potencialmente subversivos. A seu mando, milicianos invadem a casa de Benjamin para assassina-lo, mas confundem-no com Sandoval, que lá se recuperava da bebedeira. Temendo pela vida, Benjamin deixa Buenos Aires e a mulher que ama sem concretizar sua paixão. Vinte e cinco anos depois, voltando ao presente narrativo e a Buenos Aires, Benjamin procura Morales para tentar entender como o viúvo passou esse tempo sem sua paixão. Descobre, horrorizado, que este aprisionou Gomez e o mantêm em cativeiro há muitos anos, fazendo justiça as próprias mãos. Benjamin não o denuncia. Ao invés disso, vai ao escritório de Irene onde o casal assume a paixão e decide finalmente vivê-la. O Segrede de Seus Olhos foi ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro e motivou, além de inúmeras críticas e reviews, ao menos quatro artigos acadêmicos. Os artigos concentram-se, sobretudo, no que poderíamos denominar análise de conteúdo pois, ainda que mencionem aspectos estilísticos, estão voltados sobretudo para o estudo da narrativa apresentada em seus múltiplos aspectos. O artigo «El secreto de sus ojos» o cómo vivir una vida vacía: de la literatura al cine, escrito por Rafael Malpartida Tirado e publicado na Revista de Crítica Literária Latinoamericana (ano 37, nº 73, 2011), procura analisar como se deu a adaptação do romance, escrito por Eduardo Sacheri, para as telas. O autor enfatiza as diferenças na narrativa e na construção dos personagens entre as duas obras, procurando explicitar os sentidos que advêm das alterações promovidas por Campanella. Essas alterações se referem à maior ênfase no romance e no personagem de Irene, o ponto de vista narrativo, o fato de, no texto escrito, haver mais de dois tempos históricos nos quais se desenrolam as ações, o nome dos personagens entre outras. O artigo considera que a adaptação para o cinema foi muito sucedida, “dotando a história contada no filme de grande coerência e solidez narrativa”. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 562 Já o texto de Roberto Ramos “O Segredo dos Seus Olhos: os significantes da pós-modernidade”, publicado na revista Sessões do Imaginário (ano 18, nº 29, 2013), enfatiza a análise semiológica, investigando os sentidos míticos e psicanalíticos que residem na ação (e na inação) dos personagens e em seus nomes próprios. O artigo propões leituras cruzadas com relação ao roteiro, comparando, por exemplo, a vida vazia, sem sentido, que Ricardo Morales passou sem Liliana e aquela que acometeu Benjamin, imobilizado pela falta de coragem de confessar seu amor. Roberto Ramos procura extrair os sentidos que extravasam estes significantes verbais e visuais e que passam a operar num lugar simbólico: “As dimensões de Eros e Tânatos se sintetizam. Igualam-se em um elo”. Da mesma forma, o autor estabelece um paralelo entre Benjamin e Gomez na medida em que ambos, nas fotos em que aparecem, não conseguem esconder o olhar obsessivo que depositam respectivamente em Irene e Liliana. Trata-se, em última análise, de texto que também está centrado na questão da narrativa, desta vez procurando sentidos ocultos, da ordem do simbólico, do mito e da psiquê, que ocultamse na história contada. “O enredo, em suas diversidades, apresenta uma unidade. São os seus personagens principais: Benjamin, Irene, Ricardo, Liliana, Isidoro e Pablo. Assumem as condições de Personagens Conceituais, de acordo com Deleuze e Guattari (1992). Simbolizam ideias e configuram conceitos a respeito da vida e sobre o viver”. Os dois outros textos enfatizam a questão da memória política que atravessa a película e que oferecem um pano de fundo essencial para a não concretização da paixão entre os Benjamim Espósito e Irene. Com efeito, o romance foi interrompido, em um momento em que parecia que iria se concretizar, pela necessidade de partida imediata de Benjamin de Buenos Aires. A justiça, em sua omissão, ao libertar Isidoro Gomes e utiliza-lo para fins escusos, impede a felicidade do casal e condena-os a uma vida vazia. Estes artigos analisarão a questão da memória que atravessa a película: por um lado trata-se de um homem que, através da produção de um romance autobiográfico, procura entender o que se passou com a sua vida, reconstruindo uma memória individual para que o fracasso de sua vida possa ser compreendido; por outro lado, trata-se de investigar a forma como uma nação lida com as consequências sociais e coletivas de um passado vergonhoso de insegurança civil e jurídica que trará consequências para a memória coletiva sobretudo na forma de uma contaminação moral social. Marina Soler Jorge 563 O artigo “Memoria e impunidad através del imaginario cinematográfico: ‘La mujer sin cabeza’ y ‘El secreto de sus ojos’”, de Ana Moraña, publicada na mesma edição da Revista de Crítica Literária Latinoamericana citada acima, explora o filme de Campanella e também A mulher sem cabeça (2008), de Lucrecia Martel, no que se refere às consequência sociais da impunidade. Segundo autora, a impunidade política não se esgota em sua consequência imediata – a soltura de Isidoro Gomez – mas contamina, “como um câncer”, outros âmbitos, ensejando uma “resposta aberrante a um pacto social entre setores privilegiados”. No filme em questão, isso se expressaria sobretudo na justiça com as próprias mãos operada por Ricardo Morales, consequência mais monstruosa da impunidade inicial. Para a autora, o romance que Benjamin pretende escrever sobre o Caso Morales constitui-se como uma resposta “ao desafio que representa a memória”: o personagem “busca recuperar do passado um delito acontecido tempos atrás, como uma forma de fazer justiça, e a melhor forma que encontra para alcançar este propósito é a palavra e por isso decide escrever um livro”. A palavra, neste caso, funciona como uma reparação, a nível individual, do malefício causado por uma falha grave do Estado oferecer um ambiente de segurança jurídica, e como uma maneira para que a memória desta falha, e de suas consequências nefastas, não se extinga. A autora do artigo se atentará para o fato de que Morales, o marido da moça assassinada, “não crê na recuperação da memória pela palavra” nem que a justiça se faça em se trazendo à luz a memória do erro cometido. Já Benjamin “concebe da recuperação da memória em sua função compensatória, ante à inação judicial que também o afeta como uma vítima mais ou menos indireta dos fatos”. Finalmente, o artigo “Políticas del recuerdo y memorias de la política en El secreto de sus ojos de Juan José Campanella”, de Hugo Hortiguera, publicado no Ciberletras. Journal of literary criticism and culture (Vol. 24, 2010), analisa em profundidade a questão da memória política Argentina a partir do enredo do filme e do livro no qual foi baseado mas também a partir do cotejamento entre as obras e os contextos retratados ficcionalmente, tanto o passado no qual a impunidade ocorre quanto o presente no qual essa impunidade continua produzindo efeitos. Para Hortiguera, o fracasso de Benjamin “parece ter-se espalhado para e de um sistema social que coloca a comunidade descrita na história para além das fronteiras civilizadoras da razão, fora da lei, que se rege por um impulso amnésico e monstruoso História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 564 que já não pode evitar”. O autor lembra que o período retratado, entre 1973 e 1976, era um breve intervalo democrático, “caracterizado por uma radicalização do pensamento político, o fortalecimento de grupos armados terroristas e o surgimento de esquadrões paramilitares organizadas pelo Ministério da Previdência Social, pelo então ministro José López Rega”. Campanella, então, estaria interessado no momento “em que um governo democrático começa a transgredir seus limites legais”, “em que um estado de direito se esvazia de direito e começa a infringir a lei para garantir sua continuidade e sua própria existência”. Ainda segundo Hortiguera, o fato do filme ter sido lançado durante a era neoperonista de Kirchner não é desprovido de significado político, dado que este presidente reivindica a herança política dos anos 70 esvaziando-a das contradições do período. Esta pequena síntese do que poderíamos denominar fortuna crítica acadêmica em torno da obra O Segredo dos Seus Olhos1 nos mostra, de imediato, que as relevantes questões colocadas sobre o filme se referem muito centralmente em seu conteúdo narrativo. Os dois últimos artigos citados, que tratam da questão da memória política invocada no filme, assim como os dois primeiros, fazem poucas menções a questões estilísticas, e procuram analisar sobretudo o enredo em seu diálogo com a situação de anomia jurídica que, obviamente, na América Latina, não é privilégio da Argentina. Mencionfa-se frequentemente o quão belo e bem fotografado é o filme e a atração que suas imagens ao mesmo tempo quentes e sombrias exercem sobre o espectador. No entanto, a menção ao estilo do filme, ou à imagem propriamente dita, nunca se combina com a análise da narrativa, de modo que ficamos com a impressão de que a história de O Segredo de Seus Olhos poderia ser contada de qualquer outra forma. Sabemos que outras abordagens com relação à fotografia, à montagem, à mise-en-scène, etc, poderiam ser adotadas para se contar essa história. No entanto não foram. O diretor e sua equipe decidiram que a narrativa seria apresentada de determinada maneira, a partir de determinadas imagens, e não de outra. O que me interessa aqui, portanto, é compreender como alguns aspectos mais formais do filme, ou aspectos que compõe os quadros e as cenas, colaboram no desenrolar da narrativa. Nossa intenção não é discordar da leitura produzida pelas análises abordadas acima, mas entender como elas são possíveis a partir de algumas imagens que formam a película. Não abordaremos as críticas em jornais e revistas não-científicas. Caso as mencionássemos, teríamos centenas de outros textos. 1 Marina Soler Jorge 565 De que maneira memória, romance, subjetividade, desejo, vazio são não apenas narrados mas mostrados, produzindo no espectador as sentimentos e emoções e em relação aos eventos? Pois, ainda que dotado de uma história interessante, plena de romance e conteúdo crítico, ela sozinha, ou a narrativa que a apresenta, não produziriam o sucesso causado por este filme, nem o apreço conquistado entre grande parte do público e da crítica. Dentro todos os elementos que compõe e estilo da obra que poderíamos escolher, elegemos um dos mais insuspeitos e pouco abordados. Em um filme dotado de uma cinematografia elegante, enquadramentos soberbos e montagem precisa, escolhemos analisar a textura e a tessitura de alguns planos, presente nas roupas, nos panos, nas cores, na materialidade do personagem e do ambiente. Mais do que figurino, cabelo ou maquiagem, trata-se daquilo que as imagens vestem, e que as dotam de textura, brilho, suavidade, numa experiência sinestética entre o olhar e o tato de que quase nunca nos damos conta mas que estão sempre presentes na concretude e no volume de cada imagem. O que veste, de cor é, qual a textura, afinal, da memória de Benjamin Espósito? Por limites de espaço, escolheremos apenas algumas imagens que, a nosso ver, falam da paixão e do vazio da existência. Henri Bergson, em Matéria e Memória, nos mostra a relação profunda, irresistível, que há entre memória e imagem: “uma lembrança, à medida que se atualiza, tende a viver numa imagem”2. O passado que não acionei, a “lembrança pura”, não rememorada, reside fora do corpo, não atua sobre nosso mecanismo sensório-motor. No entanto, “tão logo se transforma em imagem, o passado deixa o estado de lembrança pura e se confunde com uma certa parte do meu presente”3. O passado de Benjamin Espósito, rememorado e portanto transformado em imagem, constituirá parte importante do O Segredo dos Seus Olhos, pois é lá que reside, para o personagem, a chave para o fracasso de sua vida. Sua lembrança mais importante, a imagem que mais frequentou sua memória nos últimos vinte e cinco anos, é o momento em que conhece Irene, sua nova colega de trabalho. A montagem em campo-contracampo nos dá a ver o deslumbramento de Benjamin neste momento. Irene, vestida com um conjunto de lã escarlate, com lenço de seda no pescoço 2 BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 158. 3 BERGSON, Op. cit: p. 164. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 566 e uma graciosa boina na cabeça, ambos também vermelhos, é uma visão arrebatadora da paixão. O uso das tonalidades vermelhas pela personagem de Irene durante o filme é marcante: seja no passado ou no presente, é sua cor mais utilizada. Quando jovem, Irene usará o vermelho vivo, tendendo para o alaranjado, mas também o cor de rosa, o xadrez branco e vermelho, camisas com estampas avermelhadas, coletes de lã e lenços vermelhos no pescoço. No presente, mais velha, ela usará casaquetos também vermelhos de jacquard e microfibra e camisas vermelhas por baixo do cardigan de lã. As cores quentes de suas vestes combinam-se com o mogno avermelhado do escritório onde trabalha e de todos os espaços relacionados à justiça: no trabalho, Irene está em seu elemento. Ela não é apenas paixão, mas competência e seriedade profissional. Ou, talvez, poderíamos dizer, que Irene é toda paixão, entregando-se a seu trabalho com responsabilidade e devoção. Isso colabora para afastar, cada vez mais, os sonhos românticos de Benjamin, dividido entre a imagem do amor romântico e a realidade da distância social que os separa e que expressa-se plenamente no ambiente de trabalho. A permanência da cor em momentos diferentes da vida de Irene, no presente e no passado, sugere a continuidade da mesma mulher que deslumbrou Benjamin e do efeito que sua visão causa no oficial de justiça. O essencial de Irene, ou seja, a paixão que desperta, não se atenuou com o passar do tempo. É assim que justifica-se que, mesmo depois de ter levado uma vida distante, casado com outra mulher, Benjamin Espósito ainda sinta a mesma emoção diante de Irene. O diretor Campanella precisava convencer-nos, enquanto espectadores, de que Irene era capaz de atingir completamente e persistentemente o coração de um homem, e que Benjamin, vinte e cinco anos depois, continuava suscetível a ser atingido. Quando Irene não usa vermelho ela está, preferencialmente, de branco, cor que o personagem usa quando Campanella não a quer tão apaixonada. Seu figurino preto, no entanto, é o que irá revelar para o espectador de maneira clara, pela primeira vez, a paixão de Benjamin. Ao chegar no escritório, Sandoval faz um graça com a colega: “Hoje é dia da morte de algum santo? Pois estou vendo um anjo de luto”. Benjamin questiona Sandoval como consegue pensar em um gracejo tão rapidamente: “Para mim é mais fácil, Benja. Eu não estou apaixonado”. “Imaginar não é lembrar-se”, dirá Henri Bergson. Ainda que uma lembrança viva na imagem, a pura imagem não se constitui necessariamente como lembrança, “a menos que seja efetivamente no passado que eu vá Marina Soler Jorge 567 busca-la”4. É esse o movimento que Benjamin fará na busca de um começo para seu livro, reconstruindo um evento – a partir de uma imagem – a partir de uma memória que na verdade não possui. Benjamin Espósito imagina o último dia de vida de Liliana Coloto e narra seu desjejum com o marido: ela, o retrato puro da inocência, uma moça quase ainda adolescente, vestindo uma camisola florida com mangas bufantes – a manga típica de vestidos infantis. Benjamin não gosta dessa imagem; ela é demasiado superficial, rasa (o foco é pouco profundo), clara, brilhante e inocente, como o vestido que Liliana usa. Benjamin rasga a folha e procura outro começo para sua história. Ele vem abruptamente, talvez sem que fosse buscado, e prescinde da narração do autor-escritor: na primeira imagem-memória do estupro de Liliana que Benjamin cria vemos a roupa da moça sendo violentamente rasgada. O barulho do tecido partindo-se é quase insuportável, acompanhado dos gritos de horror da moça. Benjamin não sabe o que fazer com essa imagem, que, ao contrário da outra – o desjejum – ele parecia não estar procurando. O corpo nu, violado e sem vida, de Liliana Coloto, aparecerá mais a frente, quando está sendo narrado o momento em que Benjamin é chamado para atender à investigação do crime. Esparramado entre a cama e o chão, atravessado diagonalmente no plano, o corpo despido e machucado exerce profunda influência em Benjamin, que nunca conseguirá se esquecer essa visão. Ele sofre ao contemplar o contraste entre a violência do corpo despido e as fotos inocentes do jovem casal, e imagina a enorme tristeza que o assassinato causará no marido. O corpo nu não é apenas despido, mas está desumanizado. A civilização não o habita mais, ele foi arrancado violentamente da mundo em que vivia e deixado exposto, arrogantemente, para que quem o encontrasse presenciasse o desprezo da assassino por ele. A visão do corpo é suficientemente chocante para justificar o impacto que exerce em Benjamin durante todo a sua vida. Esse impacto ajuda a explicar que Benjamin vista Liliana, ao imaginar seu último desjejum, com alguns símbolos da mais pura inocência. Trata-se, assim, da violação de um corpo que lhe parece imaculado. É também um pedaço de corpo nu, no entanto, que ajudará na prisão do assassino de Liliana. Durante uma breve discussão, na qual Irene e Benjamin discordam a respeito de como se deve dar o interrogatório de Isidoro Gomez, Benjamin puxa-a pelo ombro e sem querer abre o último botão de sua camisa branca. É um sequência rápida, a qual não 4 BERGSON, Op. cit: p. 158. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 568 é dada grande atenção, e o espectador que assiste ao filme pela primeira vez dificilmente deve notar o movimento de Irene para tentar abotoar rapidamente a camisa. Benjamin entra em uma sala e, sozinho, começa a interrogar Isidoro, que parece saber como livrar-se da suspeita que recai sobre ele e está conseguindo colocar em dúvida a convicção de Benjamin sobre a autoria do crime. Irene entra na sala para avisar Benjamin de que Sandoval não foi encontrado, e se debruça para conversar ao pé do ouvido com o colega. Nesse movimento, a camisa branca de Irene, aberta, revela seu colo e um pouco do seio pequeno dentro do sutiã bege claro. Benjamin está com o rosto grudado ao colo de Irene, mas não repara na visão dos seios sob a camisa. Já Isidoro, como um maníaco, não consegue disfarçar o olhar, e mantém os olhos fixos sobre o colo de Irene por todo o tempo que pode, não se importando com o fato da moça ter percebido que estava sendo olhada. O profundo desrespeito corpo feminino, materializado por um olhar que Isidoro não tenta evitar, cria em Irene a certeza de que esse homem seria capaz de violar e assassinar uma mulher. Ela o provoca e ele acaba confessando ter cometido o crime contra Liliana. O corpo de Irene, nesse momento, sob camisa de algodão, é tão casto quanto o de Liliana, que cobria-se com vestidos florais claros e de corte infantil. A advogada, que gosta do vermelho, agora está usando branco, e seu sutiã, discreto, sem renda, sem cor, é uma peça eminentemente dessexualizada. Irene não chama a atenção sobre seu corpo; é Isidoro, psicopata, que sexualiza seu olhar, atingindo o objeto olhado de maneira despudorada (Liliana também era olhada por Isidoro nas fotos em que ambos apareciam, e esse olhar violento, maníaco, levou Benjamin ao encontro do assassino). Deixamos a Irene jovem, dos anos 70, no momento em que ela se despede de Benjamin na estação de trem, mandando-o ao interior da Argentina, onde ele ficará seguro sob proteção dos influentes familiares de Irene. É uma das sequências mais românticas do cinema contemporâneo e deve muito à interpretação de Soledad Vilamil, cujo personagem implora, com os olhos, que Benjamin finalmente declare seu amor; seu queixo treme enquanto ela tenta segurar o choro, mas ela não consegue evitar encher os olhos de lágrima. O tom é monocromático: em contraste com o mogno avermelhado e as cores quentes de Irene no escritório, a estação de trem é triste, desbotada, e o figurino é preto e branco, em um anúncio da vida vazia que aguarda Irene e Benjamin separados. Marina Soler Jorge 569 É preciso mencionar, antes de chegarmos ao fim deste texto, a tonalidade e a textura que marcam os planos no passado de Benjamin – os anos 70 – e seu presente. O que nos chama a atenção, na verdade, é a ausência de marcas claras de que o tempo passou, com excessão dos cabelos mais curtos de Irene e os cabelos grisalhos de Benjamin. Os edifícios de justiça continuam com o mesmo aspecto suntuoso e neoclássico; o chiaroscuro se mantém tanto lá quanto cá, e as imagens continuam com o mesmo brilho granulado. A ambientação e o figurino dos anos 70 são elegantes e impecáveis, mas é difícil determinar, apenas pelas imagens, quando é o presente retratado, a não ser por sabermos que se passaram vinte e cinco anos (o que nos leva a 1999). O clima é sempre o mesmo, sem sol, sem chuva, um pouco frio. Em um certo momento aparece um telefone celular, raro registro de “pós-modernidade”, uma vez que não vemos computadores no presente. Benjamin escreve seu romance em uma máquina de escrever antiga ou à mão. Tudo se passa como se o tempo não houvesse passado para Benjamin. Lá e cá, sua vida não avançou. A confusão visual entre passado e presente nos sugere, autonomamente, apenas pelo trabalho de imagem, a imobilidade de Benjamin, que viveu uma vida vazia e nunca conseguiu livrar-se realmente do passado. Bibliografia BERGSON, H. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006. HORTIGUERA, H. Políticas del recuerdo y memorias de la política en El secreto de sus ojos de Juan José Campanella, Ciberletras. Journal of literary criticism and culture, vol. 24, 2010, pp. 1-13. MALPARTIDA, R. El secreto de sus ojos» o cómo vivir una vida vacía: de la literatura al cine, Revista de Crítica Literária Latinoamericana, ano 37, nº 73, 2011, pp. 353-376 MORAÑA,Ana. Memoria e impunidad através del imaginario cinematográfico: ‘La mujer sin cabeza’ y ‘El secreto de sus ojos’, Revista de Crítica Literária Latinoamericana, ano 37, nº 73, 2011, pp. 377-400. RAMOS, R. O Segredo dos Seus Olhos: os significantes da pós-modernidade, Sessões do Imaginário, ano 18, nº 29, 2013, pp. 10-16. História da Arte: Coleções, Arquivos e Narrativas 570 Marina Soler Jorge 571